RELATIVISMO E CRÍTICA LITERÁRIA

Rafael Lanzetti

 

“Anyrwpov metron panton”

Protágoras

Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a alegria de amor compadre meu Quelemém diz Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas

Introdução

Este breve trabalho, caro leitor, tem como objetivo trazer-lhe mais sombras, escuridão, a respeito de muito polêmico assunto do qual tratam os mortais como eu, os que criticam porque não podem escrever. Sendo nosso trabalho este apenas pensar sobre a obra de outrem, cabe-nos escolher caminhos a fim de realizá-lo. A estes caminhos do pensar literário chamo Correntes Críticas Literárias. Ora, já que somos humanos e particulares (ainda mais se somos capitalistas), escolhemos o caminho de acordo com a percepção do que nos é certo. Por este motivo temos, no mundo, um emaranhado de encruzilhadas de estradas, trilhas ou apenas pegadas, seguidas por muitos ou conhecidas apenas por aquele que as criou, defendidas e rebatidas. Discutir, portanto, que caminhos tomar, ou seja, que corrente crítica utilizar para interpretar uma obra literária, é argumentar sobre qual sorvete é mais gostoso: o de chocolate ou morango. Toda corrente crítica literária nada mais é que um antolhos que nos faz ver o fim somente e não os meios, o horizonte, mas não a bela paisagem, uma bitola que não nos permite (no Brasil, especialmente) conduzir nossos trens por mais de 200 quilômetros, tendo que baldear frequentemente, pois o limite nos é chegado. Qualquer escolha que fazemos implica em uma rejeição às outras. Se escolhemos o A, rejeitamos o B; quando uma criança, capaz intrinsicamente de preparar-se para articular qualquer som das línguas existentes, aprende apenas uma delas, rejeita, descarta de seu sistema articulatório aberto e receptivo, todos os outros sons, que aparentemente não lhe convêm.

A fim de alcançarmos o Todo, desfrutarmos a paisagem, não somente o horizonte, vagarmos livremente pelos ares como pássaros, não em rumos pré-definidos, devemos fazer como Guimarães Rosa: acreditar em tudo e em nada, saber que “Tudo é e não é...”.

Farei neste trabalho, portanto, uma defesa, por razões de crença pessoal, a um Relativismo Crítico Literário, no entanto tão relativo, que margeia o ecleticismo. Veremos como podemos colher mais frutos no pomar da genialidade, se não tivermos pre-ferências estabelecidas, se gostarmos de mamão, melancia ou maçã igualmente. Tal linha de pensamento advém de observação e experienciação de vida do autor, sempre baseando-me naqueles que vieram antes de mim, e que em sua genialidade eternizaram o pensamento em folhas de papel, de propriedade do conhecimento universal humano. A esta minha visão muito colaboraram as aulas do Prof. Joel Rufino da Faculdade de Letras da UFRJ, que parece-me sempre defender a todos e a ninguém, num sábio Relativismo do Pensamento. Seguidor de Rosa, talvez.

Ao final do trabalho não tecerei quaisquer conclusões. Prefiro ficar com as dúvidas, questões que o presente pretende levantar. Por isso, como dito anteriormente, quero aumentar-lhe a escuridão, contrariando o motto clássico latino Ex fumo dare lucem, segundo o qual a partir da discussão e reflexão chega-se a um sensus comunis. Prefiro a adaptação, quase paródica, Ex fumo dare solum fumum, pois o proveito que tiramos da reflexão é a própria reflexão, e não o resultado obtido, sendo aquela perfeita quando justamente nenhum resultado produz. Como Sócrates, quero perguntar, não responder.

 

O que é esse tal Relativismo?

A Enciclopédia Católica do Vaticano diz que “Toda doutrina que nega, universalmente ou especificamente relacionada a alguma esfera do ser, a existência de valores absolutos, pode ser chamada Relativismo.”

Tal doutrina foi criada pelo filósofo grego Protágoras, há alguns 2420 anos, quando disse, certa vez: “À maneira como as coisas parecem para mim, assim elas existem para mim. À maneira como as coisas parecem para ti, assim elas existem para ti.” Portanto, tudo que vemos, experienciamos e constatamos depende tão somente de nossa própria percepção humana. Isso significa dizer que não há VERDADE UNIVERSAL e, consequentemente, FALSIDADE UNIVERSAL.

