LITERATURA E FILOLOGIA: AS DUAS FACES DA CRÍTICA NOS TEXTOS

Celina Márcia de Souza Abbade- UNEB/ UFBA/UCSAL
Itana Nogueira Nunes- FTC/UNEB/ UFBA/UCSAL

 

 

Vistas numa perspectiva de aproximação de funções, as atividades constantes de críticos literários e filólogos, ou melhor, editores críticos, são atividades afins, pois se o editor crítico de um texto traz à luz a sua autenticidade e originalidade, o crítico literário tenta buscar, mesmo que, às vezes com uma certa carga de subjetividade, o que este chama de “verdade literária”, ainda que essa verdade às vezes não exista, para usar as palavras de Ricardo Piglia, desejando com isso traduzir o texto, escavá-lo nas suas zonas mais abissais, assim como quer o seu companheiro de empreitada, o filólogo.

Enquanto à Critica textual cabe a busca da autenticidade do texto, a Crítica literária vai se preocupar com o seu conteúdo. E, embora tenham objetivos diferentes, essas duas ciências se encontram no mesmo objeto de estudo. Através deste mesmo objeto material, o texto, o objeto formal dessas ciências vai diferir. Ao filólogo, em sua crítica textual, cabe o estudo propriamente dito com suas implicações lingüísticas e históricas. Já ao crítico literário caberá a investigação do texto enquanto discurso, ou seja, o estudo da forma de expressão desse texto. Em outras palavras, enquanto um crítico toma um texto em sua materialidade, analisando seu aparato lingüístico e os elementos históricos que o compõem, o outro busca a unidade interna da obra, a sua constituição poética através de palavras que, além de sentido lingüístico, possuem outros implícitos no texto. E, apesar de tão distintas, apresentam-se com um mesmo fim quando têm em comum a busca de um caráter elucidativo e verdadeiro das obras.

Nas mãos destes reinventores o texto se manifesta nas suas mais infinitas formas e nos seus mais “indecifráveis” mistérios. Mas o homem, não apenas o homem moderno, como também o homem na sua mais remota existência, nunca esteve acostumado a aceitar enigmas indecifráveis, ou pelo menos sem solução provável. Ao contrário, raramente está satisfeito com o que lhe salta aos olhos, com o que está visível, quer sempre estar buscando algo que não está satisfatoriamente claro.

Este mesmo homem, e em particular o “crítico”, se nega a reconhecer como verdadeiras apenas as sombras, como queria o homem da caverna de Platão. Estas não o bastam. Quer sim, enxergar além delas, talvez até sobre elas. Quer ver mais.

Talvez mesmo por causa deste inconformismo com o parcial, com o enviesado, o homem ocidental tenha se encarregado ao longo da sua existência de recriar o Mito de Platão através de tantas historinhas e fábulas de que temos conhecimento, como a do pintassilgo que foi morto e crucificado por tentar cantarolar uma canção diferente numa comunidade de rãs que nunca haviam saído do seu buraco ou ouvido qualquer outro tipo de música que não fosse o seu coaxar, e, portanto não tinham consciência de mais nada que não estivesse ali, que não fosse parte daquele seu território, ou melhor, daquela sua verdade. Como esta, conhecemos muitas outras histórias, e talvez passássemos muito tempo para contá-las todas, e não é isso que nos importa aqui.

Entretanto, a imagem desse pintassilgo nos vem a propósito dessa nossa discussão sobre o papel desempenhado pelo crítico (falamos aqui de ambos), que, como o infeliz passarinho, muitas vezes é também considerado um louco, um blasfemo, alguém que quer sempre enxergar o que está por trás, o que não salta aos olhos. E como se não fosse o bastante, ainda pode ser visto, e é muito freqüentemente, como o parasita do texto literário, dependendo deste para continuar existindo, ou escrevendo.

Falemos então um pouco dessa atividade dentro da nossa cultura e o papel por ela assumido ao longo da sua história.

Como sabemos, a crítica tem o seu berço de nascimento na Grécia, com Platão e Aristóteles. Tendo sido criada para interpretar os poemas e escritos literários não era, ainda no início, (século IV a.C.), denominada por esse termo. As teorias críticas criadas pelos dois pensadores, de tão sólidas e fundamentadas, vigoram até os dias atuais.

A crítica de Platão, mais filosófica, portanto mais teórica que prática, deu origem à uma corrente de observação ou de análise mais estética que literária. Já Aristóteles, seu discípulo e continuador, procurará fazer uma interpretação mais propriamente literária, colocando-se em posição oposta ao pensamento platônico.

