ESCRITA E MEMÓRIA
EM
SE QUESTO È UN UOMO DE P. LEVI

Maria Franca Zuccarello (UERJ)

 

A palavra não é somente raciocínio, inteligência,

É, também, magia, fato emotivo,

elemento fascinante, encantador,

é cilada, armadilha, poder.

Gian Luigi Beccaria

 

Primo Levi é considerado um caso particular: químico, protagonista, testemunha, autor, escritor, poeta: caraterísticas de um escritor que sente a missão da testemunha e, então, o dever civil de contar aquela experiência que não é somente sua, mas é de todo o povo judeu.

A feitura técnica de seu primeiro livro, Se questo è un uomo é fundada em poucos elementos estruturais: diário, reflexão, juízo, e grito de alarme. Os capítulos não obedecem a uma sucessão lógica, mas são escritos segundo a ordem de urgência que o autor sente em narrar os acontecimentos vividos.

Se questo è un uomo é o seu romance mais famoso, seja na Itália seja no exterior, e inicia - assim como os outros seus livros - com uma poesia que lhe faz de epígrafe, cujos versos, tão duros e amargos, dizem, ou melhor antecipam (deixando que o leitor, desde já, reflita) tudo aquilo que o autor dirá para relatar aqueles terríveis momentos vividos no Lager. Para isso usa uma linguagem bem pacata e destacada dos sentimentos de raiva ou de ódio que deveria sentir para com os alemães.

No âmbito deste nosso trabalho, tomaremos por base somente o Prefácio, o primeiro e segundo capítulo, porque, a nosso ver, são os mais significativos: a entrada no Inferno, onde está escrito que o trabalho torna o homem livre, e a transformação dos presos naquela condição desumana em que ‘viverão’ - os que conseguirão -, até quando chegarem os russos, que encontrarão umas larvas que de humano tem muito pouco.

Como o próprio Levi diz, era necessário que o mundo soubesse o que os alemães foram capazes de fazer com ele e com milhões de outros judeus, e o diz usando uma língua clássica e ao mesmo tempo clara (acessível até a alunos das séries mais avançadas do primeiro graus e a de segundo grau, onde Levi, já conhecido, era chamado para responder às suas perguntas referentes aos acontecimentos ocorridos no Lager).

Palavras que existem em todas as línguas, com suas diferenças lingüísticas, e das quais o homem, a cada dia, desde seu nascimento até sua morte, se serve para se fazer entender e para entender, para se aproximar de familiares, amigos, colegas de trabalho e pessoas da rua, pois vive ele imerso num mundo de palavras.

Gian Luigi Beccaria, em Italiano antico e nuovo, diz:

É o nosso habitat, a atmosfera que a palavra escrita ou falada, jornais e revistas, programas de rádio e de televisão, slogan e publicidade nos fazem respirar, e de uma forma ou de outra, ela nos manipula, nos polui. É preciso também nos defendermos. Mas é desejável ser vitimas inconscientes. As palavras são potentes. Plasmam o pensamento do homem. Canalizam seus sentimentos, dirigem suas vontades e ações"

E, sempre usando o conceito que Beccaria faz da palavra, quando está na posse de um escritor, de um poeta:

A palavra torna-se literatura, nos palcos, no cinema, no canto, na fabula que o avô conta ao netinho, na carta de amor à própria mulher, no diário pessoal, no conto, no romance, na poesia

E Primo Levi parece compartilhar com as palavras de Beccaria, quando este diz:

O escritor não é um intérprete da norma, das regras, mas ao contrário; devendo agir por meio da língua, como o pintor com as cores, e o músico com os sons, age sobre a língua, lhe dá a força e a renova ora mais ora menos. À base da língua da qual o leitor tem competência, o escritor constrói, varia e dá um efeito e estilo

A única preocupação de Primo Levi é a de testemunha que quer narrar sua experiência, com a máxima transparência e precisão possíveis. A precisão que lhe advém de sua formação de químico, e do químico possui ele a dose justa das palavras - pesadas e repesadas, repensadas e lapidadas - para poder chegar a um todo, e este todo é o tempo transcorrido em detenção no Lager, em Auschwitz, contado em Se questo è un uomo. E a volta para casa é narrada em La tregua. Recordar, contar, refletir e testemunhar, porém, continuarão a ser o tema de todos os seus livros, inclusive daqueles que parecem inocentes contos.