Tudo o que percebemos depende de nossa visão particular, pessoal, dizia Protágoras. Por quê? Pois o “Anyrwpov metron panton” (“O homem é a medida de todas as coisas”). Este célebre enunciado de Protágoras, conhecido como HOMO-MENSURA, afirma sermos nós, humanos, os responsáveis por tudo, inclusive pela percepção da realidade.

Ora, Protágoras, ao criar tal teoria, criou juntamente com ela sua primeira contradição: se o trabalho de Protágoras enquanto filósofo sofista era o de ensinar aos outros como convencer os demais de que o que diziam era verdade, como poderia afirmar ele que tudo em que o homem acredita é verdade para este? Ao perceber sua contradição, Protágoras foi obrigado a adaptar sua teoria, qualificando sua doutrina: enquanto tudo em que alguém acredita é verdade, algumas coisas em que algumas pessoas acreditam são melhores que outras coisas em que outros acreditam.

Platão disse, porém, que tal qualificação revela a inconsistência de toda a sua doutrina. Seu argumento básico chama-se “A virada de mesas” (“Peritroph”): “Se à maneira como as coisas parecem para mim, assim elas existem para mim, e se à maneira como as coisas parecem para ti, assim elas existem para ti, então parece a mim que toda a tua doutrina é falsa. Uma vez que à maneira com que as coisas parecem para mim é verdade, então deve ser verdade que Protágoras estava errado.” Uma vez que Protágoras afirmou não existir FALSIDADE, este não pode dizer que o argumento de Platão seja falso, portanto sua teoria é relativa.

E assim é o Relativismo, doutrina que possui a estranha propriedade lógica de se auto-contradizer e não poder negar a verdade de sua própria contradição. Vejamos como se dá tal contradição, concretizada em enunciados:

Os enunciados básicos do Relativismo são: “1. Toda verdade é relativa e 2. Com exceção da verdade 1”

Ora, se toda verdade é relativa, não pode haver exceção. Portanto, a verdade 2 também é relativa, o que faz a verdade 1 ser igualmente relativa e admitir a existência de verdades universais, contradizendo toda a teoria. A melhor saída para tal contradição é, simplesmente, sua admissão: “1. Toda verdade é relativa. 2. Isto é, incluindo a verdade 1, de que “toda verdade é relativa”.

O Relativismo toma para si vários disfarces. O de consequências mais profundas é, porém, o Relativismo da Realidade, ou o Relativismo do Conhecimento.

Tudo o que existe, existe relativamente para mim, depende de minha percepção. Relativistas modernos, como Taylor afirmam, porém, que a realidade “...does not depend for its existence unpon the fact of my actually perceiving it.”, mas “...it does depend upon my perception for all the qualities and relations which I find in it.” Em termos simplórios, uma cadeira não depende de minha percepção pra existir (das Sein des Objekts), continua existindo sem que eu a perceba. Qualquer qualidade ou relação que for atribuída a ela, porém, vai depender de minha percepção relativa (das Objektsein).

Um outro tipo de Relativismo Cognitivo é o relacionado aos valores morais da civilização humana, relacionado intrinsecamente ao Relativismo Cultural. Não podemos dizer, de acordo com a doutrina relativista, que uma cultura ou valor moral seja melhor, pior, verdadeiro ou falso; apenas diferente. Podemos citar alguns exemplos: a idéia um tanto “libertinária” de sexo dos californianos e dos habitantes das Ilhas Samoa (onde não existe qualquer concepção de virgindade, e as moças mantêm relações sexuais com vários homens, como se os estivessem dando um beijo no rosto) não pode ser considerada pior que as estritas regras morais que regem o sexo nas civilizações judaico-cristãs ocidentais. Alguns povos, não possuindo tal concepção relativista, acreditando que são sublimes e/ou superiores, designam-se a si próprios tão somente O POVO, HUMANO, ou O TERRENO. A língua chinesa (mandarim) é denominada simplesmente yon to, a língua, como se fossem bárbaros (do radical latino balbus, o que balbucia, não sabe ou não consegue falar) todos os outros que não a falam. A palavra com a qual os alemães se denominam é DEUTSCH, que tem suas origens em um antiquíssimo radical germâncio *thiudisk, que significa tão somente o povo. Deutschland (Alemanha), significa portanto, em última instância, a Terra do Povo.

