O UNIVERSO FEMININO NO PINCEL E NO PAPEL

Maria Aparecida Meyer Nascimento

 

Qualidades como a criatividade e a sensibilidade privilegiam os homens com a percepção de um universo externo, para o qual cada pessoa, possui uma representação interior de memórias associativas, de pensamentos e linguagens simbólicas, portanto, da experiência de viver. É nela que se originam as potencialidades criativas dos homens, criando riquezas de formas expressivas verbais como da literatura ou ainda, de outras formas da arte.

Penso que, ao estudar a literatura, os leitores não desenvolvem apenas interpretações das obras lidas, mas também adquirem a compreensão de como ela funciona ante a variedade de possibilidades de ocorrências representativas conforme sua relação com outras artes.

Umberto Eco diz que "apesar das diferenças óbvias quanto aos graus de certeza e incerteza, toda descrição do mundo (seja uma lei científica ou um romance) é um livro em si mesmo, aberto a outras interpretações" (ECO, 1993, p. 177).

Assim como a literatura, a pintura também está sujeita à reinterpretações. Num quadro, a identidade do que está representado é continuamente remetida para além, o significado sempre deslocado e a análise é um infindável desdobramento. Esse caráter infinito da linguagem constitui, exatamente, o sistema do quadro onde a imagem é criada. E poesia é expressar imagens num papel, é o instante mágico de criar emoções através da escritura. O fazer poético está sempre recomeçando.

Pretendo destacar o universo feminino pintando na tela o poema A Catedral de Colônia de Affonso Romano de Sant'Anna e, paralelamente, ir fazendo uma leitura poética de alguns quadros de Cândido Portinari. Os dois artistas desenvolvem suas obras voltados para uma temática social. Usam seus meios, a palavra e o pincel, para retratar a pobreza, a não-verdade essencial, o movimento cíclico dos oprimidos, a recuperação da historicidade da figura humana. O meu olhar volta-se para este aspecto: o diálogo entre a arte de Portinari e a de Romano de Sant'Anna que destacam a dimensão do corpo, no caso de minha visão interessada de agora, do corpo feminino.

O monumento catedral já é por si, uma marca feminina, ainda que portadora do elemento masculino exterior no desenho de suas torres, ainda assim freqüentemente associado à abóbada, símbolo nítido da feminilidade. Toda a forma estética do poema nos mostra as colunas de uma catedral. A duração de sua construção, ao longo de seis séculos, o que pode simbolizar a gestação, algo que nasce das entranhas: "A Catedral de Colônia renasce, se gera ou cresce de suas próprias paredes como uma caixa chinesa ou jogo infindo de espelhos" ( ROMANO DE SANT'ANNA, 1998, p. 126).

O quadro Mulher grávida simboliza "a espera de", o que está sendo gerado, o que vem de novo, premiando a força feminina de dar à luz, fazer nascer do interior do ventre tornado abóbada.

Mulher grávida, 1958

Acervo - Projeto Portinari

Na leitura da poesia convém ressaltar a familiaridade com que o "eu" do poeta se sente mulher quando se deixa encaminhar pela história: "Eu já estava ali sobre o meu berço com grinaldas e afetos, úteros e sementes, como a virgem no horto e a amada no quarto nua." (ROMANO DE SANT'ANNA, 1993, p. 133).

Em simbiose com a História se enlaçam as raízes corpóreas. A marca feminina na pintura de Portinari remete para uma leitura poética, atraindo-me para outras descobertas. O corpo feminino torna-se um nexo peculiar de cultura e reconhecendo-me nesse corpo, nasce um modo pessoal de interpretar esse universo na sua obra.

A "Catedral de Colônia" apresenta um diálogo social, expõe uma história. Ao contemplar a catedral, desentranha-se o eu que escreve a partir do sujeito que fala: "(...) que esta catedral é o corpo vivo da História e a história do próprio Eu" (ROMANO DE SANT'ANNA, 1993, p. 135).

O guia da voz central do poema é seu pensamento reflexivo, retratando um percurso que vai da cidade de Colônia, na Alemanha, a Minas Gerais, à cidade de Juiz de Fora.

As inter-relações entre o texto e a História, um dos fatores responsáveis pela ambivalência do texto literário e uma das formas de intertextualidade, são definidas por Júlia Kristeva, não só através do conceito de ideologema, mas também pelo conceito de "ambivalência": "a inserção da História (da sociedade) no texto, e do texto na história; eles representam para o escritor, uma única e mesma coisa." (KRISTEVA, 1972, p. 149).

Simultaneamente, o texto enquanto jogo, como diz Jacques Derrida, não só ratifica as inter-relações entre escritura e história, como também indica, explicitamente, a sua ambigüidade.

O quadro Mulher mostra o lado pessoal de pintar a figura feminina. A mulher, com os braços erguidos, demonstra clamor, não apenas por bênçãos divinas, mas também por seus direitos sociais no processo histórico.

 

Mulher, 1955

Acervo - Projeto Portinari

Criando imagens de des-repressão do corpo, sobretudo dirigidas à mulher para quem se volta, o poema recorre à contraposição entre a mulher angelical e a mulher sedutora: "É a Virgem Mãe ou mulher da vida?" (ROMANO DE SANT'ANNA, 1993, p. 133).O quadro Índia e mulata demonstra a "angelitude" eloqüente aliada ao estereótipo dessa imagem sedutora. Nota-se a inversão das raças no sentido de desmitificar a imagem do nudismo da índia, transportando os seus valores sensuais para a mulata.