Além dos dois filósofos, podemos destacar o pensamento estético de Longino, ainda no século I a.C., que enfoca a questão da crítica de forma diversa da que fez Platão e Aristóteles, ressaltando a excitação do espectador ou leitor, ao invés de priorizar o estilo ou a perfeição, dando origem a uma interpretação filosófica do fato literário. Podemos arriscar que, ao deslocar o foco do emissor para o receptor, o filósofo estaria abrindo um caminho que só seria percorrido séculos mais tarde, quando a teoria literária resolve concentrar as suas atenções naquele que vai ser elemento essencial no texto, o leitor, através de uma “estética da recepção”.

Em Roma, as especulações em torno dos critérios para valoração literária foram iniciadas por estudiosos como Horácio, Quintiliano, Tácito, Cícero, Demétrio, Dionísio, entre outros.

Apesar da estética literária, ao longo dos anos medievais, estar submetida à teologia ou à filosofia, é ainda nesse período que nasce um grande interesse pelos estudos da retórica e das obras especializadas a esse respeito. Mas é com o Renascimento, e nos séculos seguintes, que surgem os mais importantes estudos de teoria e de crítica literária. As grandes obras de autores gregos e latinos são traduzidas, dando aos estudiosos maior acesso ao pensamento dos teóricos da Antigüidade.

A partir do século XVIII, a crítica ganha uma popularidade muito maior, desenvolvendo novos métodos de avaliação e interpretação. Ocorre uma verdadeira expansão geográfica, levando as teorias formuladas para fora dos limites da França e da Inglaterra. Dessas formulações teóricas sobre o fato literário surgiram vários tipos de crítica: didática, moralista, histórica, sociológica, marxista, psicológica, filológica e, por último, estética. Além dessas, podemos também citar a crítica impressionista, surgida na França, no final do século XIX, com interesse em registrar as impressões despertadas no crítico ou leitor pelas obras literárias.

Tida como principal tarefa da Filologia Românica, a crítica textual é, em linhas gerais, a técnica de editar um texto. Fazer uma crítica textual é algo primordial na busca do perfeito entendimento de um documento escrito através de critérios que possam aproximar esse texto o máximo possível da vontade do autor. Fazer edição crítica é buscar a autenticidade de um texto. Como a Filologia é a ciência que estuda de maneira histórico-comparativa as línguas através dos textos, é nessa ciência que encontraremos as bases para se realizar uma edição crítica. É claro que uma investigação filológica dessa natureza, principalmente quando se faz edição crítica de textos medievais, requer conhecimentos prévios de ciências como a Paleografia, a Epigrafia, a Diplomática, a Codicologia, dentre outras.

Não se pode esquecer que o objetivo de uma edição crítica é um só: estabelecer um texto que se torne o mais próximo possível de seu original. E, dentre as inúmeras tarefas de um filólogo, é a ele que compete a análise minuciosa do texto buscando sempre restaurar a sua autenticidade.

Em Literatura, ou seja, nesse modelo de interpretação, tem-se que o crítico deve delinear a estrutura do texto literário através de várias leituras, utilizando para tanto o conhecimento de ciências como a antropologia, a psicanálise e a psicologia e tantas outras. Cabe ao crítico literário, portanto, criar o caminho mais fácil para o entendimento de um texto, para aquele leitor, erudito ou não, que queira interpretá-lo.

A crítica literária brasileira propriamente dita se inicia no século XIX, se não levarmos em consideração algumas manifestações dispersas ocorridas durante o Arcadismo. A partir do Romantismo, estendendo-se até o Realismo, o pensamento crítico revelou os principais representantes desta primeira fase: Gonçalves de Magalhães, Santiago Nunes Ribeiro, José de Alencar, Álvares de Azevedo, Machado de Assis, além de outros de menor destaque. Num segundo momento, a crítica passou a ser orientada por algumas doutrinas filosóficas ou científicas, relacionando a literatura com os aspectos da sociedade, sendo então representada por estudiosos como Sílvio Romero, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu e José Veríssimo, entre outros.

No século XX, contudo, a crítica literária no Brasil consegue formar um corpo de representantes pertencentes às mais variadas correntes de pensamentos. Desde o Modernismo (sendo muito bem representada por Mário de Andrade e tantos outros que pela escassez de tempo não poderíamos citar) até os dias atuais estes estudiosos vêm criando e discutindo os novos rumos dessa atividade, que hoje se vê mais satisfatoriamente consolidada tanto no que tange à crítica jornalística como à acadêmica, apesar do inconsistente preconceito que ainda hoje circula a respeito da validade desta primeira dentro do âmbito universitário, impedindo que as duas modalidades de interpretação coexistam pacificamente.

Alguns estudiosos que fazem parte dessa dupla militância têm se empenhado em estreitar as relações entre a crítica e o fruidor da obra literária, o leitor, que, pertencente ao mundo real, emite opiniões tão diversas das de outros leitores como também das emitidas pela crítica especializada. Contudo, é dessa divergência de idéias, sabemos, que vive a literatura. É dessa diversidade que nasce o novo. E é bom que assim seja, pois é a pluralidade que assegura a inovação e a evolução do processo histórico no qual todo o resto se situa.