Seria tal relativismo cultural e moral benéfico à humanidade?

Levemos tal ordem de relativismo ao extremo, e passaremos a viver num completo caos! Leis não existiriam, uma vez que posso, tenho o direito de fazer aquilo que parece a mim estar certo. Se todos têm o mesmo direito, as leis que regem o mundo deveriam ser particulares e o sistema regente, a anarquia. Ralph Waldo Emerson e Thoreau, gênios americanos do século XIX, pregavam tal religião, obviamente não tão radicalmente quanto o que foi descrito. Emerson dizia que cada um tem seu próprio direito e dever, de acordo com suas definições de certo/errado, e que a verdade absoluta existe apenas para você, e que para o outro é a verdade absoluta também auterificada. Thoreau falava acerca da Maioria de Um. Uma vez que aquilo em que alguém acredita é a verdade, este possui uma maioria democrática sozinho, pois segue A VERDADE. Faz parte, portanto, de uma Maioria de Um.

É óbvio, porém, que, a fim de sobrevivermos, devemos admitir a existência de Verdades Universais: as leis humanas, as leis da natureza, as leis morais (particulares a cada sociedade) que regem as interações sociais etc. Não podemos, pois, pregar o Relativismo como Verdade, pois ele não o é, como ele mesmo diz.

Um tipo curioso de Relativismo é o Linguístico, pregado pelo norte-americano Whorff e por Wittgenstein. Em sua tese, Whorff diz que nossa concepção da realidade, de mundo, depende do sistema linguístico que delimita nossas percepções. Os anglófonos, por exemplo, só possuem uma palavra para expressar a substância neve: snow. Nas línguas esquimós do Canadá, porém, há pelo menos 7 palavras para neve, uma para cada tipo diferente dela, concebidas não como variações, mas como substâncias diferentes. Os gregos, povo de história marítma, sempre ligado ao oceano, expressam a cor azul por três palavras diversas: galázio, um azul claro, celeste; galanó, uma tonalidade mais escura; e blê, um azul de tom escuro, quase marinho. Em português, utilizamos, para expressar tais cores, circunlocuções: azul-claro, azul-escuro, azul-marinho etc. Para Whorff, porém, os gregos não concebem estas três ‘tonalidades’ de azul como tal, e sim como cores diferentes, tal é a abundância delas em seu meio. Algumas culturas africanas não diferenciam as tonalidades mais escuras de verde das mais claras de azul, possuindo apenas uma palavra para ambas. Whorff tentou provar, assim, que nosso sistema linguístico delimita a percepção relativa que temos da realidade.

Discordando de Whorff, porém, quero dizer que o caminho causa-consequência seria inverso: não percebemos o mundo relativamente particular porque nossos sistemas linguísticos assim nos delimitam; e sim nossos sistemas linguísticos foram de tal forma criados a fim de expressar nossa delimitação relativa particular do mundo. Não somos delimitados pelas línguas, mas sim expressamos nossas delimitações através delas.

De qualquer forma, não podemos, de modo algum, concordar às ultimas consequências com as doutrinas relativistas, já que são em si contraditórias. Como defesa das Verdades Absolutas, o estudioso católico Leslie Walker debate o Relativismo usando seu próprio paradoxo: se dissemos que não existe no mundo certo ou errado, melhor ou pior, mas apenas FORMAS DE VIDA diversificadas, não podemos dizer que alguém está errado por seguir suas verdades particulares, certo? Pergunta Walker a um relativista fictício. “Certo.” diz este. Se isto é verdade, não podemos dizer que Hitler e Stalin estavam errados em matar milhões de pessoas e trazer sofrimento e dor, de uma forma ou de outra, a todo o mundo, certo? “Certo.” Consequentemente, não podemos dizer que estávamos errados se quisemos matá-los, como assim o fizemos. “Exato.” Por outro lado, aqueles que não acreditam nestas verdades relativas e responderiam “errado” a essas indagações também estariam certos em dizer que suas verdades são melhores que as nossas, e todo o paradoxo de Protágoras começaria novamente.