Retornando ao discurso anterior, devemos dizer que Levi é um escritor muito mais complexo, cristalizado e sofisticado que a imagem dele percebida, inicialmente, talvez porque a nossa atenção, numa primeira leitura de seu livro, estivesse voltada ao conto em si. As palavras utilizadas pelo autor nos dão a impressão de ver um filme, no qual os personagens são mostrados através de máscaras usadas pelos atores: máscaras de terror e dor.

E suas palavras, ao traduzir a dor e sofrimento dele e de seus companheiros de infortúnio, soam fortes no ânimo do leitor. Essa força de expressão, faz dele - como disse o crítico italiano Cesare Caes que, até agora, melhor o interpretou - um ‘contemporâneo clássico’ que, lingüísticamente, manipula um ‘italiano marmóreo, bom para escrever lápides’.

De fato sabe ele misturar a arte do letrado, como quando escreveu Se questo è un uomo, usando uma língua precisa, clara e distinta, transparente para a comunicação, como a do químico. E, como químico, sabe ele que a língua a ser usada, em alguns momentos, deve ser breve, essencial e clara, para que o leitor possa entender imediatamente a tragicidade do momento descrito. Isto ele diz no primeiro capítulo de Se questo è un uomo, advertindo o leitor que o evocar será feito de forma rápida.

Sempre segundo as palavras do próprio autor, os capítulos do livro não contam a estória vivida no Lager numa seqüência, pois não era isso que Primo Levi queria fazer: queria ele contar somente alguns momentos do que ele considerou importante, ou melhor, urgente, relatar.

[...] em primeiro lugar, então, por motivo de libertação interior. Daqui o seu caráter fragmentário: os capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência.

Nosso objetivo, aqui, é o de procurar ver como o químico Primo Levi mede as palavras, para dizer exatamente o que quer dizer e como o quer dizer, e o faremos analisando a linguagem do segundo capítulo de Se questo è un uomo, cujo título é Sul fondo, onde o autor narra o processo absurdo usado pelos algozes alemães para transformar um homem - que até então tinha tudo para ser chamado como tal - em nada, aliás em um número:

[...] ‘Eis-me então no fundo’ - escreve Primo Levi que desespera manter-se à tona no mar em tempestade do Lager. O preço é alto, impensável, se é preciso renunciar a tudo para continuar a ser ao menos uma coisa. E Levi conclui o capítulo um pouco mais além da frase que diz: ‘...já o meu próprio corpo não é mais meu’

Começa aqui a vida no campo dos cento e vinte judeus que haviam sobrevivido à primeira seleção e que ficaram trabalhando - e morrendo - nos campos de Buna Monowitz e Birkenau. Daqui para diante Levi não se limita a deixar que os fatos falem por si mesmos, mas os comenta, sem forçar a voz, com uma frieza que, para nós leitores, parece absurda. Estuda, com passiva aflição, o que resta de humano em quem é submetido à uma prova: de humano nada mais tem.

A viagem durou apenas uns vinte minutos. Depois o veículo parou e se viu uma grande porta, e sobre essa uma tabuleta bastante iluminada, cuja lembrança ainda me fere nos sonhos: ‘ARBEIT MACHT FREI’, ‘O trabalho liberta’

Os prisioneiros descem do caminhão e são levados para um quarto muito vasto e nu. O que parecia tê-los mantidos vivos até aquele momento havia sido o frio e a sede. A sede fora, para eles insuportável, porque não tinham ainda conseguido beber, desde sua partida, e não conseguiriam tão cedo:

Que sede temos!! O leve sussurro da água nos radiadores nos deixa ferozes: são quatro dias que não bebemos. Porém aqui há uma torneira e há um cartaz e ele diz que é proibido beber, porque a água é poluída. Bobagem, parece-me obvio que o cartaz é um escárnio, ‘eles’ sabem que nós estamos morrendo de sede e nos colocam num quarto e ali há uma torneira: Wassertrinken verboten. Eu bebo e incito os companheiros a faze-lo, mas devo cuspir porque a água é morna e adocicada, tem perfume de pântano.

Notamos, já nas primeira páginas, que o uso da língua estrangeira foi imediatamente necessário, porque eles estavam num Lager, isto é, um campo de aprisionamento alemão, portanto as ordens (e é claro que somente para isto os algozes se dirigiam a eles) eram dadas em alemão. As palavras, ou frases estrangeiras desse primeiro capítulo, além das que eles viram no momento de chegada ao Lager ("ARBEIT MACH FREI", "O trabalho liberta!"), nos dão a idéia exata da dificuldade que os prisioneiros tinham para entender: somente as palavras ou frases mais comuns eram intendidas por todos, ou quase todos. Muitas vezes eram essas compreendidas pela assimilação de uma palavra conhecida com uma desconhecida.

