DOCUMENTO DA COLEÇÃO SANTO AMARO
PROPOSTA DE EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA

Ana Júlia Tavares Staudt (UNEB)

 

0 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de edição semidiplomática de um documento datado do século XVIII pertencente a Coleção Santo Amaro, TOM 24/13 sob guarda do Acervo de Escritores Baianos do Setor de Filologia Românica da Universidade Federal da Bahia. Antes, porém, faz-se um breve comentário sobre as características da escrita dos séculos XVIII e XIX dos manuscritos brasileiros.

 

1 O documento manuscrito no Brasil durante os séculos XVIII e XIX: características ortográficas

Os portugueses introduzem a escrita latina no Brasil quando a produção manuscrita do livro começava a entrar em declínio, inicia-se a transmissão do saber através de obras impressas. Daí poder dizer que a formação caligráfica dos colonos e colonizadores é a mesma, sendo mais generalizado o uso da cursiva para a redação de documentos.

Em decorrência disso cria-se um impasse do que deveria ser considerado um manuscrito brasileiro. A solução foi considerar manuscrito brasileiro todos documentos cujo teor se relacionasse com o Brasil, estes poderiam ser oriundos daqui ou Ultramarino. ACIOLI (Cf. ACIOLI, 1994. p. 55) diz que

tanto cartas remetidas da colônia quanto documentos régios ou consultas do ConselhoUltramarinos, despachados da metrópole, foram considerados brasileiros quando o assunto em questão descreve problemas desta possessão portuguesa na América.

Em sua formalidade os documentos avulsos produzidos no Brasil apresentavam-se grafados em letra cursiva e sobre papel sem pauta. Mancha escrita disposta uniformemente deixando espaço em ambas as margens do fólio dando uma forma agradável à composição. Era praxe deixar espaços reservados para os pareceres e despachos. O local e a data vêm quase sempre explícitos no término do documento. O destinatário encontra-se no início, ou sobrescrito a ele. Alguns documentos apresentavam-se selados ou carimbados. Os selos encontram-se pendentes por tiras de couro ou tecido. Há também os impressos (papel selado), adotados com o intuito de evitar fraudes e duplicações possíveis com o uso do papel comum; e os documentos régios traziam figuras das armas ou dos escudos monárquicos.

Quanto as diferenças ortográficas em relação à escrita moderna, verifica-se o uso generalizado de letras dobradas r, s, f, l, n, t. Era comum também nesse período as terminações ão e am serem grafadas sem til e com n. As palavras terminadas em is, colocava-se a terminação es; em eu, usava-se eo e em ua, era comum colocar-se ao. Usava-se o c com cedilha, mesmo antes do e e i, e até antes de h. Também encontravam-se muitos casos de c que deveriam estar cedilhados, pelo uso de então, e são escritos sem o cedilha, num evidente lapso do escrivão. O e, quando verbo ser, vem procedido de h, enquanto o verbo haver, geralmente vem sem ele. As sílabas com par, per, por, ter, entre outras, são usadas com as duas últimas letras trocadas. Das características comuns a esse período, o documento objeto do presente estudo apenas registra a ocorrência do l dobrado (cf. elle, l.2; dellas, l.56; villa, l.23), da troca do ua por eo (cf. seo l. 5) e das terminações ães e ões (cf. orphaons l. 3).

 

2. Documento TOM 24/13: edição semidiplomática

2.1 critérios adotados na edição semidiplomática

Na edição semidiplomática aqui proposta para o documento TOM 24/13 procurou-se fazer uma leitura conservadora, para que as características lingüísticas e ortográficas fossem mantidas permitindo a leitura fluente do mesmo por outros especialistas, lingüistas e historiadores, por exemplo, para que possam utilizá-los como fonte de investigação. Os critérios adotados foram:

Reproduziu-se fielmente o texto, observando os seguintes critérios:

conservando a pontuação do texto;

mantendo a ortografia.

desdobrando as abreviaturas com o auxílio de parênteses: ( ).