Que saída nos parece mais adequada, portanto? Admitir que o Relativismo em si é relativo, que existem “algumas” Verdades que são absolutas? Que a melhor solução é ser eclético e aceitar as duas doutrinas quando nos convêm? Seria isto possível? Se somos relativistas, podemos ser simultaneamente absolutistas?

Não nos interessam as respostas, deixemo-las para depois...

Vejamos agora o que acontece quando aplicamos a teoria relativista à crítica literária, especificamente ligada a obras de autores brasileiros.

 

O Relativismo e a Crítica Literária

de Obras Brasileiras

Comecemos com um exemplo clássico, talvez o mais clássico deles: a Capitu em Dom Casmurro, escrito por nosso maior gênio da literatura brasileira (tal verdade é relativa, obviamente), traiu ou não traiu Bentinho?

Vejamos as opções interpretativas que temos: os críticos sociologistas diriam que “o homem, corrompido pelo meio, sempre escolhe o caminho mais obscuro a seguir” (uma paráfrase do pensador francês Rousseau). Portanto, Capitu não pode ter tido outra atitude, senão a de trair Bentinho.

Críticos mais românticos, porém, e talvez até os estruturalistas, diriam que o texto deixa clara a apenas insinuação de traição, pois ela não teria ocorrido de fato.

Psicanalistas diriam, como em um estudo psicanalítico das digressões e do comportamento de Bentinho feito pelo Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que o tema traição nunca existiu de fato no enredo, ou seja, Capitu nunca pensou em trair Bentinho, e que a traição nada mais é que a expressão de delírios mentais de Bentinho, assim como do leitor.

Cada um com sua verdade, rebate as outras e defende com unhas e dentes sua apenas opinião. É evidente que possuem, todos eles, argumentos - e bons - para “provar” que sua verdade diz a verdade e que as outras mentem descaradamente. Se tivéssemos acesso a apenas um dos lados, não teríamos dificuldades em aceitar sem restrições a visão deste ou daquele crítico, pois se a crítica é conhecida, impressa e divulgada, deve ser lógica e até convincente.

Para alguém que conhece pelos menos estas três versões e pontos de vista diferentes sobre o assunto referido, de que valem, então, tantos argumentos, se a VERDADE não foi encontrada? Podemos até concordar com um lado mais que com outro, mas onde está a prova contundente e final? Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

Ora, a VERDADE sobre Capitu não é mais acessível, pois nosso Machado de Assis já repousa, não temos mais seu endereço, não podemos falar com ele (embora alguns médiuns tentem me provar o contrário), não sabemos seu telefone; e mesmo se pudéssemos falar com ele, talvez não fosse prudente acreditar nele, pois, de acordo com o que li sobre Assis, muito provavelmente mentiria aos entrevistadores apenas para vê-los degladiar e cantar vitória, para depois desmentir-se e contar “outra” Verdade (!). Outra possibilidade é, porém, que a VERDADE nunca tenha existido, ou seja, Assis nunca tenha pensado sobre o assunto, que pode ser um delírio pós-moderno e finisecular, ou tal questão não tivesse o menor valor para nosso gênio.

Se a própria existência desta Verdade é relativa, que diremos, pois, quanto a Verdade em si? O que ganhamos com esta discussão sem limites? Talvez seja benéfica, pois nos faz pensar criticamente sobre uma obra prima literária, funciona provavelmente como lapidação fina de nossos cristais de criticidade artística. A discussão sobre o tema é, portanto, benéfica do ponto de vista científico. A defesa de uma conclusão para ela é, porém, um enganar-se a si mesmo. Tal questão faz-se perfeita se a ela não atribuimos um fim. Neste caso, “o fim não justifica os meios” (aforisma em que nunca acreditei, por ser deveras perigoso), mas “os meios justificam a falta do fim”. Consideremos, pois, a VERDADE de Capitu (se é que ela existe, ou existiu) como relativa, abstrata, que depende tão somente de nossos olhares, de nossa particular percepção artística e crítica.

