A VERDADE DIVINA NA BÍBLIA
E SUAS MUNDANAS TRADUÇÕES: ESTUDO CRÍTICO
DE ALGUMAS TRADUÇÕES DA SANTA BÍBLIA

Rafael Lanzetti (UFRJ)

 

Introdução

Porque a palavra de D’’us é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração. (Hebreus 4.12)

A Bíblia Sagrada, livro-mor, regra de conduta e fé, a Palavra de D’’us e o Livro de Sabedoria dos cristãos de todo nosso vasto mundo é, sem dúvida, o livro mais lido, comentado, interpretado, combatido e perseguido de toda a história da humanidade. A Bíblia, cujo nome provém do termo biblia, o plural de biblio, i.e., livro, tanto em grego koiné quanto em moderno, está presente em todos os continentes, em mais de 350 países do mundo. O número de leitores ativos e passivos deste livro singular alcança a fenomenal marca de 4 bilhões de pessoas, quase dois terços da população mundial; seus escritos e poesias já foram traduzidos para todas as línguas oficiais e quase 8.000 dialetos e línguas não-oficiais já dispõem de toda ou parte da Escritura Sagrada.

Por ter tais características, a Bíblia compõe, então, a antologia de obras poético-históricas mais influenciadora do mundo. Civilizações ocidentais inteiras são baseadas em seus escritos: preceitos de ética e moral, fundamentos de direito e justiça, a organização social e familiar são inspiradas na Bíblia e aplicadas à Civilização Cristã Ocidental.

Portanto, quaisquer alterações, falhas e descontextualizações de interpretação e tradução do Cânone bíblico, influenciariam (positiva ou negativamente) dezenas de milhões de pessoas no mundo inteiro (principalmente ocidental - apesar da Coréia do Sul já ter, segundo estimativas, maioria populacional protestante). Tal influência pode ser, como muita vez o é, catastrófica, conduzir pessoas bitoladas a atos de extremo descontrole psicológico (regados com fanatismo), desrespeito de leis humanas em favor da Lei (aparentemente) divina etc.

Por este motivo preocupo-me, como muitos outros teólogos e estudiosos do Cânone bíblico, em trazer à atenção do leitor-cientista ou leigo curioso, relativizações de algumas chamadas “Verdades Absolutas da Bíblia”, por meio de comprovações de falhas e imperfeições no processo tradutório da Bíblia, ao longo de, pelo menos, 22 séculos.

 

Inadequações tradutórias na Bíblia

Para começarmos, utilizaremos um dos mais clássicos exemplos da ineficácia da tradução da Palavra de D''us, o trecho de João 21.15-17, quando Jesus indagou a Pedro três vezes perguntando-lhe se o amava. Observemos o trecho em Português:

15 Depois de terem comido, perguntou Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta os meus cordeiros.

16 Tornou a perguntar-lhe pela segunda vez: Simão, filho de João, tu me amas? Ele lhe respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Pastoreia as minhas ovelhas.

Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas? E respondeu-lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo. Jesus lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas.

Jesus pergunta a Pedro se ele o amava, e Pedro responde afirmativamente. Jesus o indaga uma segunda vez, e Pedro oferece a mesma resposta. Jesus, insistentemente, o questiona por uma terceira vez, e Pedro, já confuso ou irritado, o responde pela terceira vez. Por que teria Jesus insistido tanto nesta pergunta? Por que o indagou por três vezes usando a mesma pergunta?

Para respondermos, observemos o texto no original grego:

15 ote oun hristhsan legei tw simwni petrw o ihsouv simwn iwna agapav me pleion toutwn legei autw nai kurie su oidav oti filw se legei autw boske ta arnia mou

16 legei autw palin deuteron simwn iwna agapav me legei autw nai kurie su oidav oti filw se legei autw poimaine ta probata mou

17 legei autw to triton simwn iwna fileiv me eluphyh o petrov oti eipen autw to triton fileiv me kai eipen autw kurie su panta oidav su ginwskeiv oti filw se legei autw o ihsouv boske ta probata mou

Se observarmos os verbos sublinhados, podemos perceber que Jesus, na verdade, não fez a mesma pergunta e não obteve uma simples resposta. Em grego há pelo menos três verbos para o verbo português amar, ou três tipos diferentes de amor: éros, o amor carnal, de um homem para com uma mulher; filós, o amor entre irmãos, entre família, entre amigos; e ágape, o amor divino, perfeito, o amor de D''us para com os homens.

