OS MONSTROS E A SOCIEDADE DO ANEL

Geysa Silva (UNINCOR)

 

Neste início de milênio, o homem se defronta com a desafiadora tarefa de aceitar sua condição de mera criatura e reconhecer a incomensurável destrutividade com que golpeia o mundo por ele habitado. Oceanos, florestas, montanhas, rios - nada mais é inatingível, graças à letalidade das avançadas tecnologias de impacto ambiental. Sem voz e sem protesto, espécies animais e vegetais são extintas para todo o sempre. Seremos capazes de inventar seres artificiais que ocupem o lugar de nossos antigos companheiros da Arca de Noé? Afinal, que espécie de seres somos nós? Não por acaso, filmes e livros que apresentam caracteres estranhos fazem hoje um sucesso arrebatador; os primeiros levam milhares de pessoas às salas de cinema e os últimos são transformados em best-sellers. As pessoas procuram distrair-se com situações inusitadas e com monstros ameaçadores.

Pensar sobre esses fatos é lembrar que as representações extraordinárias ecoam no reprimido cultural e propiciam a irrupção aterradora da irracionalidade que faz parte do mundo cotidiano. Nesse contexto é que se pretende refletir sobre as personagens monstruosas que aparecem em A sociedade do anel, pois as leis da natureza, como estabelecidas pela ciência, são aí violadas. A narrativa, com seus lugares e seres fantásticos, convida a explorar novas maneiras de perceber o mundo, recusar a ordem classificatória das coisas e penetrar no terreno povoado pelo medo, pelo desejo e pela fantasia. Assim, A sociedade do anel exibe o hibridismo de seres cujas formas ameaçam apagar as distinções, ocupando a limiaridade ontológica, questionando o pensamento binário do "isto ou aquilo", exigindo a organização polifônica e a repulsa na atração. Está em jogo a estabilidade das fronteiras entre o humano e o não-humano, entre o sublime e o terror: "o terror é, em todo e qualquer caso, ou mais aberta ou mais lentamente, o princípio orientador do sublime (BURKE,1985, p. 58).

É preciso que se esclareça que os habitantes da Terra Média são inspirados em deuses e lendas das mitologias nórdica, céltica e greco-romana. Sendo católico praticante, Tolkien dá a esses elementos uma visão cristã, assentada em base criacionista. Acrescente-se que esses "seres monstruosos" aparecem na literatura ocidental desde seus primórdios. A Bíblia, por exemplo, entre outros já nos dá a conhecer o gigante Golias (no Velho Testamento) e o Leviatã (no Apocalipse, de São João). A diferença, que marca o limite da humanização, será ressaltada ao examinar-se a obra de Tolkien que pretendia, como professor de Literatura, criar uma mitologia inglesa. As reflexões serão feitas a partir da definição de "monstros", dada por Jeffrey J. Cohen:

Os monstros são, aqui, como em toda parte, representações convenientes de outras culturas, generalizadas e demonizadas para impor uma concepção estrita da mesmice grupal. [...] filmes de terror tão aparentemente inocentes quanto King Kong demonstram a ansiedade sobre a miscegenação em sua essência brutal (COHEN, 2000, p. 46).

O problema da miscigenação e da "raça pura" era um problema do início do século. Embora Tolkien sempre tenha negado que sua obra tivesse qualquer referência ao nazi-fascismo, não se pode esquecer de que ela foi escrita numa época de crescimento dessa ideologia, época que gerou o filme Nosferatu, onde os elementos subterrâneos do desejo sobem à superfície por meio da praga e da degradação moral, assim como a ambição pelo anel do Poder. Torna-se claro que somente se pode analisar os monstros considerando-se as relações históricas e lítero-culturais que os fazem nascer; a cultura transfere o que é indesejável em si mesma para a representação do monstro, dele fazendo o bode expiatório de seus próprios erros ou pecados. Em A sociedade do anel, como na maioria dos contos maravilhosos, encena-se a luta entre Bem e o Mal, este último representado por seres monstruosos. Vejam-se, portanto, características das principais figuras da narrativa que tem encantado adolescentes e adultos de todas as idades, figuras que se constituem como uma versão tardia do mito heróico.

A narrativa de A sociedade do anel tem início no Condado onde vivem os hobbits. Os hobbits não podem ser considerados monstruosos, porém não são completamente humanos. São baixos, mas não são anões e vivem muito tal como os homens do Velho Testamento. Essas características fogem à normalidade e colocam os hobbits na encruzilhada metafórica da espécie humana; eles são deslocamentos do humano, ocupam o lugar da Khôra de Derrida; não são nem uma coisa nem outra; indecidíveis, sua incerteza

genética os aproxima do corpo monstruoso.

Revista A saga do anel, p. 4

Enfim, o que era normal na época de Tolkien? Tolkien nasceu em 1892; era alguém com uma formação da era vitoriana. Viu o mundo esfacelar-se em guerras, assistiu ao nascimento do Socialismo e da Psicanálise. Perdeu a maior parte de seus amigos, mortos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Por mais que ele negasse a influência desses fatos sobre sua obra, não se pode deixar de referenciá-los, pois os hobbits, tal como os contemporâneos de Tolkien, vivem momentos de incertezas, de ameaças externas que lhes perturbam o cotidiano.