O segundo exemplo que quero utilizar baseia-se em um dos mais belos poemas que já li, não somente em língua portuguesa, mas em todas as línguas que conheço: A cruz da Estrada, do singular Antônio de Castro Alves.

 

Invideo quia quiescunt.

Luthero (Worms)

Tu que passas, descobre-te! Ali dorme

O forte que morreu.

A. Herculano (Trad.)

Caminheiro que passas pela estrada,

Seguindo pelo rumo do sertão,

Quando vires a cruz abandonada,

Deixa-a em paz dormir na solidão.

Que vale o ramo do alecrim cheiroso

Que lhe atiras nos braços ao passar?

Vais espantar o bando buliçoso

Das borboletas, que lá vão pousar.

É de um escravo humilde sepultura,

Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.

Deixa-o dormir no leito de verdura,

Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.

Não precisa de ti. O gaturamo

Geme, por ele, à tarde, no sertão.

E a juriti, do taquaral no ramo,

Povoa, soluçando, a solidão.

Dentre os braços da cruz, a parasita,

Num abraço de flores, se prendeu.

Chora orvalhos a grama, que palpita;

Lhe acende o vaga-lume o facho seu.

Quando, à noite, o silêncio habita as matas,

A sepultura fala a sós com Deus.

Prende-se a voz na boca das cascatas,

E as asas de ouro aos astros lá nos céus.

Caminheiro! do escravo desgraçado

O sono agora mesmo começou!

Não lhe toques no leito de noivado,

Há pouco a liberdade o desposou.

Castro Alves, como sabemos, pertenceu à terceira geração romântica brasileira, uns 50 anos depois da mesma geração européia... (coisas de país de terceiro mundo). Chamada “Geração Condoreira”, esta foi a que mais preocupou-se com os problemas sociais de nosso país, suas injustiças, máculas civilizatórias, com a escravidão etc.

Os poemas que tratam do assunto “escravidão” são, talvez, os mais conhecidos deste poeta, árduo combatente desta animalice atroz. Castro Alves sempre foi, em sua curta e produtiva vida, um humanista regrado, consciente do mal da sociedade dos barões, defensor da Abolição.

Ouvi certa vez história, cuja veracidade histórica até hoje não consegui confirmar. Mesmo que seja fictícia, é excelente como exemplo. Em 1887, portanto um ano antes da Abolição da Escravatura no Brasil colônia européia, não de direito, mas de fato, numa época em que os escravagistas já se viam acuados com a pressão dos liberalistas europeus e a crescente revolta popular, uma personalidade chamada Ataufo de Albuquerque, na verdade um Conselheiro da Corte, leitor de Castro Alves (por que cargas d’água lia um Conselheiro escravagista Castro Alves?), formulou a seguinte tese: a Abolição é um erro, pois o Brasil ficará sem sua mão-de-obra gratuita e ‘maculará’ a raça portuguesa com sua mistura africana, formando mulatos que não possuem nem a superioridade mental legitimamente européia, nem a disposição física de um negro africano autêntico. Já que parece não haver mais alternativas para o fato de os negros serem libertos, sigamos o conselho do sábio poeta populista Castro Alves: este diz que a Liberdade do negro só é possível com sua morte (fazendo uma alusão ao poema supra-citado, que neste momento é recitado, de cor, pelo Conselheiro). Portanto, já que não podemos mais manter os negros escravos, matemo-los todos, e concedamo-lhes a verdadeira Liberdade!

Ora, este discurso prosaico, absurdo, advém de um fenômeno proporcionado por um eficiente meio: o meio - a retórica, desenvolvida pelos sofistas, assim como era Protágoras, o fenômeno - o Relativismo deste - a Verdade de que os negros seriam escravos para sempre estava prestes a ser abalada, mas sua verdade de que os negros deveriam morrer para não ‘manchar’ a raça portuguesa era melhor que qualquer outra. E para tanto, utiliza um texto de um autor cujas visão, opinião e Verdades eram completamente opostas às suas. O absolutismo filosófico, a crença em uma apenas VERDADE ABSOLUTA, indiscutível, Verdade esta que pode ser apenas uma metamorfose retórica de uma mentira, como no caso citado, é, sempre foi e sempre será perigosamente utilizada a serviço do mal. Hitler e Stalin pregaram suas verdades absolutas sobre suas raças superiores, sobre a superioridade de suas nações, e trouxeram sofrimento e morte a centenas de milhares de pessoas.