Casamento na roça, 1944

Acervo - Projeto Portinari

A dificuldade feminina em fruir o amor é textualizada como algo que se tem que ocultar:

Tão-somente desliza sua fala pelas salas e adiante explica os gobelins tecidos por santas mãos de donzelas que de tão santas não percebem, que aí passaram quarenta anos sentadas bordando como aranhas ¾ seu próprio conto de fadas. (ROMANO DE SANT'ANNA, 1998, p. 140).

Em Mulher do pilão, a mulher pensante resigna-se à condição de "ser subjugado" na sua situação de femmina. A sociedade patriarcal deprecia a capacidade construtiva da mulher, como estratégia de manutenção de domínio que o homem sempre quis reservar para si próprio.

Mulher do pilão, 1945

Acervo - Projeto Portinari

Contudo, ela vem investindo na busca da constituição de sua identidade. O autoconhecimento vem promovendo uma ruptura com o modelo dominante, quer no espaço da experiência erótica, quer no espaço social.

Poeticidade e emancipação têm-se associado na construção da individualidade social da mulher, desmitificando o condicionamento redutor. A figura feminina, muitas vezes submissa, vem sendo substituída por outra que escuta a sua voz interna e enfrenta desafios:

Queria ver filosofar era ali no Catolé do Rocha e Nanuque ali onde mulher derruba boi a muque e enfrenta com o homem os torneios da própria fome onde a mulher aprende a ingaia ciência no curral da própria saia. (ROMANO DE SANT'ANNA, 1998, p. 143-44).

O quadro Casamento na roça mostra um padrão convencional de comportamento social limitativo para a mulher. A submissão, em particular da mulher brasileira, remete-nos para uma questão: a impossibilidade de alcançar-se.

 

Casamento na roça, 1944

Acervo - Projeto Portinari

Liberdade e sociabilidade constituem as aspirações femininas quando diferentes mecanismos de dominação aviltam a sexualidade da mulher, unindo-a simplesmente à procriação e à função materna.

Nas relações de poder, o domínio masculino passa a ser vivenciado pela mulher cristã como castigo pelo pecado que envolve culpa e sexo. A moral sexual cristã vem, historicamente, sustentando a supremacia do homem pelo ato de criação, impressa em versões da Bíblia: "Multiplicarei os sofrimentos do teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio" (Gênese, 1982, p. 51).

O trabalho poético de visualização da catedral se faz pela inserção da figura feminina destacando a plasticidade do texto: "A Catedral de Colônia é um oceano que ondeia uma sereia que canta e uma encalhada baleia." (ROMANO DE SANT'ANNA, 1998, p. 154).

O discurso erótico/feminino constrói-se com base na antítese entre o desejo da mulher e o que lhe oferece a sociedade masculina. Nesse fragmento o poeta tem como argumento analógico A cavalgada das valquírias de Wagner:

Como sonham alto essas valquírias! que sensuais e eqüinas, quando o dorso alteiam e cruzam pelos machos nas esquinas! que oblongas tetas! que escalgas coxas! que pupilas claras! que sorrisos fortes! que lindos manequins nessas vitrinas! que portentosas madonas não verteriam o leite da mulher amada no meu leito ¾ matando a sede do menino em Minas! (ROMANO DE SANT'ANNA, 1998, p. 156).

O quadro Mulher chorando alicerçado no caráter emblemático dado à natureza, pinta uma imagem de tristeza. Como toda natureza, a mulher localiza em si mesma a dicotomia que reúne, contraditoriamente, a alegria e a tristeza, o ódio e a paixão.

Mulher chorando, 1955

Acervo - Projeto Portinari

Já em Povo a imagem do vestido, com abertura na lateral, forma um diálogo entre a inocência e a sensualidade que afasta os recalques e valores condicionantes. Lança uma mulher confiante e segura de sua atuação na sociedade.

Povo, 1944

Acervo - Projeto Portinari

Este diálogo das artes da palavra e das formas visuais é sempre aberto, pois, como sempre é oportuno lembrar que a obra de Arte é fruto da livre e incontrolável capacidade criadora do homem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. Gênese, 3,16. 19ª ed. Trad. dos originais mediante a versão dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. São Paulo : Ave Maria ,1982.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo : Martins Fontes, 1993.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo : Perspectiva, 1971.

RICCIARDI, Giovanni. Lineamenti di una sociologia della produzione artistica letteraria. In: L'arte come conoscenza e costruzione sociale della realtà. Napoli : Legori, 1974.

SANT'ANNA, Affonso Romano de. A grande fala do índio guarani e a catedral de Colônia. Ed.comemorativa. Rio de Janeiro : Rocco, 1998.

SOARES, Angélica. Gilka Machado: um marco na liberação da mulher. In: A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro : DIFEL, 1999.

KRISTEVA, Julia. Le mot, le dialogue et le roman. In: Recherches pour une sémanalyse. Paris : Larousse,1972.

http://www.portinari.org.br . Os quadros que se encontram no corpo do ensaio são de direitos reservados ao Acervo do PROJETO PORTINARI, sendo utilizados somente para fins culturais.

 

Mulher grávida, 1958

 

Acervo - Projeto Portinari

Mulher, 1955

Acervo - Projeto Portinari

Casamento na roça, 1944

Acervo - Projeto Portinari

Mulher do pilão, 1945

Acervo - Projeto Portinari

Casamento na roça, 1944

Acervo - Projeto Portinari

Mulher chorando, 1955

Acervo - Projeto Portinari

Povo, 1944

Acervo - Projeto Portinari