2. Numerou-se o texto linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do fólio.

3. Usou-se colchetes para indicar as interpolações: [ ].

4. Usou-se colchetes e reticências para indicar as rasuras ilegíveis: [...].

5. Identificou-se o número do fólio à margem superior direita.

 

2.2 Descrição do documento

Documento TOM 24/13, pertence a Coleção Santo Amaro, traz a data no primeiro fólio: Aos nove dias domes dejunho de mil sete centos noventa annos. Escrita lançada em coluna única em dois fólios: 1 recto/verso e 2 recto, medindo 212mm x 303mm. Dimensão da mancha escrita 161mm x 254mm, 191mm x 294mm, 110mm x 121mm, respectivamente. Escrita lançada no fólio de forma a deixar livre as margens laterais deixando as laterais livres para pareceres e também para a costura, quando da feitura de cadernos. O tipo de escrita é cursiva, bastante regular; como instrumento de escrita é utilizada a pena metálica e tinta orgânica. As maiúsculas são bastante interessantes, dentre elas destacam-se o D (Diz); P (Para); V (Vossa); M (Mercê); E (E) e R (recebe); algumas são iniciais de palavras outras são abreviaturas de tratamento. Os traços destas maiúsculas são finos e em algumas partes a pena colocada em outra posição tornam estes traços mais largos.

 

Fó1. 1r

Manuscrito com 22 e 44 linhas recto e verso, respectivamente. Nota-se ação de insetos nas margens direita e esquerda do fólio. Ângulo superior direito e esquerdo está bastante danificado. Furos resultantes da ação de insetos ao longo da mancha escrita, nas linhas 1 e 2 do recto 32, 33 do verso chega a prejudicar a leitura. O papel é poroso, tipo verger e não há traçados de linhas, e as manchas (borrões) de tinta existentes, no fólio 1, são devido ao manuscrito estar escrito no recto e no verso, todavia não dificulta a leitura do mesmo.

 

Fó1. 2r

Contém apenas 9 linhas. Apresenta ação de inseto ao longo do fólio, ângulo direito danificado. Linha 72 a ação de insetos dificulta a leitura da primeira assinatura: Fran(cis)co Luiz F(e)r(nand)ez Guim(ara)ez.

 

2.3 Abreviaturas e formas ligadas

As formas ligadas também aparecem numa quantidade considerável, no fólio 1 recto encontram-se: afiança (l.2), detodo (l.3), eficar (l.5), sedigne (l.9), atodo e oimporte (l.18), deseos e naforma (l.19), domes e dejunho (l.21); no fólio 1verso: denossa (l.23), dapurificação e eSanto (l.24), demim (l.25), deseo (l.29), detodo (l.34), oimporte (l.35), depertencer e aseos (l.36), deseo (l.39), eficarem (l.41), naforma (l.43 e 45), nafalta (l.48), eque (l.50), atodo e oalcance (l.51), eque (l.53), oventura (l.55), damesma (l.56), emtempo (l.58), desua (l.59), epor e depessoa (l.60), edetudo (l.61), emque (l.63), odito (l.63 e 64); no fólio 2 recto: quetodos (l.66), delido e eque (l.67), sesegue (l.69), osescrevi (l.75).

O documento é rico em abreviaturas. As 74 linhas registram cerca de 32 abreviaturas, que podem ser agrupadas em dois tipos: letra sobreposta e de suspensão.

LETRA SOBREPOSTA

SUSPENSÃO

Ant.º Ant(oni)o (l.4, 17) aqm aq(ué)m (l.12) Caet.o Caet(an)o (l.73 Cap.m cap(ita)m (l.1) d.º d(it)o (l.5) Devas.os Devas(concell)os (l.73) Eng.º Eng(enh)o (l.2) ERMce E R(eceberá) M(er)ce (l.14) Fran.co Fran(cis)co(l.16, 72) Frz.e F(e)r(nand)ez (l.12, 17, 72) sobreposta Guim.es Guim(arã)es (l.1, 12, 17, 72) leg.os leg(ad)os (l.19) naf.ª naf(orm)a (l.19) oimp.te oimp(or)te (l.18) p.ª p(ar)a (l.10, 13, 16) p.º p(o)r (l.17) peçoalm.e peçoalm(ent)e (l.6) Proc.or proc(urad)or (l.16) PaVMce P(ede) a V(ossa) M(er)ce (l.9) Ribro Rib(ei)ro (l.1) Sacram.to Sacram(en)to (l.74) Sup.e Sup(licant)e (l.2, 6, 10, 16)

q’ q(ue) (l.7)

 

2.4 Conteúdo do documento

Trata-se de uma procuração em que o suplicante, o Capitão Antonio Rib(ei)ro Guim(ara)es eCastro, solicita que o Sr. Fran(cis)co Luiz F(e)r(nand)ez Guim(ara)ez o represente junto aos orfãos seus enteados. O documento dividido em duas partes, a saber, protocolo e escatocolo. A primeira consiste na exposição de motivos e na procuração propriamente dita, isto é, narrativa e cominatória de corroboração. A segunda, o escatocolo, consiste na validação da procuração. Inicia-se com o elemento cronológico: dia, mês e ano, e conclui com subscrição e assinaturas do procurador e das duas testemunhas: Fran(cis)co Luiz F(e)r(nand)ez Guim(ara)ez, Cae(tan)o Joze [Devas(conce)llos], Joze deLima do Sacram(en)to.

