SERAFIM DA SILVA NETO E A DIALECTOLOGIA

Joseph Ildefonso de Araújo (UFV)

 

No dia 26 do corrente, ao telefonar para o Presidente do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos, Prof. Dr. José Pereira, solicitou-nos que substituíssemos o Prof. Rosalvo que precisou viajar com urgência para os Estados Unidos, não podendo, assim, proferir a palestra que faria neste Congresso.

Aceitamos a incumbência um pouco na ousadia, dado ao exíguo tempo para preparar um trabalho que pudesse representar o valor do Prof. Rosalvo e estar à altura desse magnífico V Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. Este Congresso é uma homenagem ao grande Filólogo Prof. Serafim da Silva Neto que traçou um caminho que não pôde seguir, pois a morte o colhia aos 43 anos de idade, quando já havia produzido obras de grande valor como Fontes do Latim Vulgar e ainda não tinha 20 anos de idade. Sílvio Elia ao falar Serafim diz que “o seu brutal desaparecimento foi realmente uma gravíssima perda para os estudos lingüísticos no Brasil, de que até hoje não nos refizemos”. Serafim deixou-nos “obra vasta e valiosa” que apesar do curto tempo que viveu, foi obra de “profundidade e solidez com que a realizou”. Prof. Dr. Manual de Paiva Boléo, ao lamentar a morte de Serafim, afirma: “Se a morte não o arreba-tasse prematuramente (...) Serafim da Silva Neto seria o animador e orientador superior dos futuros atlas regionais do Brasil”. Serafim não era “o especialista que só se interessa pelos seus assuntos estritamente profissionais. ... ao contrário era capaz de dissertar sobre atlas lingüísticos, como sobre corrida de cavalos ou jogo de xadrez”. Não se pode deixar de ressaltar o que diz Sílvio Elia ao analisar a posição de Paiva Boléo, revela o aspecto humano do grande cientista que foi Serafim: “Serafim mantinha vivas palestras não só com os colegas da especialidade e sobre assuntos técnicos, mas também com pessoas de outras preocupações, pois, como poucos, sabia fazer vibrar a tecla do humano. Era um psicólogo nato.”

Não discorremos sobre a obra de Serafim e falaremos sobre o seu valor e nem lamentaremos a lacuna que a sua morte provocou no meio lingüísticos do Rio de Janeiro e no Brasil. Serafim nos legou, em 1957, com o seu “Guia para estudos dialectológicos”, o caminho que tem sido norteado os que se dedicam à pesquisa Dialectológica.

No preâmbulo da “Introdução” do Guia, dizia: “No Brasil,... é preciso, antes de mais nada, criar mentalidade dialectológica, preparando um ambiente favorável às pesquisas de campo”.

Criar uma mentalidade dialectológica era o pensamento de Serafim. Este pensamento não caiu no vazio, pois, são inúmeros os Atlas Lingüísticos Regionais que têm surgido atual-mente por todo o Brasil.

Carlota Ferreira e Suzana Cardoso, em A Dialetologia no Brasil, dividem a história dos estudos dialetais no Brasil em três fases: Primeira Fase de 1826 a 1920; Segunda Fase de 1921 a 1951; Terceira Fase a partir de 1952, com o Decreto 30.643 de 10 de março de 1952. È bem provável que esta terceira fase se encerre em 1966 e marque o início da Quarta Fase com a Criação do Comitê Nacional do Projeto ALiB, o Atlas Lingüístico do Brasil.

O Guia para estudos dialetológicos propõe as tarefas mais urgentes para a concretização dos estudos dialetais no Brasil:

1 - Realização de sondagens preliminares.

2 - Recolha de vocabulários seguindo as exigências técnicas.

3 - Elaboração de monografias etnográfico-lingüísticas sobre determinadas áreas semânticas e sobre determinados falares de região.

4 - Elaboração de atlas regionais.

5 - Elaboração de atlas nacional.

Seguindo essa orientação, iniciou-se na Microrregião de Viçosa, Minas Gerais, uma pesquisa dialectológica, tendo por finalidade inicial elaborar um Vocabulário Popular-Técnico e Técnico-Popular, com os nomes populares rurais de doenças de criações e culturas agrícolas. No entanto, o material colhido nas 210 propriedades rurais da microrregião, levou a equipe de pesquisa a ampliar o seu campo utilizando os dados recolhidos para numa tentativa de elaborar atlas lingüísticos municipais rurais.

A primeira tentativa foi realizada com o levantamento dos dados de quatro municípios da microrregião de Ubá. Foram eles: Astolfo Dutra, Rodeiro, São Geraldo e Tocantins. A equipe de pesquisa chegou a ter cinco alunos de Iniciação Científica do CNPq.

Atualmente, estamos trabalhando nessa pesquisa, tentando levar a cabo a iniciativa inicial elaborando o Atlas Municipal Rural de Viçosa, que servirá de modelo para os demais atlas municipais.

 

DIALECTOLOGIA

A dialectologia, segundo Dubois (p. 185),

designa a disciplina que assumiu a tarefa de descrever comparativamente os diferentes sistemas ou dialetos em que uma língua se diversifica no espaço, e de estabelecer-lhe os limites. Emprega-se também para a descrição de falas tomadas isoladamente, sem referência às falas vizinhas ou da mesma família.

Dubois enfoca dois aspectos na dialectologia: a) a descrição dos diferentes sistemas ou dialetos em que se diversifica uma língua; b) o estabelecimento dos limites de um espaço geográfico de uma fala que pode ser tomada isoladamente sem se preocupar com os falares vizinhos ou com os que pertençam à mesma família lingüística.

Borba (p. 31) diz que a dialectologia é “o estudo dos sistemas lingüísticos em suas variações geográficas ou sociais”. Como Dubois, fala sobre os sistemas lingüísticos no seu espaço geográfico que abrange a geografia lingüística e sua demarcação em atlas lingüístico, e os aspectos sociais que possam influenciar as variações das falas.

Mattoso (CAMARA JR, p. 94-95) define a dialectologia como “o estudo do arrolamento, sistematização e interpretação dos traços lingüísticos dos dialetos”. Apresenta duas técnicas para o desenvolvimento da dialectologia: a da Geografia Lingüística que busca a distribuição geográfica de cada traço lingüístico dialetal, consolidado nos ATLAS LINGÜÍSTICOS, e a da ”descrição dos falares por meio de monografias dedicadas a uma dada região” compondo gramáticas e glossários regionais.

A dialectologia estuda, pois, as variações lingüísticas delimitadas no espaço geográfico e nos agrupamentos sociais dos diferentes sistemas lingüísticos ou dialetos que caracterizam as diversificações de uma língua, restritas ao espaço geográfico que ocupa. Seu campo de estudos é, conseqüentemente, os falares regionais com suas delimitações geográficas, caracterizadas por diferenças próprias na fonética, no léxico, na gramática...

 

GEOGRAFIA LINGÜÍSTICA - ATLAS LINGÜÍSTICO

Decorrência natural da Geografia Lingüística são os Atlas Lingüísticos que registram a particularidade de cada item lingüístico que aparece num determinado ponto de um território.

Dubois (p. 78) fala dos elementos que devem compor um atlas lingüístico:

(1) um questionário indicando as noções cujas denominações se devem extrair dos informantes, os tipos de frases que devem deles obter, as conservações a travar; (2) uma determinação dos pontos de inquérito e das pessoas interrogadas; (3) e, como parte essencial, os mapas lingüísticos nos quais se registram ponto por ponto as formas, as palavras e os tipos de construção registrados.

A pesquisa dialectológica clássica determina o que expõe Dubois. Nossa pesquisa, no entanto, foge em alguns aspectos do que ele expõe porque ela não é feita em um aglomerado urbano social com mínimo de 700 moradores, para alguns, outros exigem mais de 1000. O Esboço do Atlas Lingüístico de Minas Gerais do Prof. Zágari exige aglomerados urbanos com mais de mais de 2000 habitantes. Algumas sedes de município jamais poderiam servir de local de pesquisa porque possuem menos de 2000 habitantes. Esta foi realizada em propriedades rurais, que hoje, com o êxodo rural, não vai além da família no proprietário que é também reduzida (cinco a oito pessoas), em regra e em poucas aparecem os colonos. A escolha do informante não pôde ser determinada como manda a pesquisa clássica. O informante era quase sempre o proprietário.

 

DIALECTOLOGIA E MUTAÇÃO LINGÜÍSTICA

As línguas mudam? E podem as línguas vivas sofrer mudanças? Por que mudam as línguas? Como se operam as mudanças?

No mundo da comunicação lingüística, cada agrupamento humano tem sua linguagem própria, suas expressões características. As divergências que aparecem no ato de fala manifestam-se em todos os setores da convivência humana, até na restrita área de uma família, como já foi comprovado por Rousselot.

Já o saber técnico-científico, com sua linguagem eivada de nomenclatura e terminologia próprias e universais não está tão sujeita a alterações como a fala cotidiana de uma comunidade lingüística. Isso acontece porque o saber científico é uma atividade humana que não tem fronteiras, tornando-se universal e pertencente a toda a raça humana. É a ciência para o homem, ser capaz de conhecer, sua função primacial. O homem busca o saber, o conhecimento, a ciência. Esta a serviço do homem.

O conhecimento passa pela língua e cada língua tem, para seu uso, uma gama de termos e expressões gerais e de generalidades que se estende para fala diária. Esta é, no entanto, mesclada de mutabilidades que revelam o dinamismo a que toda língua viva está sujeita. Ora, o que é dinâmico não pode ser estável. No entanto, a língua se apresenta como um paradoxo - imutabilidade dinâmica, sujeita a modificações.

Eugênio Coseriu aborda a condição de mutabilidade quando diz que “ela é característica essencial e necessária da língua” porque, continua, “a língua não está feita, mas sim, faz-se continuamente pela atividade lingüística”. Afirma, ainda, que “a língua muda porque é falada e o falar é atividade criadora, livre e finalista, e é sempre novo” (Coseriu, 1979, p. 63).