Entender era uma necessidade primordial, pois não entender uma ordem podia significar morrer. E aqui o autor faz uma profunda reflexão a respeito da língua:

Então, pela primeira vez, percebemos que à nossa língua faltam palavras para expressar esta ofensa: a demolição de um homem. Num instante, com intuição quase profética, a realidade nos é revelada. Chegamos ao fundo. [...] Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se nós falarmos não nos ouvirão, e se nos ouvirem, não entenderão.

 

O discurso de Primo Levi

A lingua utilizada por Primo Levi nesse livro parecia, como já dissemos, uma "língua italiana marmórea boa para as lápides". Porém, mesclado àquela língua italiana clássica, há muito do dialeto piemontês, ou melhor, do italiano falado no Piemonte. Sim, porque nem mesmo Levi, com toda a sua exatidão de químico, deixa escapar a ocasião para colocar - como faz em todos os seus livros - um pouco de si, isto é, um pouco de sua maneira de falar - ou melhor de escrever - a língua italiana. Italiano sim, porém mesclado aqui e ali de palavras derivadas do dialeto piemontês. Hoje o dialeto piemontês não pode ser mais chamado assim, porque a influência da língua italiana fez que se formassem palavras e expressões novas, como, por outro lado, aconteceu com todos os outros dialetos, que agora os lingüistas italianos preferem chamar de "italiani regionali".

Devemos, porém, especificar, embora isso possa parecer claro ao leitor, especialmente ao leitor italiano, que Levi usa uma dialeto de forma suave e não tão evidente quanto o dialeto romano usado por Pasolini (porque este devia deixar falar os seus personagens dos bairros pobres da Roma do pós-guerra), nem quanto aquele usado por Corrado Alvaro (quando deixa falar os pastores do Aspromonte), nem tampouco quanto o das personagens de Verga ou de Pirandello (geralmente camponeses e pescadores da Sicília).

Para descrever o horror do Lager, Primo Levi usa uma forma própria de linguagem: a do químico amante de literatura, que não escreve para fazer literatura mas para testemunhar. Isto não significa ser ele um escritor de língua "fácil". Os períodos usados por ele, muitas vezes, são curtos, porque obedecem, antes de mais nada, à exigência de essencialidade, agilidade, rapidez, pois o objetivo de quem evoca é de focalizar a essência nua dos acontecimentos.

Em sua linguagem, podemos reconhecer muitas figuras de repetição, com as quais, o autor, escolhendo cuidadosamente palavras e frases, de forma completa e precisa, como fossem elementos para criar fórmulas de química, nos mostra as suas sensações.

Algumas destas figuras são:

· Polissíndeto: repetição da conjunção e diante de cada frase do mesmo período:

Hoje em dia, o inferno deve ser assim: um quarto grande e vazio, e nós cansados de ficar de pé, e há ali uma torneira que pinga e a água não se pode beber, e nós aguardamos algo de realmente terrível, e não acontece nada e continua a não acontecer nada

· Assíndeto : vários elementos do período coordenados por meio de vírgula.

Era diferente dos outros, mais idoso, de óculos, e com um rosto mais gentil, e era muito menos robusto

· Anáfora : a repetição do verbo dizer (Diz) iniciando as proposições:

Das mulheres não fala: diz que estão bem [...] Diz que todos os domingos têm concertos e jogos de futebol [...] Diz que quem trabalha bem recebe bons prêmios [...] Diz que é verdade que a água não é potável [...] e porque diz ‘ter um pouco de coração.

Anáfora vasta : pode iniciar vários parágrafos ou pode-se encontrar no mesmo parágrafo, seja depois de um ponto seja no meio de uma frase, repetindo o mesmo verbo ou usando sinônimos deste.