Neste sentido, Jesus pergunta a Pedro: “Tu me amas com amor divino, puro e verdadeiro?” e Pedro responde “Senhor, tu sabes que te amo como irmão.” Observe como o sentido intrínseco do texto foi completamente alterado com o auxílio desta elucidação. Poderíamos comparar tal situação a uma mulher, que após ver seu esperado marido chegar em casa depois de um longo dia de trabalho, pergunta “Você me ama?” e receber um mero “Eu gosto de você” como resposta.

Como poderíamos ter esta consciência diferencial em qualquer língua moderna ocidental (inclusive no próprio grego moderno) que utilizam apenas uma palavra para representar o complexo amor dos antigos? Somente os originais nos podem esclarecê-lo.

Este é um exemplo de quão frágil se torna nossa interpretação sem auxílio dos textos originais. Neste caso, observamos um processo de empobrecimento lexical, pois para três palavras gregas, só possuímos uma nas línguas modernas. O contrário, no entanto, também é possível, o enriquecimento lexical ocorre diversas vezes nas Escrituras Sagradas traduzidas. Observemos, como exemplo, este trecho de I Samuel 17.48-51:

48 Sucedeu que, dispondo-se o filisteu a encontrar-se com Davi, este se apressou e, deixando as suas fileiras, correu de encontro ao filisteu.

49 Davi meteu a mão no alforje, e tomou dali uma pedra, e com a funda lha atirou, e feriu o filisteu na testa; a pedra encravou-se-lhe na testa, e ele caiu com o rosto em terra.

50 Assim, prevaleceu Davi contra o filisteu, com uma funda e com uma pedra, e o feriu, e o matou; porém não havia espada na mão de Davi.

51 Pelo que correu Davi, e, lançando-se sobre o filisteu, tomou-lhe a espada, e desembainhou-a, e o matou, cortando-lhe com ela a cabeça. Vendo os filisteus que era morto o seu herói, fugiram.

Esta história, uma das mais conhecidas da Bíblia, demonstra o quanto D''us pode usar-nos não pelo que somos, mas pelo o que Ele é. O Senhor usou David, um menino franzino e jovem para enfrentar um gigante de mais de 2,5 m de altura, com seis dedos em cada mão, que fazia tremer o chão e aqueles que o contemplavam. Contudo, este texto nos apresenta uma curiosidade: David, após ter atirado a pedra na testa do gigante, este caiu ao chão, como nos diz o versículo 49. No versículo 50 lemos que David, usando a funda e a pedra, sem uma espada nas mãos o feriu e o matou. Logo em seguida, no versículo 51, lemos que David “...tomou-lhe a espada, e desembainhou-a, e o matou, cortando-lhe com ela a cabeça.” Ora, já não matara David o gigante anteriormente sem a espada? Teria David matado o gigante duas vezes? Por que morreu o gigante? Pela espada ou a funda?

Se observarmos o original hebraico, encontramos rápido e facilmente, uma vez mais, a resposta para nossas perguntas interpretativas. A palavra hebraica traduzida por matou é a palavra twm (muth). Na língua hebraica antiga, tal palavra era usada tanto para matar quanto para colocar à morte, isto é, expor o inimigo à morte iminente, sem necessariamente matá-lo. O texto referido diz-nos, na verdade, que David, usando a sua funda, feriu o gigante, e este caiu em terra. Provavelmente por causa de sua enorme queda, o gigante permaneceu atordoado, sem nenhuma possibilidade de reação. Por isso, a vitória de David já era, naquele momento, certa. David tinha colocado Golias à morte, sem matá-lo. No versículo seguinte, a mesma palavra é utilizada, agora com o real sentido de matar, pois David toma a espada de seu inimigo e corta-lhe a cabeça.

Neste exemplo, vemos como as línguas modernas possuem artifícios lexicais mais amplos para uma única palavra na língua original. Paráfrases como “...e David colocou Golias à morte iminente” poderiam muito bem ser utilizadas pelos tradutores responsáveis por este trecho.

Em nossos próximos exemplos, veremos como uma única e singular palavra pode nos oferecer margens amplas para interpretações não-ortodoxas. Tais trechos utilizados apresentam interpretações próprias, que não devem ser levadas ao extremo do radicalismo hermenêutico, ou poderão ser absurdamente mal utilizadas e inconseqüentes. Estas seguintes interpretações demonstram apenas como podemos absorver mais dos textos bíblicos se utilizarmos as técnicas e métodos que nos oferece a Hermenêutica Semântica.