Todavia, a mudança na língua só é possível porque ela é lenta, gradual, quase imperceptível na comunidade onde ela ocorre. Portanto, a mutabilidade lingüística é o reflexo que aparece em todo e qualquer agrupamento lingüístico onde a língua é usada e, se usada, é viva e cheia de sutis alterações que a vão modificando lentamente.

A mutabilidade da língua se manifesta nas variações regionais da fala que, dentro do arcabouço imutável, apresenta variantes contínuas da fala. São variações que se manifestam no aspecto fônico, morfológico ou sintático e, de modo mais acentuado no lexical e semântico. É a “lei do menor esforço”, ou melhor, a economia lingüística provoca as mutações que se processam de modo lento e persistente, criando as variações na linguagem, os regionalismos, os dialetos.

Dentre as variações, serão focalizadas as lexicais que implicam na criação de novos signos ou atribuindo novas conotações para signos já existentes. As modificações de signos ou a sua criação trazem distúrbios na comunicação que podem, às vezes, torná-la incompreensível. Serão focalizados os alofones que aparecem na alteração do significante, às vezes bem acentuada. Pode acontecer que haja alterações fonéticas tão grandes num feixe de fonemas de um vocábulo que este se torna quase incompreensível ou irreconhecível em relação ao seu étimo primitivo. No entanto, ambos coexistem diacronicamente na linguagem, com um aqui e outro acolá. Há exemplos desse fato na pesquisa rural como, por exemplo, mal-de-ano>manjina.

Pode-se focalizar, ainda, o comportamento das duas linguagens. De um lado, a científica que progride a cada dia, a cada hora, criando novos termos e incorporando-os a seu universo lingüístico-cultural. De outro, a linguagem da fala diária que exprime seus atos de criação, seus sentimentos, sua vivência do dia a dia, arrastando sua linguagem tão lentamente, com a paciência de quem espera uma árvore crescer e dar seus frutos. Não é de se estranhar que a linguagem, utilizada por todos, inclusive por aqueles que a dominam em todas as suas possíveis nuanças por mais sutis que sejam, está sujeita a mutações mas sempre de modo lento e gradual.

Bally afirma que “les langues changent sans cesse et ne peuvent funcioner qu’en ne changeant pas” (BALLY, 1950, p. 18.). Sofrer mutações é, pois, um “continuum” que caracteriza toda língua viva, e é a condição básica para sua sobrevivência. Sendo a língua um sistema de comunicação constante, não deveria, normalmente, sofrer mudanças, porque “... a língua é um organismo sistemático em que tudo está relacionado entre si, e o seu objeto é a compreensão por parte da comunidade em que é falada, dever-se-ia esperar a sua estabilidade como sistema que cumpre adequadamente sua função” (LLORAC, 1954, p. 97). Essa estabilidade, entretanto, não ocorre porque há interferência de fatores externos de instabilidade, o que, paradoxalmente, contribui para que o sistema lingüístico, equilibrado por definição, não caia na estabilidade perpétua, nem na imobilidade.

Llorac, citado por Coseriu (p. 16.), faz a distinção entre os fatores externos que atuam sobre a língua. Os primeiros motivam a mudança e reconstituem o sistema perturbado em sua estabilidade e imutabilidade. É o próprio Saussure quem afirma: “em si mesmo, o sistema é imutável.” (SAUSSURE, 1972, p. 100.) Essa é, no entanto, uma concepção estática da língua porque nela se verifica mudança real. E no dizer de Coseriu (p. 19.):

a língua que muda é a ‘língua real em seu existir concreto’. Mas esta língua não pode ser isolada dos ‘fatores externos’ - isto é, de tudo aquilo que constitui a fisicidade, a historicidade e a liberdade expressiva dos falantes - pois ela só se realiza no falar.

Coseriu distingue, ainda, a língua abstrata (que não muda) e a língua real (que muda). A primeira não é irreal, ela existe no interior de cada falante, onde jazem todas as possibilidades permitidas pela estrutura interna da língua que os falantes usam individualmente provocando alterações e mudanças “na língua real em seu existir concreto” (Coseriu). Essas alterações são lentas e progressivas e refletem uma tendência geral dos falantes e que condizem com a afirmativa de H. Paul, citado por Coseriu (p. 19.): “Toda língua [ou melhor: todo falante] preocupa-se constantemente em eliminar irregularidades inúteis para criar para o equivalente funcional a mesma expressão oral”. Isso leva a concluir que qualquer alteração na língua só pode existir partindo dos seus utentes que “impõem” (inconscientemente) as mudanças a que as línguas estão sujeitas. Coseriu reconhece essa realidade quando diz: “nunca se viu uma gramática que se modificasse por si mesma, nem um dicionário que se enriquecesse por conta própria” (p. 19.).

Pode-se acrescentar que nenhum filólogo, gramático, lexicólogo ou lingüista pôde ou pode tirar, modificar ou enriquecer uma língua, uma gramática ou dicionário com o mais tênue item lingüístico. O poder de criar que cada um desses estudiosos da língua pode usar, é o mesmo de cada falante de sua língua. Cada um deve buscar, nos seus estudos, o que é de usa geral ou particular, o que foi usado de acordo com as leis que subjazem em qualquer estrutura da língua, isto é, nas possibilidades de expressão manifestadas tanto na língua popular como na língua culta. Ambas vivem uma dinâmica contínua, ambas, com seu poder criador, enriquecem a língua de acordo com o que se sente e se vive no seu dia a dia, de acordo com os recortes da vida que a cultura apresenta. No entanto, há algumas expressões ou formas que são mais ou menos usadas na linguagem falada popular como na formal ou culta, falada ou escrita. Outras, todavia, são reflexos de modismos de época, de momentos passageiros que, por isso mesmo, têm vida efêmera.

As formas, ou melhor, os usos lingüísticos, tanto na linguagem popular como na formal ou culta são criações e realizações criadas pelos usuários de uma mesma língua. São recursos subjacentes, permitidos pela língua abstrata, sendo conseqüentemente, criações da língua real. As divergências entre as criações populares e as cultas, são, por sua vez, reflexos de contextos também diferentes que uma e outra linguagens podem realizar, de acordo com o recorte que cada um faz do seu mundo. Pode-se acrescentar que a diferença entre a linguagem culta e a popular reside no fato de externar aquela em apresentar um aspecto mais aperfeiçoado do belo lingüístico e esta uma fala comum, de uso diário e pragmático. Isso é possível porque “a língua real e histórica é dinâmica porque a atividade lingüística não é falar e entender uma língua, mas falar e entender algo de novo por meio da língua. Por isso a língua se adapta às necessidades expressivas dos falantes e continua a funcionar como língua na medida em que se adapta” (Coseriu, p. 94).

Coseriu mostra, ainda, que nada impede este ou aquele falante de criar ou alterar dentro da língua. Logo a seguir afirma: “O que não se ‘altera’ não tem ‘continuidade’ mas permanência, e carece de historicidade” (Coseriu, p. 94.). A língua é, pois, “enérgeia” e “dynamis” porque uma modificação se realiza, “não em algo já realizado, mas na técnica do fazer lingüístico” (Id. ib., 85)

Sobre a mutação lingüística, o mesmo Coseriu diz que “a mudança lingüística não é senão a manifestação da criatividade da linguagem na história das línguas” e a seguir acrescenta que “um estado de língua em projeção sincrônica não é ‘a’ língua, mas um corte transversal na língua que continua historicamente” (Id. Ib., 93).

Após essas considerações sobre o porquê que as línguas mudam, serão focalizados dois tipos de mudanças mais comuns que atingem as línguas no uso diário. De um lado, ocorrem as mudanças fônicas que caracteriza, no Brasil, os regionalismos da fala; de outro, aparecem mudanças lexicais que marcam, também, os regionalismos, não podendo falar ainda em dialetos, pois estes deveriam apresentam diferenças não só no léxico e na fonética mas também diferenças morfossintáticas e de modo especial na estrutura frasal a serem apresentados, oportunamente, em alguns momentos da fala.

Entre as duas mudanças, a fônica é facilmente assimilável. São alterações que ocorrem, na maioria das vezes, num ou noutro traço fônico que não chega a constituir característica pertinente, não prejudicando a comunicação. Às vezes, no entanto, a alteração fonética é realizada, em alguns lugares (em propriedades rurais), num feixe de fonemas de tal modo que da forma do vocábulo primitivo pouco resta aparentemente. Há vocábulos que sobrevivem com uma ou mais formas sincrônicas que trazem em si os traços de uma evolução diacrônica explicável, constituindo verdadeiras diacronias sincrônicas.

 

SINCRONIA - DIACRONIA

A mudança lingüística é característica de toda língua viva, falada por qualquer povo. Uma língua ao ser falada sofre um desgaste natural porque cada falante procura adaptar a fala às tendências regionais da sua cultura. Nessas tendências a língua sofre modificações lentas e suaves, quase imperceptíveis que aos poucos vai alterando a língua.

Uma língua falada por vários povos, em várias regiões, se altera a ponto de constituir-se em novas línguas, novos falares que muitas vezes não é compreendido entre os falantes de regiões diversas. Isso ocorre com os “espanhóis” das Américas e os “Ingleses” da Inglaterra, EUA, Índia, Austrália, etc. Nos EUA, cada região tem seu “inglês” próprio com características peculiares. Essas modificações alteram a língua em seus aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos, semânticos. É a diacronia: transformações ocorridas na sincronia da língua no momento em que é falada.

Acontece de um mesmo falante, como foi constatado na pesquisa rural, usar, até numa mesma frase, duas formas sincrônicas de fala para um mesmo item lexical ou para uma mesma estrutura de frase. O falante faz concordância, nominal ou verbal, entre determinado e determinante mas pode ocorrer a marca de gênero e/ou número só no determinante.