Muitissimas coisas devemos ainda aprender, mas muitas vezes as havíamos já aprendidas. Já temos uma certa idéia da topografia do Lager [...] Aprendemos, bem rapidamente, que os hospedes do Lager são divididos em três categorias [...] E outras coisa mais aprendemos, mais ou menos rapidamente [...] Aprendemos o valor dos alimentos [...] Agora até nós sabemos que não é a mesma coisa receber a concha de sopa retirado da superfície ou do fundo do recipiente e somos já aptos a calcular [...] Aprendemos que tudo serve [...] Aprendemos que, por outro lado, tudo pode vir a ser roubado [...] tivemos que aprender a arte de dormir com a cabeça sobre um embrulho feito com o casaco [...] Conhecemos já boa parte do regulamento do campo

· Antítese: contraste de dois conceitos opostos, para ressaltar a expressão:

O leve sussurro da água nos radiadores nos deixa ferozes [...] Diz que todos os domingos há concertos e jogos de futebol [...] Por outro lado, o inteiro processo de inserção nesta ordem para nós acontece de forma grotesca e sarcástica [...] e sinto-me cheio de uma tristeza serena que é quase uma alegria [...] A passar uma esponja ao passado e ao futuro se aprende muito rapidamente.

Outro aspecto realmente importante na obra de Primo Levi é o emprego de vários tempos e pessoas verbais, usados até na mesma frase, na qual, entre todos, predomina o presente do indicativo.

Infinitos e insensatos são os rituais a serem cumpridos: todas as manhãs precisa fazer "a cama", perfeitamente plana e lisa...

Na frase que segue, o presente, é posto com o pretérito mais que perfeito do indicativo, com o imperfeito, depois de novo com o pretérito mais que perfeito e finalmente com o passado do subjuntivo, e a pessoa verbal é o nós, porque o autor se faz relator de seus companheiros de desventura:

Todos olhamos o intérprete, e o interprete interrogara o alemão, e o alemão fumava e o olhara de parte a parte como se fosse transparente, como se ninguém tivesse falado.

Utiliza o presente também junto com o ‘trapassato prossimo’, com o imperfeito, com o ‘passato remoto’, com o gerúndio e com o ‘passato prossimo’. E, sempre no mesmo período, com o infinitivo, com o ‘futuro anteriore’, com o futuro simples:

Nunca tinha eu visto homens idosos nus. O senhor Bergmann usava o cinto para hérnia, e perguntara para o interprete se devia deixa-lo, e o interprete hesitara. Mas o alemão entendera e falara serio com o interprete indicando alguém; vimos o interprete deglutir, e depois disse: - O ‘maresciallo’ diz para deixar o cinto, e que lhe será dado o do senhor Coen -. Viam-se as palavras saírem amargas da boca de Flesch, aquela era a maneira de rir do alemão.

Sempre em relação aos verbos, utiliza vários deles, enfileirados de tal forma, acumulando algumas ações, deixando que transpareça a marcação de um ritmo: o ritmo de ações realizadas por hábito. Consegue, assim, em apenas duas linhas, dizer tudo de suas vidas no Lager:

Todos os dias, segundo o ritmo preestabelecido, Ausrücken ed Einrücken, sair e regressar; trabalhar, dormir e comer: adoecer, restabelecer-se ou morrer.

Uma outra característica de Levi, em Se questo è un uomo, assim como em outras suas obras, é a adjetivação, assinalando um dos maiores e interessantes recursos de estilo deste escritor. Ele utiliza muitíssimo o adjetivo reforçado pelo substantivo e vice-versa, ou usa vários adjetivos para descrever o mesmo objeto ou para relatar uma realidade difícil de ser explicada, como que vista pelo microscópio do químico, com o objetivo de definir, com exatidão velada e lapidada, e conseguir atingir a intensidade que ele quer dar às suas palavras:

...de forma que os dias de efetivo descanso são extremamente raros

Depois de quinze dias do ingresso (no campo) já tenho a fome regulamentar, a fome crônica desconhecida aos homens livres...

Depois a porta se abriu, e entrou um rapaz com a roupa listrada, de aparência bastante civil, pequeno, magro e louro.

Notamos, também, o uso abundante dos advérbios em -mente, assim como dos superlativos em -issimo: "Parla italiano malamente, con un forte accento straniero. [...] una regione abitata promiscuamente da tedeschi e da polacchi" ("Fala mal o italiano, com um forte sotaque estrangeiro. [...] uma região habitada, promiscuamente, por alemães e poloneses". LEVI, Primo, Se questo è un uomo. 1989: 21)

Além desses recursos, Primo Levi, se serve de muito outros: na grafia, na fonética e fono-sintaxe, como é o caso das conjunções acompanhadas ou não pelo "d" diante da palavra seguinte que começa por vogal, dependendo de quem fala. Geralmente quando escreve suas palavras como autor, usa o "d" (ed, od, ad). Mas, quando transcreve as seus companheiros, não lhes faz usar o "d".

