A REPRESENTATIVIDADE DO LOCUTOR-JORNAL
NA ENTREVISTA
ESTRATEGICA PRAGMATICAS NA ENUNCIACAO
DE O GLOBO E DO JORNAL DO BRASIL

Maria do Rosario Roxo (USP)

 

Pretende-se estudar a representatividade do locutor-jornal no contexto discursivo em que se encena o gênero entrevista nas páginas dos jornais O Globo e do Jornal do Brasil, jornais de publicação diária no estado do Rio de Janeiro. Na perspectiva da pragmática, os atos de linguagem engendrados pelo locutor são construídos não para transmitir conteúdos representativos do cotidiano mas para valorizar a imagem da instituição jornalística, abafando portanto as ameaças que possam desvalorizar seu lugar de reconhecimento no mundo de discursos. A ação do locutor-jornal se configura como uma estratégia persuasiva sobre o contexto discursivo do título e da introdução nas entrevistas. Desta maneira, tomar-se-á o estudo de Maingueneau (1996) acerca dos mecanismos da pressuposição e do discurso relatado como um trabalho que valida o dizer e os sentidos em cada ato enunciado pelo locutor-jornal (LJ).

 

1. A encenação das subjetividades

Analisaremos a subjetividade d'O Globo e do Jornal do Brasil, enquanto estão anunciando o discurso do entrevistado na encenação das entrevistas que se referem à eleição para o cargo de presidente da República em 1998.

Para se constituir como uma atividade verbal relativamente padronizada, o gênero entrevista é escolhido na mídia impressa para ser objeto de discussão de certos temas do cotidiano no campo da cultura, política, economia, esporte e saúde. No jornal, a encenação da entrevista é intermediada pelo querer-dizer da empresa jornalística nas circunstâncias sócio-históricas peculiares. Em conseqüência desta questão, o gênero entrevista passa a veicular um tratamento discursivo sobre o tópico, "em função de uma dada abordagem do problema (...), dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início [o gênero entrevista está] dentro dos limites de um intuito definido" (Bakhtin, 1992: 300). No jornal, a editoração da entrevista tem como parâmetro a escolha do tema e o modo como os recursos discursivos são instaurados na enunciação da página, objetivando um efeito persuasivo determinado, qual seja: o de produzir um efeito de verdade.

 

1.1 O jornal O Globo

Todo funcionamento discursivo-comunicativo se instaura por fazer parte de um processo concreto e ativo, no qual os sujeitos necessitam "negociar" para que o discurso seja compreendido com eficácia. É preciso ressaltar que é de um lugar discursivo que se efetivam os modos de presença dos sujeitos na cena enunciativa. Assim, o dizer só tem sentido se pertencer ao plano do social e não da ação individual de cada um dos parceiros das múltiplas interações.

Associado a uma formação discursiva e a um quadro de referências ideológicas, o enunciado estabelece um sentido específico, dependendo da realidade que se quer simular para o leitor numa conjuntura sócio-política. De um lugar social, o jornal O Globo é um sujeito que reproduz o cotidiano, garantindo certos sentidos no nível tanto do explícito quanto do implícito. Neste percurso, a cena enunciativa da entrevista é organizada com objetivo de alcançar algum efeito e LJ recorre a certas manobras da linguagem como os mecanismos do implícito para que o leitor "decifre" o que está por trás das palavras.

Analisando o discurso da entrevista no jornal, o locutor-jornal O Globo mostra-se-á de um jeito, em função dos conteúdos apresentados no título e subtítulo em OGL, Entr 1:

OGL, Entr 1: Lula defende estabilidade mas ataca Real"

Candidato do PT elogia política industrial americana como modelo de geração de emprego.

Pela encenação das opiniões de Lula na forma do discurso indireto (DI), O Globo se representa, reforçando lugares-comuns que orientam a compreensão dos fatos de uma maneira simplista. Os enunciados como título e como subtítulo mostram um modo de presença do locutor-institucional (LJ), qual seja: o de defender a posição do governo no que se refere à política econômica. Vemos que OGL é a favor da estabilidade econômica e da política americana de combate ao desemprego pela maneira como dispõe as informações através do operador mas e das formas verbais defender, atacar e elogiar, acentuando, deste modo, uma expressividade específica em relação às atitudes do governo de situação. No que se refere aos implícitos, o que se inscreve na disposição das opiniões do entrevistado é que, segundo O Globo, defender a estabilidade econômica pressupõe aceitar o Real e o subtítulo Candidato do PT elogia política industrial americana como modelo de geração de emprego tem como efeito persuasivo reforçar este ponto de vista.

Nesta perspectiva, o locutor O Globo constrói como quer a encenação da página, expressando um conteúdo semântico que atenda aos objetivos e ao interesses da empresa jornalística no que diz respeito a uma ideologia conservadora que mantém a imagem do governo de situação. Na dinâmica interacional, a entrevista é uma estratégia na qual são destacados assuntos do cotidiano com objetivo de reiterar abordagens genéricas ou lugares-comuns no que diz respeito à pessoa política Lula.

Em decorrência do contexto discursivo no título e no subtítulo, a subjetividade do jornal O Globo é reforçada na introdução na medida em que as formas verbais defender e continuar são moldadas pelo marcador temporal agora e pelo modalizador incondicionalmente:

O candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, agora defende incondicionalmente a estabilidade econômica mas continua a ser um crítico ácido do Plano Real, cujos desacertos o ajudariam a ganhar as eleições. (OGL, Entr 1)

Em relação ao tópico da entrevista, percebemos que tanto a chamada quanto a introdução manifestam a mesma orientação semântico-pragmática. No processo da constituição dos sentidos, o uso da palavra do outro em DI inscreve um modo de presença da instituição O Globo na cena enunciativa. Pelo jogo das imagens do entrevistado, LJ "reproduz" um discurso para revelar, no fundo, um modo de presença de si mesmo. É o caso da entrevista em análise em que a opinião do entrevistado se instaura na cena da página com objetivo de produzir um efeito de sentido: reforçar um modo de presença de O Globo em relação ao fato eleição presidencial.