Existem simultaneamente a sincronia com a diacronia ou uma pancronia. Essa constatação vem colocar dúvidas no que Saussure expõe sobre a oposição entre sincronia e diacronia. Parece, como será apresentado mais adiante, que a posição da peças no tabuleiro de xadrez, no momento de novo lance, não diz bem a realidade de fala constatada na pesquisa. Só se o momento for determinado pelo momento em que cada vocábulo pronunciado e logo a seguir esse mesmo vocábulo terá, exemplo, uma alteração na sua parte fônica ou na sua marca de gênero ou número. Como exemplo: “Os minino e as mininas saiu” ou “Os minino e as minina saiu” ou “Os mininos e as minina saiu ou saíram”. Esses tipos de construção foram encontrados em várias frases emitidas por informantes. Não há uniformidade na sincronia pois ela apresenta estados de tendência evolutiva numa mesma frase. Há várias tendências diacrônicas em cada sincronia. As formas evolutivas aparecem num momento sincrônico e são tendências diacrônicas da evolução sincrônica. A sincronia revela alterações diacrônicas.

 

MICRORREGIÃO DE VIÇOSA

Na microrregião de Viçosa iniciou-se uma pesquisa dialectológica em 210 propriedades rurais de seus 20 municípios. O objetivo inicial era buscar dados sobre nomes populares rurais de doenças de criações e culturas agrícolas. Mas a riqueza de dados colhidos dos informantes, levou a equipe aproveitá-los para um levantamento geral das tendências da fala rural.

O objetivo da pesquisa foi ampliado a todas as sete microrregiões da Zona da Mata. A pesquisa teve seu início na Microrregião 62 de Viçosa, localizada na Mesorregião 12 da Zona da Mata de Minas Gerais. Portaria do IBGE, publicada 03.05.1990 nova apresenta nova divisão do Brasil em 31 Macrorregiões que formam Unidades da Federação. Cada uma destas está dividida em Mesorregiões, que se dividem em Microrregiões com seu número variável de municípios. O Estado de Minas Gerais é a Macrorregião 31 e passou a ter 12 Mesorregiões:

01 - Mesorregião do Noroeste de Minas

02 - Mesorregião do Norte de Minas

03 - Mesorregião do Jequitinhonha

04 - Mesorregião do Vale do Mucuri

05 - Mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba

06 - Mesorregião Central Mineira

07 - Mesorregião Metropolitana de Belo Horizonte

08 - Mesorregião do Vale do Rio Doce

09 - Mesorregião do Oeste de Minas

10 - Mesorregião do Sul/Sudeste de Minas

11 - Mesorregião do Campo das Vertentes

12 - Mesorregião da Zona da Mata

A Mesorregião 12 está dividida em 7 Microrregiões:

060 - Microrregião de Ponte Nova

061 - Microrregião de Manhuaçu

062 - Microrregião de Viçosa

063 - Microrregião de Muriaé

064 - Microrregião de Ubá

065 - Microrregião de Juiz de Fora

066 - Microrregião de Cataguases

A Microrregião de Viçosa-062 foi escolhida para o início da pesquisa. Abrange 20 Localidades ou Municípios, numa extensão territorial aproximada de 4.763,8 km2. Cada Localidade tem sua numeração alfanumérica do IBGE, um numero dado pela pesquisa e, entre parênteses, o de propriedades pesquisadas.

 

Localidades da Microrregião

01 - 0210.0 - Alto Rio Doce (16 propr.) 11 - 4830.1 - Paula Cândido (10 propr.)

02 - 0250.6 - Amparo do Serra (10 propr.) 12 - 4880.6 - Pedra do Anta (09 propr.)

03 - 0370.2 - Araponga (09 propr.) 13 - 5080.1 - Piranga (09 propr.)

04 - 0870.1 - Brás Pires(10 propr.) 14 - 5230.3 - Porto Firme (14 propr.)

05 - 1020.2 - Cajuri (08 propr.) 15 - 5310.3 - Presidente Bernardes (14 propr.)

06 - 1170.5 - Canaã (11 propr.) 16 - 5520.7 - Rio Espera (10 propr.)

07 - 1630.8 - Cipotânea (10 propr.) 17 - 6380.5 - São Miguel do Anta (09 propr.)

08 - 1670.4 - Coimbra (10 propr.) 18 - 6600.6 - Senhora de Oliveira (10 propr.)

09 - 2400.5 - Ervália (11 propr.) 19 - 6850.7 - Teixeiras (09 propr.)

10 - 3790.8 - Lamim (08 propr.) 20 - 7130.3 - Viçosa (16 propr.)

O número de propriedades foi determinado pela extensão territorial do município, perfazendo 210. As localidades foram demarcadas aleatoriamente nos mapas oficiais, adquiridos no IGA de Belo Horizonte. Todavia estabeleceu-se o critério da possível eqüidistância entre propriedades, para que se pudesse ter uma amostragem geral do município. Foi evitado, dentro dos possível, propriedades muito próximas da sede municipal.

Após o primeiro levantamento de dados referentes aos nomes de criações e culturas agrícolas, estamos trabalhando nos dados referentes à fala rural que apresentam uma riqueza muito grande nos aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos e semânticos.

A seguir, alguns aspectos de alterações em verbetes com variante alofônica.

 

VERBETES COM VARIANTE ALOFÔNICA

A variação fonética, com seus alofones, é um do aspectos mais dinâmicos da fala popular. Para Dubois, apresenta uma acepção mais ampla, dentre outras correntes lingüísticas porque “Cada fonema possui um número infinito de alofones, que têm em comum traços pertinentes desse fonema, mas que se diversificam, por outro lado, por variações não-pertinentes, mais ou menos importantes” (DUBOIS, 1978).

As alterações fonéticas não levam à alteração no significado, apesar de algumas vezes serem tão profundas que chegam a alterar a um feixe de fonemas, parecendo não haver nenhuma relação entre a nova forma com a do vocábulo primitivo.

As comunidades rurais atuais, em sua maioria, são por demais pequenas restritas à família do proprietário, com 4 a 8 pessoas, nelas incluindo pais e filhos e, às vezes, um ou dois auxiliares, vivendo um isolamento muito grande, pelas dificuldades de ir e vir e pela dificuldade jurídica de manter braços para o trabalho diário e inadiável. Isso não permite influências de um núcleo sobre o outro.

A seguir, observações sobre algumas palavras selecionadas da fala rural que despertaram maior atenção pelas tendências das transformações fonéticas regionais. São palavras referentes a doenças de criações e culturas agrícolas, comuns ao meio rural.

 

A - AFTOSA

A1 - Aftosa. Forma feminina dicionarizada originada de aftoso, usada na locução febre aftosa. Na fala rural é substantivado: “a aftosa, nome de doença bovina”.

A2 - O NDALP-1986 é o único a registrar: “Aftosa. [Fem substantivado de aftoso.] S. f. Febre aftosa”. Os mais recentes dicionários já registram aftosa como substantivo feminino. Estranhamente, Koogan /Houaiss-1994 e o DBLP-1993-Globo, só registram o adjetivo aftoso. Michaelis 2000 registra: “aftose sf (de afta+ose) Med Estado mórbido caracterizado pela formação de aftas” mas estranhamente registra: “aftosa sf (de aftoso) Med Designação vulgar de aftose”. O registro de aftose surpreende, pois a forma aftosa é de maior uso fala rural ou não. Nem o VOLP da ABL, nem o VOBLP de Aurélio registram aftose.

A3 - Na fala rural, aftosa apresenta as variantes fonéticas:

afetosa fitosa fetosa fitose

a) Aftosa > afetosa. A fala popular tende a desfazer os encontros consonantais, intercalando uma vogal (-e-/-i-) para consoante sem apoio vocálico. A anaptixe ou suarabácti é fato comum em muitas línguas. O japonês tem dificuldade de pronunciar encontros consonantais: bravo>buravo. O mesmo ocorre com tupis-guaranis que pronunciavam curuzu a palavra cruz, dando apoio vocálico a todas as consoantes. Essa tendência de desfazer grupo consonantal é comum na fala popular brasileira, adevogado / adivogado por advogado, adapíto por adapto, opíto por opto, pronúncias tidas e havidas por muitos na fala culta. A pesquisa encontrou, ainda, no meio rural: silivestri por silvestre, dificulidade por dificuldade, faculidade por faculdade.

b) Afetosa>fetosa, fitosa, fitose. A aférese do a- inicial ocorre pela sua deglutinação diante do artigo feminino a: a afetosa>a+afetosa> a fetosa.

Fetosa>fitosa, fitose. Na fala mineira é comum o alceamento do -e->-i- quando pretônico. Por isso as formas fitosa e fitose.

d) Fitosa>fitose. É comum nome de doenças terminados em -e. Por isso a tendência para o alceamento ou rebaixamento das vogais: -a>-e e -e>-a: fitosa>fitose, brucelose>brucelosa. (Há casos de informantes usarem duas formas).

-aftosa+

Aftosa> fetosa

-fetosa+> fitosa+>fitose+

 

B - MAL-DE-ANO

B1 - Mal-de-ano é vocábulo dicionarizado. Já Larousse e o Michaelis 2000, registram: mal-do-ano que não aparece em nenhum outro dicionário.

B2 - Mal-de-ano aparece na fala rural com as variantes:

mal-do-ano mardiano

maldiano marjiana

mardiane madiana

maldiana manjina

Mal-do-ano. Dois informantes “corrigem” a fala popular dizendo que “o povo fala errado porque o correto é mal-do-ano, doença que só ocorre quando bezerro sadio tem um ano de idade”. Esse posição dos informantes leva a se estranhar o registro dos dois dicionários acima. - Maldiano: é a forma de maior uso na fala rural; é o vocábulo fonológico em que se perde a noção da forma composta mal-de-ano; é a forma que leva às demais alterações rurais. - Maldiano>mardiano o -l, travando sílaba medial ou final, não tem comportamento uniforme na “sincronia” rural: pode sofrer rotacismo como em mardiano, mardiane e marjiana.