Em primeiro lugar, começaremos com a criação do mundo, quando D''us disse “Ura:h ta:w Myms:h ta Myhla arb tysar:b”, ou “No princípio criou D''us os céus e a terra.” O verbo hebraico barah significa muito mais que criar, como nos remonta os grafemas em português. Barah é fazer aparecer do nada, fazer existir algo onde nada existia. O homem não é capaz de tal coisa, ele apenas modifica seu meio. Por isso, o verbo barah é raras vezes utilizado com referência a um homem e, mesmo assim, em sentido figurado, denotando forças sobrenaturais como a magia.

Além disso, encontramos no trecho referido, o primeiro dos muitos nomes de D''us: Elohim. Ora, qualquer estudante com conhecimentos primários de hebraico sabe que a terminação -im serve ao plural masculino. O nome Elohim, portanto, pode ser considerado plural, melhor traduzido como os Deuses. Existiriam então outros deuses? Estão os politeistas certos? O contexto prova que não. A palavra Elohim é utilizada todas as vezes que D''us intervém de maneira extraordinária na vida humana e na natureza, como no dilúvio, na destruição de Sodoma e Gomorra e na expulsão do homem do paraíso. Neste sentido, podemos concluir que, quando D''us influencia na história da humanidade de maneira extraordinária, as três pessoas da Santa Trindade, O D''us Pai, O Filho e O Espírito Santo, estão juntos e mesmo antes da criação do mundo estes já existiam. Uma tradução que desse conta do real sentido deste pequeno e importante versículo seria: “No princípio os Deuses (a Santa Trindade) fizeram, do nada, aparecer os céus e a terra.” Observe quanto significado perdemos quando lemos nossas versões modernas, amputadas das mais diversas características semântico-históricas.

Ainda na criação e no primeiro capítulo de Gênesis, lemos, no versículo 5: “dxa Mwy rqb-yhy:w bre-yhy:w hlyl arq Ksx:l:w Mwy rwa:l Myhla arqy:w”, ou “Chamou Deus à luz Dia e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro dia.” A palavra traduzida como dia nas línguas modernas é a palavra hebraica Mwy (yom). Em hebraico moderno, esta palavra significa um dia de 24 horas (note que, de acordo com o calendário judaico, os dias podem ter algumas dezenas de minutos a mais ou a menos, dependendo das fases da lua). Porém, na Bíblia, a palavra yom serve para expressar um espaço de tempo, originalmente não definido. Na maioria dos contextos onde tal palavra é encontrada, os espaços relativos de tempo são posteriormente mencionados. Gênesis é um dos poucos livros onde a palavra yom aparece sem qualquer definição física de tempo, podendo variar de um dia de 24 horas a 100.000.000 de anos. Se considerarmos a metáfora feita pelo próprio D''us em Salmos 90.4: “Pois mil anos, aos teus olhos, são como o dia de ontem que se foi e como a vigília da noite.”, poderemos dizer que o mundo foi criado em 6.000 dias ao invés de em apenas seis, ou até mais. O fato é: como podemos negar os fatos históricos se estão diante dos nossos olhos? Como podemos negar a existência dos dinossauros, que nunca viveram simultaneamente aos homens, se temos os fósseis para provar? E quanto à teoria da evolução? Estaria ela, então, total ou parcialmente correta ou é apenas uma outra invenção de mentes maquiavélicas? Perguntas para as quais um dia terei respostas, ao contemplar o meu Senhor.

Uma outra palavra há que causa polêmicas discussões, principalmente entre os judeus sobreviventes: o tetragrama de D''us, as quatro letras hebraicas, cuja pronúncia não mais sabemos, que eram pronunciadas uma vez apenas ao ano, no Yom Kipur, pelo Cohen Gadol, o Sumo-Sacerdote, dentro do Santo dos Santos, parte sacra do templo, quando invocava o Senhor para oferecer-lhe sacrifícios. Os judeus nunca pronunciam este nome (“Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.” [A palavra SENHOR em maiúscula foi utilizada para traduzir o tetragrama do texto original]), usando o nome Adonai somente em suas orações. Para qualquer outra situação, utilizam Hashem (literalmente O Nome, isto é, O Nome que não pode ser pronunciado) para se referirem a D''us. Note que a palavra D''us, Dio, Diós e Dieu das línguas latinas vernáculas têm sua origem na palavra usada para o deus pagão grego, Zeus. As palavras germânicas God e Gott originam-se de Good e Gut, i.e., bom. Observe que usamos palavras cujos significados intrínsecos não expressam a grandeza e o merecimento de D''us. Sabemos felizmente, porém, que o que Ele vê são nossos corações, nossa intenção, e não o que realmente realizamos.