Às vezes não usa a elisão em casos que a gramática a pediria: mi ha accolto, lo abbiamo visto, di intuizione, una ipotesi. Assim como, às vezes, separa algumas palavras compostas e outras vezes as une, até quando não haveria necessidade de fazê-lo.

Quanto à morfologia e à sintaxe podemos notar o uso freqüente do vi ao invés do ci (advérbios de lugar) ou a omissão dos dois: "V’è poi il Block 24 che è il Krätzeblock" ("Há também o Block 24 que é o Krätzeblock". Se questo è un uomo, pg. 27); "In mezzo al Lager è (c’è) la piazza dell’Appello" ("No meio do Lager é (está) a praça da chamada..., pg. 28). Em alguns casos o uso, atualmente não muito freqüente, da preposição com incluindo o artigo: "... dormire con la giacca o senza mutande, o col cappello in testa...", pg. 29); ("... dormir com o casaco ou sem as cuecas, ou com o chapéu na cabeça..." , pg. 29). Pode começar um período com né: " si creda che le scarpe, nella vita del Lager, costituiscano un fattore d’importanza secondaria", ("Nem se pense que os sapatos, na vida do Lager, constituam um fator de importância secundária", pg. 30). Às vezes inicia um período com ... pontos de suspensão: "...E fino a quando?" ("... E até quando?, pg. 31).

Segundo Beccaria "...o artista da palavra, as vezes, arremessa-se contra a prisão da linguagem, procurando deslocar os confins, dilatando estes até os limites da tolerância" - Beccaria, Gian Luigi, Italiano antico e nuovo, 1988: 308).

Isto quer dizer que um escritor tem todo o direito, através da língua, de traçar para si um caminho próprio, tendo a seu favor a liberdade de poder escrever ‘difícil’ e poder até escrever ‘mal’, segundo as regras impostas pela gramática normativa.

A grandeza estilística de um escritor moderno pode inclusive estar na liberdade individual de criar, preocupando-se apenas com o valor literário que ele quer atribuir ao que escreve.

O próprio Levi, embora as palavras a seguir possam contrariar as características de forma de um químico, diz que

um dos grandes privilégios de quem escreve é justamente o de manter-se no impreciso e no vago, de dizer e não dizer, de inventar quanto mais puder, fora de qualquer regra de prudência.

E nesse caso, Levi foi um grande maestro: um químico que se descobriu escritor, exatamente, porque, ao invés de seguir as regras da gramática (fonética, morfologia e sintaxe), utilizou-se da exatidão do químico para poder tornar claro e visual, tudo o que aconteceu desde o primeiro dia da "estadia" dos hebreus italianos em Auschwitz. Soube também demonstrar que, passados os momentos de enquadramento no campo de concentração, ou melhor de extermínio, os dias eram todos iguais, até ... ele conseguir sair daquele Inferno.

O título do capítulo em análise diz que agora tanto ele quanto todos os outros estão No fundo (Sul fondo). É isso que o prisioneiro Primo Levi pensa quando, já cansados pela viagem, pela sede, pelo frio, ficam durante um tempo interminável para eles, nus com os pés dentro da água fria. E, pela perplexidade causada-lhes pelo tratamento dos alemães, conseguem se vestir como prisioneiros, e obedecerem às ordens, isto é, quando as conseguem entender. Então a reflexão de Levi é:

Imagine-se agora um homem ao qual, junto com as pessoas amadas, lhe são tirados sua casa, seus hábitos, enfim tudo, literalmente tudo o que ele possui: será este um homem vazio, reduzido a sofrimentos e necessidades, esquecido de dignidade e discernimento, pois acontece facilmente, a quem perdeu tudo, de perder a si mesmo; tanto que se poderá, facilmente, decidir de sua vida ou de sua morte sem nenhum senso de afinidade humana; no caso de mais sorte, com base a um puro juízo de utilidade. Compreender-se-á, então, o dúplice significado do termo ‘Campo de aniquilamento’, e será claro o que entendemos dizer com esta frase: jazer no fundo.

Enfim, como o estilo de Levi é muito rico de recursos, pareceu-nos que seria muito exaustivo e longo enumerá-los. Consideramos pertinente concluir com uma frase que o próprio Primo Levi usa justamente neste capítulo:

Muitas coisas devemos ainda aprender, mas muitas outras já as aprendemos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

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KLEIN, Reimar e BONADEI, Rossana. Il testo autobiografico nel novecento. Milano: Edizioni Angelo Guerini e Associati s.r.l., 1998.

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