Maldiano>maldiana. Há acomodação do -a morfema de feminino de doença, a doença de maldiano>a doença maldiana>a maldiana. O mesmo ocorre com marjiana e manjina.

Maldiana>mardiane. A troca de -a>-e, analogia com os femininos em -e, indicando doenças, é comum no meio rural como antracnose, brucelose, ferruge(m), fitose, gomose, impinge, mamite, tracnose, verminose...

Maldiana>*Mardiana>marjiana. Na diacronia da língua portuguesa pode ocorrer a palatalização no grupo -di-, -ti- seguido de vogal: -di->j(i): mardiana>marjiana, manjina. - *Mardiana é forma hipotética, não foi registrada uma única vez na Microrregião de Viçosa. - Maldiana>madiana. Não é explicável a síncope da lateral medial -l-. Economia lingüística?

Madiana>*mãjina>manjina. A vogal inicial assimila a nasalidade do m- inicial -a->-ã->-an, fato comum na diacronia da língua portuguesa.

-mal-de-ano+ / mal-do-ano+

mal-de-ano> -maldiano+

maldiana+> madiana+ > */mãjina /> manjina -mardiane+

- mardiano+>

-marjiana+

 

C - BERNE

C1 - Berne é o verbete dicionarizado.

C2 - Alguns dicionários ligam berne como originário de vermis, outros nada dizem. Nascentes registra: “Para Beaurepaire Rohan é corruptela de verme, opinião que Macedo Soares repete”. Machado opina como Nascentes.

C3 - Berne aparece na fala rural com as variantes:

Berno Verne Verno

Berne>verne e berno>verno. São variantes comuns na fala rural com degeneração do b->v- inicial. Na fase atual da fala popular degeneração ocorre, em alguns vocábulo tanto como b inicial ou medial como com o v. Na fala diária muitos vocábulos tem as duas formas sem constituírem sinônimos como: basculante e vacilante; vassoura e bassoura; travesseiro e trabisseiro. Essa alternância não é comum a todas as palavras, como ocorria na fase evolutiva.

b) Berne>berno; verne>verno. Berno e berno são masculinos. Há assimilação do -e>-o, por analogia com a morfema masculino -o.

-berne+>berno+

berne>

-verne+>verno+

 

E - CHURRIO

E1 - Churrio. Este verbete só aparece no VOLP-ABL. O Michaelis 2000 registra-o com o significado de “diarréia que ataca o gado e as pessoas”. Os demais dicionários não o registram e nem os etimológicos.

E2 - A fala rural usa churrio com as variações:

enchurrio enchurri inchurrio

Churrio > enchurrio. Alguns informantes apresentam as demais formas com prótese de en-/in-, talvez por analogia com enxurro, enxurrada, uma vez que churrio tem um mesmo traço semântico: coisa líquida e suja e às vezes até mesmo fétida.

Enchurrio>enchurri. A apócope -io>-o ocorre talvez por economia lingüística. É comum ouvir alguns vocábulos em -io pronunciados sem a vogal final: Dario>Dari. Na fala rural é ainda comum ouvir-se propi no lugar de próprio.

Enchurrio > inchurri. Como a alternância de e>i e i>e na fala mineira é comum em sílaba átona pretônica: menino>mininu, pode ter ocorrido inchurri.

-churrio+

churrio> -inchurio+

-enchurrio+> -enchurri+

 

F - Ferrugem

F1 - O verbete dicionarizado é ferrugem

F2 - A fala rural apresenta as alterações:

ferruge ferrujo

Ferrugem>ferruge. Tendência popular rural reduzir o ditongo final -em>/-ẽy/>-e que perde a nasalidade. O mesmo vem ocorrendo até na fala culta descontraída com viage, garage, folhage, fulige... Os avisos em portas de garagens de muita residência de classe média-alta refletem essa tendência: “Não estacione: GARAGE” ou simplesmente: “GARAGE”.

Ferruge >ferrujo. O masculino ferrujo certamente surgiu por influência do masculino do substantivo ferro de amplo uso.

Ferrugem não foi registrado uma única vez na fala rural.

 

-ferruge+

ferrugem>

-ferrujo+

G) GABARRO / GAMBARRA

G1 - Gabarro, gambarra e gabarra são dicionarizados. Os três verbetes apresentam significações diferentes: 1- “gabarra sf 1 Embarcação de vela e remos de fundo chato”; 2 - “gabarro sm Vet Apostema que ataca os pés dos cavalos e bois, caracterizado por inflamações na pele, nas cartilagens ou nos tendões. Var: gavarro”; 3 - “gambarra” sf Reg (Amazonas) Grande embarcação de dois mastros para transportar gado.

G2 - Não há unanimidade na dicionarização dos três vocábulos.

Aurélio, Mérito, Michaelis registram os três verbetes como em G1. Só Michaelis cita: “gavarro variante de gabarro”.

DBLP-Globo registra gabarro e gambarra, com significados de G1.

Magalhães registra gabarra e gabarro com as significações de G1.

Larousse e Koogan/Houaiss registram gabarra, com significado de G1.

G3 - A fala rural apresenta: Gabarro Gambarra

a) Os vocábulos têm a mesma significação: “doença infecciosa que ataca as patas do gado”.

b) Por metonímia, gambarra passou a doença, porque nela o gado a contraía.

c) Outra hipótese é a semelhança fonética de gabarro/gambarra que pode ter leva- do gambarra ao mesmo significado de gabarro: nome da inflamação bovina.

d) Na fala rural não aparece gabarra.

G4 - Gabarro, gabarra, gambarra. A tendência normal o uso do morfema feminino -a nos nomes de doença. Por hipótese, a distinção entre os dois verbetes pode ter surgido para se evitar a sinonímia entre gabarro para doença e gabarra para embarcação.

 

H) GARROTILHO

H1 - Garrotilho é o verbete dicionarizado de doença que ataca os eqüinos. Já o Dicionário Enciclopédico Brasileiro e Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (Globo) da uma definição genérica: “garrotilho m. Veter.Difteria dos animais; crupe”.

H2 - A fala rural ao lado de garrotilho apresenta as variantes alofônicas: garrutilho garroti garrutio garruti garrutia

Garrotilho>*garrotiio>garrotio>garrutio. Houve iotacismo da palatal -lh->-i- e depois a crase -ii->-i-.

Garrutio/garrutia. É provável que o feminino de a doença de garrutio tenha levado o masculino garrutio para o feminino: garrutia.

Garroti e garruti. Há uma ligeira tendência rural na apócope da vogal átona final -io/-ia quando o acento recai na vogal prepositiva do hiato, como foi mostrado acima em churrio>churri. Talvez economia lingüística?

Na fala popular mineira, as pretônicas mediais -e/o-, inicial ou medial, tendem ao alceamento de -e-/-o->-i-/-u-. Garrotilho>garrutilho; garrutilho> garrutio / garrutia; garroti>garruti.

 

-garrotio+>garroti+

garrotilho> -garrutia+

-garrutilho+>garrutio+> -garruti+

 

I) IMPIGE / IMPINGE / IMPINJA

I1 - O verbete dicionarizado é impigem, não registrado na fala rural.

I2 - Variantes alofônicas rurais: Impige Impinge impinja

impigem>impinge. Ocorre a nasalidade da vogal tônica por assimilação da nasa-lidade da vogal inicial; redução e desnasalização do ditongo final -em>/-ẽy/>-e.

impinge>impinja. O -e final feminino passa ao morfema ­-a por analogia.

-impige+

impigem>/ĩpigẽy/> -impinge+

-impinja+

M) MASTITE / MAMITE / MAMICHE / MAMIFA

M1 - Mamite e mastite são palavras técnicas dicionarizadas usadas também mo meio rural. São verbetes técnicos com o sufixo -ite que exprime inflamação na maminha da vaca. Mastite é menos usada e mamite é difundida.

M2 - O meio rural apresenta a variante mamiche e cria o neologismo mamifa.

Mamite>mamiche. A palatalização do -t- ocorre pela característica mineira de pronunciar -t- e -d-, seguidos de -e/-i, como dorso-palatais:-te,-ti >/-tchi/,/-dji/.

A palatalização em /-š-/ aparece provavelmente por influência de falantes de outras regiões, especialmente sul da Bahia ou pode ter ocorrido -te>/-tchi/>-ši/, originando, na fala rural, mamite>/*mamitchi/>mamiche.

Mamifa. Há no espectro semântico de mamite, o neologismo popular em mamifa, só registrado em algumas propriedades rurais de Amparo do Serra, MG. O seu significado é marcado também pela inflamação do úbere que ocorre especialmente em novilha na sua primeira cria. A inflamação é tão acentuada que a inchação do úbere nivela as tetas, ficando tão somente uma marca mais escura, como a pesquisa pôde constatar. Segundo os informantes, essa inflamação não ocorre sistematicamente nas novilhas e é muitíssimo raro depois da primeira cria. Após a cria, é necessário muito cuidado para que a novilha não perca as tetas e mesmo o úbere, tornando-a inútil ao plantel.

-mamite+

mamite>

-mamiche+

Obs.: Cochonilha comporta um estudo à parte, não só por suas inúmeras variações populares, mas também pela complexidade e, diria mesmo, confusão entre o que dizem os dicionários tanto na origem da palavra como nas formas e conceitos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALLY, Charles. Linguistique générale e linguistique française. Berna : 1950.

BORBA, Francisco da Silva. Pequeno vocabulário de lingüística moderna. 2ª ed. rev. e aum. São Paulo : Nacional, 1976.

CAMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 8ª ed. Petrópolis : Vozes, 1879.

Coseriu, Eugênio. Sincronia, Diacronia e História. Rio de Janeiro : Presença, 1979.

DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de lingüística. São Paulo : Cultrix, 1978.