 

2.5 Transcrição semidiplomática do documento





5

[Fól.1r]

Diz o cap(ita)m Antonio Rib(ei)ro Guim(ara)es eCastro mo
rador no seo Eng.(enh)o da Pitanga, que elle sup.(licant)e não tem duvida asinar afiança
por Antonio Vicente Correa da Franca detodo o importe [...] legitimas dos or
phaons seos emtiados filhos do defunto Joze Ant(oni)o daSilva para efeito de pu
der ser o d(it)o seo Tutor, eficar em ser em seo puder todas as suas legitimas; po
rem p(ar)a o sup.(licant)e vir peçoalm(ent)e e asinar a dita fiança, tem nisso grande imco
modo, tanto pelo tempo invernozo, como por moléstia q.(ue) padece, por cuja razão.


10

P(ede) a V(ossa) M(erce) sedigne conceder
licença ao sup(licant)e p(ar)a o puder fa-
zer por seo procurador Francisco
Luiz F(e)r(nand)ez Guim(ara)es aq(ue)m da osseos
puderes p.(ar)a procuração juntar



15




20

                      E R(eceberá) M(er)ce
Termo de fiança que asina
o sup(licant)e p(o)r seo proc.(urad)or Fran(cis)co Luiz
F(e)r(nand)ez Guim(ara)es p(o)r Ant(oni)o Vicente
Correa da Franca, atodo oimp(or)te
dos leg.(ad)os deseos emtiados naf(orm)a
neste abaixo declarada [escrivão]

Aos nove dias domes dejunho de





25




30




35




40




45




50




55




60




65

[Fól..1v]

 De mil sete centos noventa annos
nesta villa deNossa Senho
ra daPurificação eSanto Amaro
[...] demim escrivão, [...] Fran
cisco Luiz Fernandez [...] Guimaraes pe
ro a que reconheço filha propria de
que faço menção, [...] por elle me
foi dito que em nome deseo consti-
tuinte o capitão Antonio Ribeiro
Guimaraes eCastro vinha ficar co
mo [...] [...] logo ficou por fiador
e [principal] pagador, por Anto
nio Vicente Correa Franca detodo
oimporte das legitimas que houverem
depertencer oseos emtiados, Manoel
da Asunpção, Francisco dos [Anjos],
Francisca Maria do Nascimento,
por falecimento deseo pay Joze An-
tonio da Silva para efeito depen-
der este ser seo tutor, eficarem em
sua mão os ditos legitimas, nafor
ma que reafirma comferidas, cu
ja fiança, digo, se obrigava a cumprir
naforma que dito tinha, segundo
puder que [...] omesmo dito seo
constituinte na Procuração que ofe-
recia, porem há nafalta dos seos
dodito Antonio Correa digo Anto
nio Vicente Correa da Franca, eque
atodo oalcanse que este haja deter
[obrigam] todos os seos bens, presen-
tes, futuros, eque desi [...] que
algum previllegio [...] que
haja deter, a que encontre oventu
ra satisfação dellas, damesma forma
seo obrigava não contradiser nem re
clamar este termo emtempo algum
por ser feito desua livre vontade
epor constrangimento depessoa
alguma, de tudo prova constar
diz este termo, emque asinou o-
dito Procurador do fiador, sendo tes
temunhas Caetano Joze Devas con-
cellos, e Joze deLima do Sacramento.






70

[Fól..2r]

 doSacramento, quetodos asina
rão depois delido equi junta a-
Procuração do mesmo fiador, que
há aqui adiante sesegue eu An-
tonio Francisco Ribeiro escrivão
dos orfáos que osescrevi

Fran(cis)co Luiz F(e)r(nand)ez Guim(ara)ez

Cae(tan)o Joze [Devas(conce)llos]

Joze deLima do Sacram(en)to

 

Referências bibliográficas

SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo : Cultrix, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1977.

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX. 2.ed. aum. São Paulo : Arquivo do Estado, 1990.

FRECHES, Claude Henri. Manuscrts d’Inquisicion au XVIII.e. Difficultés de lecture et d’interpretation In: CRITIQUE TEXTUELE PORTUGAISE, actes du colloque, 20-24 octobre 1981. Paris : Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1986. p. 301-10.

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil Colonial: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife : EDUFPE/Fund. Joaquim Nabuco