Vejamos, em seguida, um dos Dez Mandamentos dados pelo Senhor a Moisés, que, segundo os judeus, é seu maior profeta: “Não matarás (Êxodo 20.13)”. D''us nos proíbe de matar nossos semelhantes, quaisquer que sejam. Ora, sabemos que D''us mandou os exércitos dos judeus à dezenas de guerras, D''us ajudou David a matar Golias, D''us matou milhares de pessoas em Sodoma e Gomorra. Seria D''us contraditório? Sabemos com certeza que não. O texto original nos demonstra claramente o propósito do Senhor: “xur al”. O verbo traduzido como matar nas línguas modernas é ratsach, que quer dizer assassinar, e não matar. Lembra-se do verbo muth (matar) utilizado no trecho que fala sobre David e o gigante? Pois bem, aquele verbo denota o ato de matar, ou o de colocar alguém à morte eminente. O verbo ratsach denota a ação de matar um ser humano sem motivo satisfatório, ou seja, assassinar. A Bíblia diz “Há tempo para matar e para morrer”, mas nunca “*Há tempo para assassinar e para morrer.” O assassinar é um pecado condenado por D''us nos Dez Mandamentos, e não o matar, como todos acreditamos. Mais uma vez, só podemos compreender o sentido subjacente do texto com o auxílio dos escritos originais, pois as traduções não são capazes de fazê-lo por nós.

Um outro artifício do texto original que não pode ser ‘traduzido’ por quaisquer que sejam as técnicas são os símbolos tradicionais e históricos do povo em cuja língua um texto foi escrito. Por exemplo, imagine um estrangeiro que acaba de desembarcar no aeroporto do Rio de Janeiro e que se demonstra ansioso para praticar um pouco de seu imperfeito português com nativos locais. Ao tentar comprar uma máquina fotográfica dentro do próprio aeroporto, o turista indaga ao lojista sobre qual seria a melhor delas. O lojista sinceramente responde: “Essa aí não é uma Brastemp, mas quebra o galho.” O turista, atordoado, reconhece a expressão quebrar o galho, que significa serve para a ocasião, mas, e quanto à Brastemp? O paciente lojista explica, então, o significado de tal símbolo. Para nós, este símbolo nacional, veiculado por mídia a todo o Brasil (ainda) civilizado, é de domínio público, todos sabemos o que significa. Para um estrangeiro, soa como alienígena. Isto quer dizer que quando aprendemos uma outra língua, aprendemos também a história e a tradição do povo cuja língua estamos aprendendo.

O mesmo ocorre na Palavra de D''us. Observemos o Salmo 139:

1 “SENHOR, tu me sondas e me conheces.

2 Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus pensamentos.

3 Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos.

4 Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, SENHOR, já a conheces toda.

5 Tu me cercas por trás e por diante e sobre mim pões a mão.

6 Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir.

7 Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face?

8 Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também;

9 se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares,

ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá (...).”

Este Salmo, mesmo depois do referido processo aniquilador de beleza poética, que é a tradução (o original hebraico é, sem dúvida, muito mais belo e carregado de sentimentos), ainda é, em minha opinião, um dos mais belos da Bíblia.

Foi escrito pelo rei David, como reprovação e resposta a falsos testemunhos, calúnias que estavam contra ele sendo proferidas. De acordo com o seu título em hebraico, o motivo específico de sua composição foi uma calúnia por parte de um homem chamado Simei (2 Samuel 16:5: “E, chegando o rei Davi a Baurim, eis que dali saiu um homem da linhagem da casa de Saul, cujo nome era Simei, filho de Gera; e, saindo, ia amaldiçoando.”).