LLORAC, E. Allarcos. Fonología española. Madrid : 1954, p. 97.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 4a ed. São Paulo : Cultrix, 1972, p. 100.SERAFIM DA SILVA NETO E A DIALECTOLOGIA

Joseph Ildefonso de Araújo (UFV)

 

No dia 26 do corrente, ao telefonar para o Presidente do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos, Prof. Dr. José Pereira, solicitou-nos que substituíssemos o Prof. Rosalvo que precisou viajar com urgência para os Estados Unidos, não podendo, assim, proferir a palestra que faria neste Congresso.

Aceitamos a incumbência um pouco na ousadia, dado ao exíguo tempo para preparar um trabalho que pudesse representar o valor do Prof. Rosalvo e estar à altura desse magnífico V Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. Este Congresso é uma homenagem ao grande Filólogo Prof. Serafim da Silva Neto que traçou um caminho que não pôde seguir, pois a morte o colhia aos 43 anos de idade, quando já havia produzido obras de grande valor como Fontes do Latim Vulgar e ainda não tinha 20 anos de idade. Sílvio Elia ao falar Serafim diz que “o seu brutal desaparecimento foi realmente uma gravíssima perda para os estudos lingüísticos no Brasil, de que até hoje não nos refizemos”. Serafim deixou-nos “obra vasta e valiosa” que apesar do curto tempo que viveu, foi obra de “profundidade e solidez com que a realizou”. Prof. Dr. Manual de Paiva Boléo, ao lamentar a morte de Serafim, afirma: “Se a morte não o arreba-tasse prematuramente (...) Serafim da Silva Neto seria o animador e orientador superior dos futuros atlas regionais do Brasil”. Serafim não era “o especialista que só se interessa pelos seus assuntos estritamente profissionais. ... ao contrário era capaz de dissertar sobre atlas lingüísticos, como sobre corrida de cavalos ou jogo de xadrez”. Não se pode deixar de ressaltar o que diz Sílvio Elia ao analisar a posição de Paiva Boléo, revela o aspecto humano do grande cientista que foi Serafim: “Serafim mantinha vivas palestras não só com os colegas da especialidade e sobre assuntos técnicos, mas também com pessoas de outras preocupações, pois, como poucos, sabia fazer vibrar a tecla do humano. Era um psicólogo nato.”

Não discorremos sobre a obra de Serafim e falaremos sobre o seu valor e nem lamentaremos a lacuna que a sua morte provocou no meio lingüísticos do Rio de Janeiro e no Brasil. Serafim nos legou, em 1957, com o seu “Guia para estudos dialectológicos”, o caminho que tem sido norteado os que se dedicam à pesquisa Dialectológica.

No preâmbulo da “Introdução” do Guia, dizia: “No Brasil,... é preciso, antes de mais nada, criar mentalidade dialectológica, preparando um ambiente favorável às pesquisas de campo”.

Criar uma mentalidade dialectológica era o pensamento de Serafim. Este pensamento não caiu no vazio, pois, são inúmeros os Atlas Lingüísticos Regionais que têm surgido atual-mente por todo o Brasil.

Carlota Ferreira e Suzana Cardoso, em A Dialetologia no Brasil, dividem a história dos estudos dialetais no Brasil em três fases: Primeira Fase de 1826 a 1920; Segunda Fase de 1921 a 1951; Terceira Fase a partir de 1952, com o Decreto 30.643 de 10 de março de 1952. È bem provável que esta terceira fase se encerre em 1966 e marque o início da Quarta Fase com a Criação do Comitê Nacional do Projeto ALiB, o Atlas Lingüístico do Brasil.

O Guia para estudos dialetológicos propõe as tarefas mais urgentes para a concretização dos estudos dialetais no Brasil:

1 - Realização de sondagens preliminares.

2 - Recolha de vocabulários seguindo as exigências técnicas.

3 - Elaboração de monografias etnográfico-lingüísticas sobre determinadas áreas semânticas e sobre determinados falares de região.

4 - Elaboração de atlas regionais.

5 - Elaboração de atlas nacional.

Seguindo essa orientação, iniciou-se na Microrregião de Viçosa, Minas Gerais, uma pesquisa dialectológica, tendo por finalidade inicial elaborar um Vocabulário Popular-Técnico e Técnico-Popular, com os nomes populares rurais de doenças de criações e culturas agrícolas. No entanto, o material colhido nas 210 propriedades rurais da microrregião, levou a equipe de pesquisa a ampliar o seu campo utilizando os dados recolhidos para numa tentativa de elaborar atlas lingüísticos municipais rurais.

A primeira tentativa foi realizada com o levantamento dos dados de quatro municípios da microrregião de Ubá. Foram eles: Astolfo Dutra, Rodeiro, São Geraldo e Tocantins. A equipe de pesquisa chegou a ter cinco alunos de Iniciação Científica do CNPq.

Atualmente, estamos trabalhando nessa pesquisa, tentando levar a cabo a iniciativa inicial elaborando o Atlas Municipal Rural de Viçosa, que servirá de modelo para os demais atlas municipais.

 

DIALECTOLOGIA

A dialectologia, segundo Dubois (p. 185),

designa a disciplina que assumiu a tarefa de descrever comparativamente os diferentes sistemas ou dialetos em que uma língua se diversifica no espaço, e de estabelecer-lhe os limites. Emprega-se também para a descrição de falas tomadas isoladamente, sem referência às falas vizinhas ou da mesma família.

Dubois enfoca dois aspectos na dialectologia: a) a descrição dos diferentes sistemas ou dialetos em que se diversifica uma língua; b) o estabelecimento dos limites de um espaço geográfico de uma fala que pode ser tomada isoladamente sem se preocupar com os falares vizinhos ou com os que pertençam à mesma família lingüística.

Borba (p. 31) diz que a dialectologia é “o estudo dos sistemas lingüísticos em suas variações geográficas ou sociais”. Como Dubois, fala sobre os sistemas lingüísticos no seu espaço geográfico que abrange a geografia lingüística e sua demarcação em atlas lingüístico, e os aspectos sociais que possam influenciar as variações das falas.

Mattoso (CAMARA JR, p. 94-95) define a dialectologia como “o estudo do arrolamento, sistematização e interpretação dos traços lingüísticos dos dialetos”. Apresenta duas técnicas para o desenvolvimento da dialectologia: a da Geografia Lingüística que busca a distribuição geográfica de cada traço lingüístico dialetal, consolidado nos ATLAS LINGÜÍSTICOS, e a da ”descrição dos falares por meio de monografias dedicadas a uma dada região” compondo gramáticas e glossários regionais.

A dialectologia estuda, pois, as variações lingüísticas delimitadas no espaço geográfico e nos agrupamentos sociais dos diferentes sistemas lingüísticos ou dialetos que caracterizam as diversificações de uma língua, restritas ao espaço geográfico que ocupa. Seu campo de estudos é, conseqüentemente, os falares regionais com suas delimitações geográficas, caracterizadas por diferenças próprias na fonética, no léxico, na gramática...

 

GEOGRAFIA LINGÜÍSTICA - ATLAS LINGÜÍSTICO

Decorrência natural da Geografia Lingüística são os Atlas Lingüísticos que registram a particularidade de cada item lingüístico que aparece num determinado ponto de um território.

Dubois (p. 78) fala dos elementos que devem compor um atlas lingüístico:

(1) um questionário indicando as noções cujas denominações se devem extrair dos informantes, os tipos de frases que devem deles obter, as conservações a travar; (2) uma determinação dos pontos de inquérito e das pessoas interrogadas; (3) e, como parte essencial, os mapas lingüísticos nos quais se registram ponto por ponto as formas, as palavras e os tipos de construção registrados.

A pesquisa dialectológica clássica determina o que expõe Dubois. Nossa pesquisa, no entanto, foge em alguns aspectos do que ele expõe porque ela não é feita em um aglomerado urbano social com mínimo de 700 moradores, para alguns, outros exigem mais de 1000. O Esboço do Atlas Lingüístico de Minas Gerais do Prof. Zágari exige aglomerados urbanos com mais de mais de 2000 habitantes. Algumas sedes de município jamais poderiam servir de local de pesquisa porque possuem menos de 2000 habitantes. Esta foi realizada em propriedades rurais, que hoje, com o êxodo rural, não vai além da família no proprietário que é também reduzida (cinco a oito pessoas), em regra e em poucas aparecem os colonos. A escolha do informante não pôde ser determinada como manda a pesquisa clássica. O informante era quase sempre o proprietário.

 

DIALECTOLOGIA E MUTAÇÃO LINGÜÍSTICA

As línguas mudam? E podem as línguas vivas sofrer mudanças? Por que mudam as línguas? Como se operam as mudanças?

No mundo da comunicação lingüística, cada agrupamento humano tem sua linguagem própria, suas expressões características. As divergências que aparecem no ato de fala manifestam-se em todos os setores da convivência humana, até na restrita área de uma família, como já foi comprovado por Rousselot.

Já o saber técnico-científico, com sua linguagem eivada de nomenclatura e terminologia próprias e universais não está tão sujeita a alterações como a fala cotidiana de uma comunidade lingüística. Isso acontece porque o saber científico é uma atividade humana que não tem fronteiras, tornando-se universal e pertencente a toda a raça humana. É a ciência para o homem, ser capaz de conhecer, sua função primacial. O homem busca o saber, o conhecimento, a ciência. Esta a serviço do homem.

O conhecimento passa pela língua e cada língua tem, para seu uso, uma gama de termos e expressões gerais e de generalidades que se estende para fala diária. Esta é, no entanto, mesclada de mutabilidades que revelam o dinamismo a que toda língua viva está sujeita. Ora, o que é dinâmico não pode ser estável. No entanto, a língua se apresenta como um paradoxo - imutabilidade dinâmica, sujeita a modificações.

Eugênio Coseriu aborda a condição de mutabilidade quando diz que “ela é característica essencial e necessária da língua” porque, continua, “a língua não está feita, mas sim, faz-se continuamente pela atividade lingüística”. Afirma, ainda, que “a língua muda porque é falada e o falar é atividade criadora, livre e finalista, e é sempre novo” (Coseriu, 1979, p. 63).