Mesmo tendo consciência da importância de um estudo crítico de um texto, seja ele na crítica literária, seja na crítica textual, sabemos que todo o esforço e labor do crítico não são verdadeiramente reconhecidos pelo público leitor em geral. Talvez algumas pessoas não estejam muito preocupadas com a qualidade das coisas. E se a qualidade das coisas em nossa sociedade atual está sendo esquecida, como valorizar um texto que tenha a forma mais autêntica possível, que já tenha sido examinado por alguém preocupado com a sua essência e com as suas formas de interpretação?

Para o estudante de Letras, falar em crítica literária ou textual não é tarefa difícil, pois ele tem acesso a essas fontes de conhecimento. Mas como fica essa questão para um leitor comum, que não teve acesso a essas ciências? Criticar é algo que todos fazem a todo o tempo. Costuma-se criticar tudo que se vê e que se vive. E é assim na crítica literária. Mas o público geral, na sua maioria, não conhece a crítica textual, não sabe que existem pesquisadores preocupados em recuperar textos, tronando-os verdadeiros, autênticos e cada vez mais próximos da vontade do seu autor.

É por isso que a leitura de edições críticas deveria ser recomendada e divulgada não só no meio acadêmico, mas em toda a sociedade. Todos nós temos o direito de ter acesso ao que há de melhor. E não se conhece o melhor de um texto (e pensemos aqui principalmente em um texto antigo, um manuscrito medieval, uma cantiga trovadoresca, ou um poema de Camões), sem que se tenha uma boa edição crítica do mesmo. Não só para aqueles que precisam dos textos em seus estudos científicos, mas para todo o público leitor, as edições críticas, ainda que escassas no Brasil, são de grande importância. Podemos citar aqui Celso Cunha com a edição crítica do Cancioneiro de Martin Codax, Segismundo Spina com As Cantigas de Pero Malfado, a Comissão Machado de Assis e a crítica textual de suas obras composta por membros como Antonio Houaiss e Celso Cunha, Emmanuel Pereira Filho com As Rimas de Camões, Leodegário Amarante de Azevedo Filho, com a Lírica de Camões em sete valiosos volumes, Maria de Lourdes Martins, Sílvio Elia e Leodegário de Azevedo Filho com As Poesias de Anchieta, o grupo de crítica textual da UFBA coordenado por Nilton Vasco da Gama com a edição crítica das obras de Arthur de Salles, Adriano da Gama Kury com a edição das Poesias de Cruz e Sousa, Walnice Nogueira Galvão com Os Sertões de Euclides da Cunha, dentre muitos outros com a mesma importância, porém não mencionados aqui nessa simples exemplificação da crítica textual brasileira.

Apesar da reconhecida importância de uma edição crítica, sabemos que a mesma não é imutável. Nas palavras de Segismundo Spina, podemos observar que:

Qualquer edição crítica representa, sempre, uma tentativa de restauração de um texto, provisoriamente definitiva enquanto não surjam outras, naturalmente baseadas em novos achados ou em diferentes perspectivas metodológicas, que possam lançar novas luzes sobre o original.

 

E completando com as palavras de Leodegário Amarante de Azevedo Filho:

... será possível falar em boas ou más edições críticas, mas não em edições críticas perfeitas.

 

E acrescenta mais adiante:

Mas é a perfeição, o seu objetivo maior, incansavelmente procurado pelo editor, sem atingi-lo nunca. E vem daí o fascínio dessa atividade humanística, pois a busca da perfeição, ainda que inatingível, é que nos pode verdadeiramente enriquecer

 

A estes operários da literatura, ao crítico literário e ao filólogo, é designada a tarefa de construção da teoria viva, desvendando o inconsciente, iluminando a obra, tarefa das mais nobres, que exige, antes de tudo, que se tenha um brilho a mais no olhar, ou quem sabe até, um olhar de fogo. Por isso estarão sempre ansiosos por algo que precise ser perscrutado, analisado e quem sabe até desvendado.

Nossa intenção, é claro, não seria gerar maiores discussões acerca das tarefas do crítico literário ou textual, mas apenas trazer à tona um diálogo que traduzisse as inúmeras conversas a respeito das nossas reflexões sobre este tema. Neste trabalho, nos damos oportunidade de apresentá-las. Ademais, embora professoras de disciplinas distintas, estamos sempre nos deparando com as mesmas dúvidas dos nossos alunos a respeito das diversas formas de interpretação do texto. Por isso, tentamos expor aqui o que apesar de parecer óbvio é desconhecido aos olhos de um leitor comum: a distinção ou até mesmo o conhecimento dessas duas faces da crítica nos textos.