 

1. 2. O Jornal do Brasil

O Jornal do Brasil é um sujeito institucional que objetiva discutir os problemas sociais que estão relacionados aos fatos do cotidiano. No título e na introdução da entrevista, vemos configurado um enunciador que privilegia a representação do contexto social no nível da reflexão e da crítica, pois, ao construir a cena enunciativa da entrevista, o Jornal do Brasil assume um tom que o particulariza em relação a outras empresas de comunicação impressa, qual seja: o de apresentar os fatos cujo efeito é contribuir criticamente para a compreensão da realidade.

O poder dos enunciados acentua um matiz dialógico que manifesta não só o posicionamento do locutor-jornal como também uma compreensão ativa e responsiva do processo eleitoral no país no contexto social:

JB, Entr 2: "Cidadão comum está abandonado"

O cidadão comum se sente abandonado pelo presidente. Isso é grave devido à nossa tradição política, em que o Executivo é o poder mais preservado". Ela diz ainda que FH corre o risco de perder o espaço junto à direita que o apóia para o candidato do PPS, Ciro Gomes, caso não seja "o homem da vitória certa".

No enunciação da página, o Jornal do Brasil instaura um modo de presença pela maneira de explicitar, discursivamente, as opiniões do entrevistado. Percebemos que o ethos de locutor institucional é constituído a partir de certas noções e atitudes de quem faz parte da política. É importante considerar que o percurso discursivo da página é constituído a partir das posições discursivas adotadas pelo jornal Jornal do Brasil. A fala do entrevistado é afetada pelo LJ-JB que a interpreta num tom para consolidar uma perspectiva sobre o tópico da entrevista. Do ponto de vista semântico, a enunciação da página do jornal remete a discursos que estão em circulação, traduzindo, por conseguinte, um quadro sócio-ideológico de confrontação ou de aceitação das idéias. Nesta condição, ao declarar Ela diz ainda que FH corre o risco de perder o espaço junto à direita que o apóia para o candidato do PPS, o locutor-jornal (LJ-JB) manifesta, além da percepção do entrevistado, o seu ponto de vista, reiterando o subentendido de que o governo FH está em baixa.

Quando se trata de constituir a entrevista no jornal, convém explicitar que o "dizer é algo completamente diferente de uma simples transmissão de informação" (Maingueneau, 1996: 94). Ao encenar as subjetividades, fica claro que a própria imagem das instituições O Globo e Jornal do Brasil é reiterada em função do que é encenado na página. O discurso veiculado no título, no subtítulo e na introdução se efetua como uma rede complexa de significações, na qual o efeito é abafar as diferenças ideológicas. Portanto, o jornal comunica os fatos do cotidiano, empenhando-se "constantemente em posicionar-se através do que dizem, a afirmar-se afirmando, negociando sua própria emergência no discurso (...), antecipando as reações do outro (...)" (Maingueneau, Op. cit., p. 21).

Assumir um tom discursivo depende, portanto, dos objetivos pretendidos pelo jornal. Na enunciação da entrevista, o ethos dos sujeitos O Globo e Jornal do Brasil delimita a compreensão da realidade, implicando a reprodução e a reiteração do jogo de imagens que a empresa jornalística constrói em favor de certas convicções e crenças. Sendo assim, os dizeres são mobilizados num quadro enunciativo propício, pois, enquanto "reproduz" a fala do entrevistado, a empresa jornalística se representa e se mantém como uma instituição de privilégio. Daí se instaura a constituição de um não-eu que se torna eu na medida em que o jornal "acolhe" o que é dito pelo outro por pura conveniência. No gênero entrevista, o modo de presença do jornal, do entrevistado e do leitor instaura uma relação dialógico-interacional com a finalidade de perpetuar um modo discursivo de falar sobre.

Na enunciação da entrevista, percebemos um trabalho interpretativo de LJ ao mobilizar a fala do entrevistado. O que se inscreve então é uma articulação da própria subjetividade, pois a disposição de LJ é agir sobre a subjetividade do entrevistado, uma vez que não é o conteúdo em si que figura a enunciação da entrevista, mas a subjetividade de LJ constituída para veicular posições que reforçam uma perspectiva do contexto sócio-histórico.

O Globo e Jornal do Brasil figuram subjetividades específicas como uma estratégia de proteção da própria imagem. A análise dos dados constata que as palavras do entrevistado se tornam dispersas e afetadas pela perspectiva de LJ. Na enunciação da entrevista, as intenções do locutor-jornal são visadas no percurso da encenação do diálogo entre entrevistador e entrevistado, intenções estas que orientam as subjetividades, regulamentando as práticas discursivas, dadas as posições ideológicas dos jornais de prestígio social.

 

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad.Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

------. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1995.

BRAIT, Beth . Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas : UNICAMP, 1997.

DUARTE JR, João-Francisco. O que é realidade. São Paulo : Brasiliense, 2000.

MAINGUENEAU, Dominique. O cenário de enunciação: a cenografia. In: O contexto da obra literária. Trad. Marina Appenzeller; rev. Eduardo Brandão. São Paulo : Martins Fontes, 1995.

------. O Discurso citado. In: Elementos da lingüística para o texto literário. São Paulo : Martins Fontes, 1996.

PARRET, Herman. Enunciação e pragmática. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al., Campinas : UNICAMP, 1988.