Todavia, a mudança na língua só é possível porque ela é lenta, gradual, quase imperceptível na comunidade onde ela ocorre. Portanto, a mutabilidade lingüística é o reflexo que aparece em todo e qualquer agrupamento lingüístico onde a língua é usada e, se usada, é viva e cheia de sutis alterações que a vão modificando lentamente.

A mutabilidade da língua se manifesta nas variações regionais da fala que, dentro do arcabouço imutável, apresenta variantes contínuas da fala. São variações que se manifestam no aspecto fônico, morfológico ou sintático e, de modo mais acentuado no lexical e semântico. É a “lei do menor esforço”, ou melhor, a economia lingüística provoca as mutações que se processam de modo lento e persistente, criando as variações na linguagem, os regionalismos, os dialetos.

Dentre as variações, serão focalizadas as lexicais que implicam na criação de novos signos ou atribuindo novas conotações para signos já existentes. As modificações de signos ou a sua criação trazem distúrbios na comunicação que podem, às vezes, torná-la incompreensível. Serão focalizados os alofones que aparecem na alteração do significante, às vezes bem acentuada. Pode acontecer que haja alterações fonéticas tão grandes num feixe de fonemas de um vocábulo que este se torna quase incompreensível ou irreconhecível em relação ao seu étimo primitivo. No entanto, ambos coexistem diacronicamente na linguagem, com um aqui e outro acolá. Há exemplos desse fato na pesquisa rural como, por exemplo, mal-de-ano>manjina.

Pode-se focalizar, ainda, o comportamento das duas linguagens. De um lado, a científica que progride a cada dia, a cada hora, criando novos termos e incorporando-os a seu universo lingüístico-cultural. De outro, a linguagem da fala diária que exprime seus atos de criação, seus sentimentos, sua vivência do dia a dia, arrastando sua linguagem tão lentamente, com a paciência de quem espera uma árvore crescer e dar seus frutos. Não é de se estranhar que a linguagem, utilizada por todos, inclusive por aqueles que a dominam em todas as suas possíveis nuanças por mais sutis que sejam, está sujeita a mutações mas sempre de modo lento e gradual.

Bally afirma que “les langues changent sans cesse et ne peuvent funcioner qu’en ne changeant pas” (BALLY, 1950, p. 18.). Sofrer mutações é, pois, um “continuum” que caracteriza toda língua viva, e é a condição básica para sua sobrevivência. Sendo a língua um sistema de comunicação constante, não deveria, normalmente, sofrer mudanças, porque “... a língua é um organismo sistemático em que tudo está relacionado entre si, e o seu objeto é a compreensão por parte da comunidade em que é falada, dever-se-ia esperar a sua estabilidade como sistema que cumpre adequadamente sua função” (LLORAC, 1954, p. 97). Essa estabilidade, entretanto, não ocorre porque há interferência de fatores externos de instabilidade, o que, paradoxalmente, contribui para que o sistema lingüístico, equilibrado por definição, não caia na estabilidade perpétua, nem na imobilidade.

Llorac, citado por Coseriu (p. 16.), faz a distinção entre os fatores externos que atuam sobre a língua. Os primeiros motivam a mudança e reconstituem o sistema perturbado em sua estabilidade e imutabilidade. É o próprio Saussure quem afirma: “em si mesmo, o sistema é imutável.” (SAUSSURE, 1972, p. 100.) Essa é, no entanto, uma concepção estática da língua porque nela se verifica mudança real. E no dizer de Coseriu (p. 19.):

a língua que muda é a ‘língua real em seu existir concreto’. Mas esta língua não pode ser isolada dos ‘fatores externos’ - isto é, de tudo aquilo que constitui a fisicidade, a historicidade e a liberdade expressiva dos falantes - pois ela só se realiza no falar.

Coseriu distingue, ainda, a língua abstrata (que não muda) e a língua real (que muda). A primeira não é irreal, ela existe no interior de cada falante, onde jazem todas as possibilidades permitidas pela estrutura interna da língua que os falantes usam individualmente provocando alterações e mudanças “na língua real em seu existir concreto” (Coseriu). Essas alterações são lentas e progressivas e refletem uma tendência geral dos falantes e que condizem com a afirmativa de H. Paul, citado por Coseriu (p. 19.): “Toda língua [ou melhor: todo falante] preocupa-se constantemente em eliminar irregularidades inúteis para criar para o equivalente funcional a mesma expressão oral”. Isso leva a concluir que qualquer alteração na língua só pode existir partindo dos seus utentes que “impõem” (inconscientemente) as mudanças a que as línguas estão sujeitas. Coseriu reconhece essa realidade quando diz: “nunca se viu uma gramática que se modificasse por si mesma, nem um dicionário que se enriquecesse por conta própria” (p. 19.).

Pode-se acrescentar que nenhum filólogo, gramático, lexicólogo ou lingüista pôde ou pode tirar, modificar ou enriquecer uma língua, uma gramática ou dicionário com o mais tênue item lingüístico. O poder de criar que cada um desses estudiosos da língua pode usar, é o mesmo de cada falante de sua língua. Cada um deve buscar, nos seus estudos, o que é de usa geral ou particular, o que foi usado de acordo com as leis que subjazem em qualquer estrutura da língua, isto é, nas possibilidades de expressão manifestadas tanto na língua popular como na língua culta. Ambas vivem uma dinâmica contínua, ambas, com seu poder criador, enriquecem a língua de acordo com o que se sente e se vive no seu dia a dia, de acordo com os recortes da vida que a cultura apresenta. No entanto, há algumas expressões ou formas que são mais ou menos usadas na linguagem falada popular como na formal ou culta, falada ou escrita. Outras, todavia, são reflexos de modismos de época, de momentos passageiros que, por isso mesmo, têm vida efêmera.

As formas, ou melhor, os usos lingüísticos, tanto na linguagem popular como na formal ou culta são criações e realizações criadas pelos usuários de uma mesma língua. São recursos subjacentes, permitidos pela língua abstrata, sendo conseqüentemente, criações da língua real. As divergências entre as criações populares e as cultas, são, por sua vez, reflexos de contextos também diferentes que uma e outra linguagens podem realizar, de acordo com o recorte que cada um faz do seu mundo. Pode-se acrescentar que a diferença entre a linguagem culta e a popular reside no fato de externar aquela em apresentar um aspecto mais aperfeiçoado do belo lingüístico e esta uma fala comum, de uso diário e pragmático. Isso é possível porque “a língua real e histórica é dinâmica porque a atividade lingüística não é falar e entender uma língua, mas falar e entender algo de novo por meio da língua. Por isso a língua se adapta às necessidades expressivas dos falantes e continua a funcionar como língua na medida em que se adapta” (Coseriu, p. 94).

Coseriu mostra, ainda, que nada impede este ou aquele falante de criar ou alterar dentro da língua. Logo a seguir afirma: “O que não se ‘altera’ não tem ‘continuidade’ mas permanência, e carece de historicidade” (Coseriu, p. 94.). A língua é, pois, “enérgeia” e “dynamis” porque uma modificação se realiza, “não em algo já realizado, mas na técnica do fazer lingüístico” (Id. ib., 85)

Sobre a mutação lingüística, o mesmo Coseriu diz que “a mudança lingüística não é senão a manifestação da criatividade da linguagem na história das línguas” e a seguir acrescenta que “um estado de língua em projeção sincrônica não é ‘a’ língua, mas um corte transversal na língua que continua historicamente” (Id. Ib., 93).

Após essas considerações sobre o porquê que as línguas mudam, serão focalizados dois tipos de mudanças mais comuns que atingem as línguas no uso diário. De um lado, ocorrem as mudanças fônicas que caracteriza, no Brasil, os regionalismos da fala; de outro, aparecem mudanças lexicais que marcam, também, os regionalismos, não podendo falar ainda em dialetos, pois estes deveriam apresentam diferenças não só no léxico e na fonética mas também diferenças morfossintáticas e de modo especial na estrutura frasal a serem apresentados, oportunamente, em alguns momentos da fala.

Entre as duas mudanças, a fônica é facilmente assimilável. São alterações que ocorrem, na maioria das vezes, num ou noutro traço fônico que não chega a constituir característica pertinente, não prejudicando a comunicação. Às vezes, no entanto, a alteração fonética é realizada, em alguns lugares (em propriedades rurais), num feixe de fonemas de tal modo que da forma do vocábulo primitivo pouco resta aparentemente. Há vocábulos que sobrevivem com uma ou mais formas sincrônicas que trazem em si os traços de uma evolução diacrônica explicável, constituindo verdadeiras diacronias sincrônicas.

 

SINCRONIA - DIACRONIA

A mudança lingüística é característica de toda língua viva, falada por qualquer povo. Uma língua ao ser falada sofre um desgaste natural porque cada falante procura adaptar a fala às tendências regionais da sua cultura. Nessas tendências a língua sofre modificações lentas e suaves, quase imperceptíveis que aos poucos vai alterando a língua.

Uma língua falada por vários povos, em várias regiões, se altera a ponto de constituir-se em novas línguas, novos falares que muitas vezes não é compreendido entre os falantes de regiões diversas. Isso ocorre com os “espanhóis” das Américas e os “Ingleses” da Inglaterra, EUA, Índia, Austrália, etc. Nos EUA, cada região tem seu “inglês” próprio com características peculiares. Essas modificações alteram a língua em seus aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos, semânticos. É a diacronia: transformações ocorridas na sincronia da língua no momento em que é falada.

Acontece de um mesmo falante, como foi constatado na pesquisa rural, usar, até numa mesma frase, duas formas sincrônicas de fala para um mesmo item lexical ou para uma mesma estrutura de frase. O falante faz concordância, nominal ou verbal, entre determinado e determinante mas pode ocorrer a marca de gênero e/ou número só no determinante.