Meu último exemplo é, na verdade, uma apologia a um dos maiores ‘relativistas’ brasileiros (baseio-me em suas poesias antológicas para fazer tal afirmação), um certo Carlos Drummond de Andrade. Este por sua vez, ao fazer uma apologia a Guimarães Rosa, presenteou-nos com uma das maiores provas de que a dúvida sempre nos acrescenta algo, enquanto a simples resposta nos limita:

 

UM CHAMADO JOÃO

João era fabulista? Fabuloso? Fábula? Sertão místico disparando no exílio da linguagem comum? Projetava na gravatinha a quinta face das coisas inenarrável narrada? Um estranho chamado João para disfarçar, para farçar o que não ousamos compreender? Tinha pastos, buritis plantados no apartamento? No peito? Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho? Era um teatro e todos os artistas no mesmo papel, ciranda multívoca? João era tudo? Tudo escondido, florindo como flor é flor, mesmo não semeada? Mapa com acidentes deslizando para fora, falando? Guardava rios no bolso cada qual em sua cor de água sem misturar, sem conflitar? E de cada gota redigia nome, curva, fim, e no destinado geral seu dado era saber para contar sem desnudar o que não deve ser desnudado e por isso se veste de véus novos? Mágico sem apetrechos, civilmente mágico, apelador de precípites prodígios acudindo a chamado geral? Embaixador do reino que há por trás dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de abracadabra, sésamo? Reino cercado não de muros, chaves, códigos, mas o reino-reino? Por que João sorria se lhe perguntavam que mistério é esse? E propondo desenhos figurava menos a resposta que outra questão ao perguntante? Tinha parte com... (sei lá o nome) ou ele mesmo era a parte de gente servindo de ponte entre o sub e o sobre que se arcabuzeiam de antes do princípio, que se entrelaçam para melhor guerra, para maior festa? Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar.

Carlos Drummond de Andrade.

Uma das maiores homenagens feitas a qualquer escritor brasileiro foi escrita, genialmente, sem fazer-se nenhuma afirmação sequer sobre o caráter, a genialidade ou as obras de Guimarães Rosa. Drummond utiliza-se apenas de indagações, questões, dúvidas a respeito de seu homenageado. Nenhuma resposta foi dada e, ao fim, “Ficamos sem saber o que era João”. Que melhor homenagem há, senão dizer que o gênio Guimarães Rosa não enquadrava-se em nenhuma definição humana, que sua poética ultrapassou os limites do decifrável e descritível? Ora, bem sabemos que Drummond, na dúvida, achara a resposta para João... a resposta que não pode ser obtida.

O Relativismo, portanto, muito compactua com a Literatura: não se interessa por dizer o que é, onde está e como se faz A VERDADE, mas sim força as verdades relativas existentes a viverem em harmonia, bate nelas, para que se comportem. A Literatura não possui VERDADES, a Arte é mentira. Nossas interpretações são, como dissemos, fruto de percepção particular, falha, impressionística, humana.

Muito ganharíamos se o Relativismo Crítico Literário vingasse nesses tempos de ecleticismo barato, única saída para a falta de inspiração argumentativa (é extremamente simples ser eclético em nossos tempos pós-modernos, já que qualquer opinião parcial é passível de e julgada como pre-conceito; e preconceito é crime - portanto ter opinião é crime).

O objetivo deste presente trabalho foi, portanto, o de apresentar como opção a falta de opções, apresentar como verdade a falta delas, como solução, o insulocionável. O Relativismo, como qualquer outra corrente filosófica, é falho e limitado, pois se há uma verdade sequer, esta é a de que temos, enquanto seres humanos, limites. De qualquer forma, a pergunta que se poderia fazer após tais considerações sobre o Relativismo como uma fonte a mais para o Tesouro Crítico Literário é: por que não?

Ab fumo dare solum fumum

 

BIBLIOGRAFIA

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