O salmo denota a certeza do autor de que D''us o vigia e sabe o que faz, conhece o profundo de sua alma, o observa ao sentar e ao levantar, em qualquer parte que esteja, não podendo fugir da presença de Seu Espírito. Mesmo no céu ou em um abismo Ele lá estará. Mas, o que quer dizer ‘...Se tomar as asas da alva.”? Para responder tal pergunta, necessitamos de uma regressão ao passado do povo hebreu. Em tempos antigos, quando a poluição de fumaça proveniente de bombas e fogo em Israel não era predominante, os judeus diziam que ao acordar, pela manhã bem cedo, uma enorme nuvem pairava no céu, branca e estática. Esta desaparecia logo que o Sol nascia e não era mais vista durante todo o dia. No dia seguinte, porém, lá estava aquela nuvem gigantesca e estática sobre o povo de Israel. Os judeus acreditavam que um vento, um sopro do Senhor, deslocava a nuvem assim que o sol nascia. Esta nuvem contornava toda terra e voltava no dia seguinte para o mesmo lugar. O salmista, portanto, diz que, mesmo agarrando a manta da nuvem e contornando toda a terra, em qualquer parte do mundo, D''us mesmo ali estará. Observem como a beleza do salmo é prejudicada pela tradução. Este símbolo, uma metáfora belíssima, fazia parte do concenso comum dos judeus do passado, que nós desconhecemos a não ser que estudemos o contexto histórico do texto original.

Além dos símbolos, a tradição cultural e religiosa também não pode ser traduzida por quaisquer tentativas de adaptação lingüística. Um exemplo claro é demonstrado a seguir:

Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e de sua irmã Marta.

Mandaram, pois, as irmãs de Lázaro dizer a Jesus: Senhor, está enfermo aquele a quem amas.

Ora, amava Jesus a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro.

Quando, pois, soube que Lázaro estava doente, ainda se demorou dois dias no lugar onde estava.

Chegando Jesus, encontrou Lázaro já sepultado, havia quatro dias.

E, tendo dito isto, clamou em alta voz: Lázaro, vem para fora!

Este trecho, que se encontra em João 11.5-10, apresenta uma das manifestações mais reais do poder do Filho de D''us, ressuscitando a Lázaro, que morrera há quatro dias. Sabemos que Jesus é a encarnação humana de D''us, e sendo D''us perfeito, Jesus também o é. Sendo perfeito, tudo o que fazia era perfeito, para todas as suas ações havia uma causa - e conseqüência. Por que Jesus demorou quatro dias para reencontrar Lázaro morto e ressucitá-lo? Se conhecermos as tradições judaicas, podemos chegar à resposta. Os judeus acreditavam que, quando alguém morria, seu espírito rondava seu corpo por três dias, e no quarto subia para o Hades. Se qualquer coisa sobrenatural ocorresse, certamente ocorreria dentro destes três dias, e nunca depois. Jesus, conhecedor das tradições de seu povo, demorou quatro dias para que todos vissem o poder de D''us manifestado através dele. As pessoas que contemplaram aquele ato certamente permaneceram maravilhadas com o poder daquEle homem-Deus. Mais uma vez, as traduções não são capazes de inferir tais conhecimentos históricos e tradicionais.

 

Conclusão

Vimos, assim, o quão falhas e pouco reveladoras as traduções da Bíblia Sagrada podem ser, em quaisquer das versões nas 8 línguas vernáculas modernas da Europa estudadas: alemão, inglês, holandês, português, espanhol, francês, italiano e grego moderno. Estas versões foram utilizadas como objeto de análise linguística a fim de provar que o ‘problema’ linguístico não está em um dado sistema, e sim no processo de tradução.

Infelizmente, os exemplos apresentados não são os únicos. Em 3 anos de pesquisa, pude encontrar aproximadamente outras 240 falhas tradutórias, de cunho lexical, sintático e semântico. Isto quer dizer que muitas hipóteses formuladas por clérigos despreparados linguisticamente, hipóteses estas que acabam por entrar no sensus comunis de muitos cristãos, podem ser verdadeiras ‘mentiras’ para as quais colaboraram as traduções.

Devemos portanto, manter um cuidado quase excessivo em interpretar este Livro a partir de suas versões nas línguas originais (sendo estes de boas fontes, que não são muitas). Confiar nas traduções que temos em mãos seria, portanto, uma decisão demasiadamente perigosa.

Parodiando Carlos Drummond de Andrade, que disse, certa vez: “Precisamos de menos literatura, e mais Shakespeare”, digo: “Precisamos de menos teologia, e mais Bíblia.”

 

BIBLIOGRAFIA

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