Existem simultaneamente a sincronia com a diacronia ou uma pancronia. Essa constatação vem colocar dúvidas no que Saussure expõe sobre a oposição entre sincronia e diacronia. Parece, como será apresentado mais adiante, que a posição da peças no tabuleiro de xadrez, no momento de novo lance, não diz bem a realidade de fala constatada na pesquisa. Só se o momento for determinado pelo momento em que cada vocábulo pronunciado e logo a seguir esse mesmo vocábulo terá, exemplo, uma alteração na sua parte fônica ou na sua marca de gênero ou número. Como exemplo: “Os minino e as mininas saiu” ou “Os minino e as minina saiu” ou “Os mininos e as minina saiu ou saíram”. Esses tipos de construção foram encontrados em várias frases emitidas por informantes. Não há uniformidade na sincronia pois ela apresenta estados de tendência evolutiva numa mesma frase. Há várias tendências diacrônicas em cada sincronia. As formas evolutivas aparecem num momento sincrônico e são tendências diacrônicas da evolução sincrônica. A sincronia revela alterações diacrônicas.

 

MICRORREGIÃO DE VIÇOSA

Na microrregião de Viçosa iniciou-se uma pesquisa dialectológica em 210 propriedades rurais de seus 20 municípios. O objetivo inicial era buscar dados sobre nomes populares rurais de doenças de criações e culturas agrícolas. Mas a riqueza de dados colhidos dos informantes, levou a equipe aproveitá-los para um levantamento geral das tendências da fala rural.

O objetivo da pesquisa foi ampliado a todas as sete microrregiões da Zona da Mata. A pesquisa teve seu início na Microrregião 62 de Viçosa, localizada na Mesorregião 12 da Zona da Mata de Minas Gerais. Portaria do IBGE, publicada 03.05.1990 nova apresenta nova divisão do Brasil em 31 Macrorregiões que formam Unidades da Federação. Cada uma destas está dividida em Mesorregiões, que se dividem em Microrregiões com seu número variável de municípios. O Estado de Minas Gerais é a Macrorregião 31 e passou a ter 12 Mesorregiões:

01 - Mesorregião do Noroeste de Minas

02 - Mesorregião do Norte de Minas

03 - Mesorregião do Jequitinhonha

04 - Mesorregião do Vale do Mucuri

05 - Mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba

06 - Mesorregião Central Mineira

07 - Mesorregião Metropolitana de Belo Horizonte

08 - Mesorregião do Vale do Rio Doce

09 - Mesorregião do Oeste de Minas

10 - Mesorregião do Sul/Sudeste de Minas

11 - Mesorregião do Campo das Vertentes

12 - Mesorregião da Zona da Mata

A Mesorregião 12 está dividida em 7 Microrregiões:

060 - Microrregião de Ponte Nova

061 - Microrregião de Manhuaçu

062 - Microrregião de Viçosa

063 - Microrregião de Muriaé

064 - Microrregião de Ubá

065 - Microrregião de Juiz de Fora

066 - Microrregião de Cataguases

A Microrregião de Viçosa-062 foi escolhida para o início da pesquisa. Abrange 20 Localidades ou Municípios, numa extensão territorial aproximada de 4.763,8 km2. Cada Localidade tem sua numeração alfanumérica do IBGE, um numero dado pela pesquisa e, entre parênteses, o de propriedades pesquisadas.

 

Localidades da Microrregião

01 - 0210.0 - Alto Rio Doce (16 propr.) 11 - 4830.1 - Paula Cândido (10 propr.)

02 - 0250.6 - Amparo do Serra (10 propr.) 12 - 4880.6 - Pedra do Anta (09 propr.)

03 - 0370.2 - Araponga (09 propr.) 13 - 5080.1 - Piranga (09 propr.)

04 - 0870.1 - Brás Pires(10 propr.) 14 - 5230.3 - Porto Firme (14 propr.)

05 - 1020.2 - Cajuri (08 propr.) 15 - 5310.3 - Presidente Bernardes (14 propr.)

06 - 1170.5 - Canaã (11 propr.) 16 - 5520.7 - Rio Espera (10 propr.)

07 - 1630.8 - Cipotânea (10 propr.) 17 - 6380.5 - São Miguel do Anta (09 propr.)

08 - 1670.4 - Coimbra (10 propr.) 18 - 6600.6 - Senhora de Oliveira (10 propr.)

09 - 2400.5 - Ervália (11 propr.) 19 - 6850.7 - Teixeiras (09 propr.)

10 - 3790.8 - Lamim (08 propr.) 20 - 7130.3 - Viçosa (16 propr.)

O número de propriedades foi determinado pela extensão territorial do município, perfazendo 210. As localidades foram demarcadas aleatoriamente nos mapas oficiais, adquiridos no IGA de Belo Horizonte. Todavia estabeleceu-se o critério da possível eqüidistância entre propriedades, para que se pudesse ter uma amostragem geral do município. Foi evitado, dentro dos possível, propriedades muito próximas da sede municipal.

Após o primeiro levantamento de dados referentes aos nomes de criações e culturas agrícolas, estamos trabalhando nos dados referentes à fala rural que apresentam uma riqueza muito grande nos aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos e semânticos.

A seguir, alguns aspectos de alterações em verbetes com variante alofônica.

 

VERBETES COM VARIANTE ALOFÔNICA

A variação fonética, com seus alofones, é um do aspectos mais dinâmicos da fala popular. Para Dubois, apresenta uma acepção mais ampla, dentre outras correntes lingüísticas porque “Cada fonema possui um número infinito de alofones, que têm em comum traços pertinentes desse fonema, mas que se diversificam, por outro lado, por variações não-pertinentes, mais ou menos importantes” (DUBOIS, 1978).

As alterações fonéticas não levam à alteração no significado, apesar de algumas vezes serem tão profundas que chegam a alterar a um feixe de fonemas, parecendo não haver nenhuma relação entre a nova forma com a do vocábulo primitivo.

As comunidades rurais atuais, em sua maioria, são por demais pequenas restritas à família do proprietário, com 4 a 8 pessoas, nelas incluindo pais e filhos e, às vezes, um ou dois auxiliares, vivendo um isolamento muito grande, pelas dificuldades de ir e vir e pela dificuldade jurídica de manter braços para o trabalho diário e inadiável. Isso não permite influências de um núcleo sobre o outro.

A seguir, observações sobre algumas palavras selecionadas da fala rural que despertaram maior atenção pelas tendências das transformações fonéticas regionais. São palavras referentes a doenças de criações e culturas agrícolas, comuns ao meio rural.

 

A - AFTOSA

A1 - Aftosa. Forma feminina dicionarizada originada de aftoso, usada na locução febre aftosa. Na fala rural é substantivado: “a aftosa, nome de doença bovina”.

A2 - O NDALP-1986 é o único a registrar: “Aftosa. [Fem substantivado de aftoso.] S. f. Febre aftosa”. Os mais recentes dicionários já registram aftosa como substantivo feminino. Estranhamente, Koogan /Houaiss-1994 e o DBLP-1993-Globo, só registram o adjetivo aftoso. Michaelis 2000 registra: “aftose sf (de afta+ose) Med Estado mórbido caracterizado pela formação de aftas” mas estranhamente registra: “aftosa sf (de aftoso) Med Designação vulgar de aftose”. O registro de aftose surpreende, pois a forma aftosa é de maior uso fala rural ou não. Nem o VOLP da ABL, nem o VOBLP de Aurélio registram aftose.

A3 - Na fala rural, aftosa apresenta as variantes fonéticas:

afetosa fitosa fetosa fitose

a) Aftosa > afetosa. A fala popular tende a desfazer os encontros consonantais, intercalando uma vogal (-e-/-i-) para consoante sem apoio vocálico. A anaptixe ou suarabácti é fato comum em muitas línguas. O japonês tem dificuldade de pronunciar encontros consonantais: bravo>buravo. O mesmo ocorre com tupis-guaranis que pronunciavam curuzu a palavra cruz, dando apoio vocálico a todas as consoantes. Essa tendência de desfazer grupo consonantal é comum na fala popular brasileira, adevogado / adivogado por advogado, adapíto por adapto, opíto por opto, pronúncias tidas e havidas por muitos na fala culta. A pesquisa encontrou, ainda, no meio rural: silivestri por silvestre, dificulidade por dificuldade, faculidade por faculdade.

b) Afetosa>fetosa, fitosa, fitose. A aférese do a- inicial ocorre pela sua deglutinação diante do artigo feminino a: a afetosa>a+afetosa> a fetosa.

Fetosa>fitosa, fitose. Na fala mineira é comum o alceamento do -e->-i- quando pretônico. Por isso as formas fitosa e fitose.

d) Fitosa>fitose. É comum nome de doenças terminados em -e. Por isso a tendência para o alceamento ou rebaixamento das vogais: -a>-e e -e>-a: fitosa>fitose, brucelose>brucelosa. (Há casos de informantes usarem duas formas).

-aftosa+

Aftosa> fetosa

-fetosa+> fitosa+>fitose+

 

B - MAL-DE-ANO

B1 - Mal-de-ano é vocábulo dicionarizado. Já Larousse e o Michaelis 2000, registram: mal-do-ano que não aparece em nenhum outro dicionário.

B2 - Mal-de-ano aparece na fala rural com as variantes:

mal-do-ano mardiano

maldiano marjiana

mardiane madiana

maldiana manjina

Mal-do-ano. Dois informantes “corrigem” a fala popular dizendo que “o povo fala errado porque o correto é mal-do-ano, doença que só ocorre quando bezerro sadio tem um ano de idade”. Esse posição dos informantes leva a se estranhar o registro dos dois dicionários acima. - Maldiano: é a forma de maior uso na fala rural; é o vocábulo fonológico em que se perde a noção da forma composta mal-de-ano; é a forma que leva às demais alterações rurais. - Maldiano>mardiano o -l, travando sílaba medial ou final, não tem comportamento uniforme na “sincronia” rural: pode sofrer rotacismo como em mardiano, mardiane e marjiana.

Maldiano>maldiana. Há acomodação do -a morfema de feminino de doença, a doença de maldiano>a doença maldiana>a maldiana. O mesmo ocorre com marjiana e manjina.

Maldiana>mardiane. A troca de -a>-e, analogia com os femininos em -e, indicando doenças, é comum no meio rural como antracnose, brucelose, ferruge(m), fitose, gomose, impinge, mamite, tracnose, verminose...

Maldiana>*Mardiana>marjiana. Na diacronia da língua portuguesa pode ocorrer a palatalização no grupo -di-, -ti- seguido de vogal: -di->j(i): mardiana>marjiana, manjina. - *Mardiana é forma hipotética, não foi registrada uma única vez na Microrregião de Viçosa. - Maldiana>madiana. Não é explicável a síncope da lateral medial -l-. Economia lingüística?

Madiana>*mãjina>manjina. A vogal inicial assimila a nasalidade do m- inicial -a->-ã->-an, fato comum na diacronia da língua portuguesa.

-mal-de-ano+ / mal-do-ano+

mal-de-ano> -maldiano+

maldiana+> madiana+ > */mãjina /> manjina -mardiane+

- mardiano+>

-marjiana+

 

C - BERNE

C1 - Berne é o verbete dicionarizado.

C2 - Alguns dicionários ligam berne como originário de vermis, outros nada dizem. Nascentes registra: “Para Beaurepaire Rohan é corruptela de verme, opinião que Macedo Soares repete”. Machado opina como Nascentes.

C3 - Berne aparece na fala rural com as variantes:

Berno Verne Verno

Berne>verne e berno>verno. São variantes comuns na fala rural com degeneração do b->v- inicial. Na fase atual da fala popular degeneração ocorre, em alguns vocábulo tanto como b inicial ou medial como com o v. Na fala diária muitos vocábulos tem as duas formas sem constituírem sinônimos como: basculante e vacilante; vassoura e bassoura; travesseiro e trabisseiro. Essa alternância não é comum a todas as palavras, como ocorria na fase evolutiva.

b) Berne>berno; verne>verno. Berno e berno são masculinos. Há assimilação do -e>-o, por analogia com a morfema masculino -o.

-berne+>berno+

berne>

-verne+>verno+

 

E - CHURRIO

E1 - Churrio. Este verbete só aparece no VOLP-ABL. O Michaelis 2000 registra-o com o significado de “diarréia que ataca o gado e as pessoas”. Os demais dicionários não o registram e nem os etimológicos.

E2 - A fala rural usa churrio com as variações:

enchurrio enchurri inchurrio

Churrio > enchurrio. Alguns informantes apresentam as demais formas com prótese de en-/in-, talvez por analogia com enxurro, enxurrada, uma vez que churrio tem um mesmo traço semântico: coisa líquida e suja e às vezes até mesmo fétida.

Enchurrio>enchurri. A apócope -io>-o ocorre talvez por economia lingüística. É comum ouvir alguns vocábulos em -io pronunciados sem a vogal final: Dario>Dari. Na fala rural é ainda comum ouvir-se propi no lugar de próprio.

Enchurrio > inchurri. Como a alternância de e>i e i>e na fala mineira é comum em sílaba átona pretônica: menino>mininu, pode ter ocorrido inchurri.

-churrio+

churrio> -inchurio+

-enchurrio+> -enchurri+

 

F - Ferrugem

F1 - O verbete dicionarizado é ferrugem

F2 - A fala rural apresenta as alterações:

ferruge ferrujo

Ferrugem>ferruge. Tendência popular rural reduzir o ditongo final -em>/-ẽy/>-e que perde a nasalidade. O mesmo vem ocorrendo até na fala culta descontraída com viage, garage, folhage, fulige... Os avisos em portas de garagens de muita residência de classe média-alta refletem essa tendência: “Não estacione: GARAGE” ou simplesmente: “GARAGE”.

Ferruge >ferrujo. O masculino ferrujo certamente surgiu por influência do masculino do substantivo ferro de amplo uso.

Ferrugem não foi registrado uma única vez na fala rural.

 

-ferruge+

ferrugem>

-ferrujo+

G) GABARRO / GAMBARRA

G1 - Gabarro, gambarra e gabarra são dicionarizados. Os três verbetes apresentam significações diferentes: 1- “gabarra sf 1 Embarcação de vela e remos de fundo chato”; 2 - “gabarro sm Vet Apostema que ataca os pés dos cavalos e bois, caracterizado por inflamações na pele, nas cartilagens ou nos tendões. Var: gavarro”; 3 - “gambarra” sf Reg (Amazonas) Grande embarcação de dois mastros para transportar gado.

G2 - Não há unanimidade na dicionarização dos três vocábulos.

Aurélio, Mérito, Michaelis registram os três verbetes como em G1. Só Michaelis cita: “gavarro variante de gabarro”.

DBLP-Globo registra gabarro e gambarra, com significados de G1.

Magalhães registra gabarra e gabarro com as significações de G1.

Larousse e Koogan/Houaiss registram gabarra, com significado de G1.

G3 - A fala rural apresenta: Gabarro Gambarra

a) Os vocábulos têm a mesma significação: “doença infecciosa que ataca as patas do gado”.

b) Por metonímia, gambarra passou a doença, porque nela o gado a contraía.

c) Outra hipótese é a semelhança fonética de gabarro/gambarra que pode ter leva- do gambarra ao mesmo significado de gabarro: nome da inflamação bovina.

d) Na fala rural não aparece gabarra.

G4 - Gabarro, gabarra, gambarra. A tendência normal o uso do morfema feminino -a nos nomes de doença. Por hipótese, a distinção entre os dois verbetes pode ter surgido para se evitar a sinonímia entre gabarro para doença e gabarra para embarcação.

 

H) GARROTILHO

H1 - Garrotilho é o verbete dicionarizado de doença que ataca os eqüinos. Já o Dicionário Enciclopédico Brasileiro e Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (Globo) da uma definição genérica: “garrotilho m. Veter.Difteria dos animais; crupe”.

H2 - A fala rural ao lado de garrotilho apresenta as variantes alofônicas: garrutilho garroti garrutio garruti garrutia

Garrotilho>*garrotiio>garrotio>garrutio. Houve iotacismo da palatal -lh->-i- e depois a crase -ii->-i-.

Garrutio/garrutia. É provável que o feminino de a doença de garrutio tenha levado o masculino garrutio para o feminino: garrutia.

Garroti e garruti. Há uma ligeira tendência rural na apócope da vogal átona final -io/-ia quando o acento recai na vogal prepositiva do hiato, como foi mostrado acima em churrio>churri. Talvez economia lingüística?

Na fala popular mineira, as pretônicas mediais -e/o-, inicial ou medial, tendem ao alceamento de -e-/-o->-i-/-u-. Garrotilho>garrutilho; garrutilho> garrutio / garrutia; garroti>garruti.

 

-garrotio+>garroti+

garrotilho> -garrutia+

-garrutilho+>garrutio+> -garruti+

 

I) IMPIGE / IMPINGE / IMPINJA

I1 - O verbete dicionarizado é impigem, não registrado na fala rural.

I2 - Variantes alofônicas rurais: Impige Impinge impinja

impigem>impinge. Ocorre a nasalidade da vogal tônica por assimilação da nasa-lidade da vogal inicial; redução e desnasalização do ditongo final -em>/-ẽy/>-e.

impinge>impinja. O -e final feminino passa ao morfema ­-a por analogia.

-impige+

impigem>/ĩpigẽy/> -impinge+

-impinja+

M) MASTITE / MAMITE / MAMICHE / MAMIFA

M1 - Mamite e mastite são palavras técnicas dicionarizadas usadas também mo meio rural. São verbetes técnicos com o sufixo -ite que exprime inflamação na maminha da vaca. Mastite é menos usada e mamite é difundida.

M2 - O meio rural apresenta a variante mamiche e cria o neologismo mamifa.

Mamite>mamiche. A palatalização do -t- ocorre pela característica mineira de pronunciar -t- e -d-, seguidos de -e/-i, como dorso-palatais:-te,-ti >/-tchi/,/-dji/.

A palatalização em /-š-/ aparece provavelmente por influência de falantes de outras regiões, especialmente sul da Bahia ou pode ter ocorrido -te>/-tchi/>-ši/, originando, na fala rural, mamite>/*mamitchi/>mamiche.

Mamifa. Há no espectro semântico de mamite, o neologismo popular em mamifa, só registrado em algumas propriedades rurais de Amparo do Serra, MG. O seu significado é marcado também pela inflamação do úbere que ocorre especialmente em novilha na sua primeira cria. A inflamação é tão acentuada que a inchação do úbere nivela as tetas, ficando tão somente uma marca mais escura, como a pesquisa pôde constatar. Segundo os informantes, essa inflamação não ocorre sistematicamente nas novilhas e é muitíssimo raro depois da primeira cria. Após a cria, é necessário muito cuidado para que a novilha não perca as tetas e mesmo o úbere, tornando-a inútil ao plantel.

-mamite+

mamite>

-mamiche+

Obs.: Cochonilha comporta um estudo à parte, não só por suas inúmeras variações populares, mas também pela complexidade e, diria mesmo, confusão entre o que dizem os dicionários tanto na origem da palavra como nas formas e conceitos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALLY, Charles. Linguistique générale e linguistique française. Berna : 1950.

BORBA, Francisco da Silva. Pequeno vocabulário de lingüística moderna. 2ª ed. rev. e aum. São Paulo : Nacional, 1976.

CAMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 8ª ed. Petrópolis : Vozes, 1879.

Coseriu, Eugênio. Sincronia, Diacronia e História. Rio de Janeiro : Presença, 1979.

DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de lingüística. São Paulo : Cultrix, 1978.

LLORAC, E. Allarcos. Fonología española. Madrid : 1954, p. 97.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. 4a ed. São Paulo : Cultrix, 1972, p. 100.