Múltiplas são as leituras possíveis para A sociedade do anel; entre outras, pode-se considerar A sociedade do anel como pertencente aos contos maravilhosos, repetindo, em sua estrutura e em suas personagens, os processos utilizados por esses contos. A clássica ajuda que o herói dos contos de fadas costuma receber de alguma figura misteriosa, é aqui representada por Tom Bombadil. Grande e pesado para ser um hobbit, todavia não tão alto quanto uma pessoa comum, Tom era claro e de olhos azuis; tinha o rosto enrugado, uma longa barba, usando um casaco azul e botas amarelas. Ele salva os hobbits dos encantamentos da floresta, cantando dentro da fenda do velho Salgueiro-Homem. Esta personagem, com características humanas e poderes mágicos, também foge às classificações. Quando Frodo pergunta à Fruta d' Ouro quem era Tom, ela responde: "- Ele é o Senhor da floresta, das águas e das colinas. [...] Tom Bombadil é o Senhor." (TOLKIEN, 2001, p. 130).

Tom, como os monstros, é um enigma. Sua presença na narrativa precisa ser desvelada. Lembre-se de que, etimologicamente, monstrum é aquele que revela; significa algo diferente dele mesmo. Tom Bombadil não é apenas o senhor da floresta. Ele é o espírito da natureza, preserva a identidade de tudo o que está sob seu domínio, menos a sua própria, pois tanto pode ser um Valar (espíritos angélicos superiores que assumiram a forma material) como um Maiar (espíritos maléficos inferiores que também assumiram a forma material).

Entretanto, as personagens verdadeiramente "monstruosas" aparecem à medida que vai a narrativa alcançando seu desenrolar, embora os Cavaleiros Negros e as Criaturas Tumulares surjam praticamente no início da trama. Criaturas Tumulares são manchas negras, "erguendo-se agourentas" e se "inclinando levemente uma em direção à outra." Gritam, atraindo os hobbits para os túmulos. Quando Frodo chama seus companheiros, as Criaturas Tumulares respondem:

- Aqui! - disse uma voz, profunda e fria, que parecia vir do solo. - estou esperando você! [...] Frodo olhou para cima, em tempo de ver uma figura alta e escura, como uma sombra contra as estrelas, se inclinando sobre ele. (TOLKIEN, 2001, p. 146).

Toda uma rede de forças do Mal é conectada às forças das trevas ou monstruosas. Entre elas destacam-se os Cavalheiros Negros; são mortais orgulhosos que foram escravizados pelos anéis do poder, tornando-se os Nazgûl ou Fantasmas do Anel. São invisíveis sob a luz normal, têm corpos físicos, envolvidos por mantos negros; grisalhos, têm o rosto extremamente pálido e, por terem perdido a vontade, não reconhecem a escravidão. Resultado de um constructo literário, os Cavalheiros Negros oscilam entre o humano e o espectral. Ao sucumbir à ambição, marcam a possibilidade de crise em qualquer comunidade estável. Perguntam, de forma alegórica, como apreendemos o mundo e como o representamos. Enquanto as Criaturas Tumulares lembram ao leitor que a morte está sempre a nos espreitar, os Cavalheiros Negros provocam o que Kristeva chamou de abjeção.

Há na abjeção uma dessas violentas e obscuras rebeliões do ser contra aquilo que o ameaça e que parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante lançado para além, do possível e do tolerável, do pensável. (KRISTEVA, 1982, p. 1).

Os Cavaleiros Negros permitem a formação tanto de uma identidade cultural quanto particular, identidade que representa a ardorosa vontade de adoção do poder; por isso ocupam um lugar além dos limites do pensável; mas dele bastante próximo. Eles perseguem Frodo e seus companheiros durante toda a narrativa, ocupando o locus conceitual da fronteira entre o inteligível e o ininteligível. Tal como Drácula levantando do túmulo, reaparecem sempre, provocando a inevitabilidade de sua presença. Ao mesmo tempo corpóreos e incorpóreos, os Cavaleiros Negros ameaçam porque regressam e por seu singular estado entre a vida e a morte. São malignos, contudo, cansados; movem-se em cavalos, como homens comuns e, além das limitações físicas, não possuem imaginação, que é uma prerrogativa dos homens livres.

O uso do cavalo é significativo. Sabe-se que o cavalo é, em diversas culturas, associado ao mundo ctônico, sendo o animal que conduz o morto em viagens para outros mundos. Segundo o grego Artemidore, a pessoa doente que sonhava com um cavalo estava sendo avisada de sua morte (RAMOS et alii, 2001, p. 103). Os Cavaleiros Negros relacionam-se ainda com Drácula e outros vampiros porque sentem a mesma necessidade de sangue:

Eles próprios não conseguem enxergar o mundo da luz como nós, mas nossas formas lançam sombras em suas mentes, que apenas o sol do meio-dia pode destruir; [...] E qualquer hora sentem o cheiro do sangue de criaturas vivas, desejando-o e odiando-o. (TOLKIEN, 2001, p. 201-2).

Os Cavaleiros Negros fazem emergir na consciência do leitor o abjeto, o híbrido e o monstruoso; nessa perspectiva, o inconsciente exerce um papel-chave na relação do eu consigo mesmo, orientando a conduta individuada do prazer, do desejo e da intencionalidade. Ou seja, eles mostram o inferno de cada um.

Esse mesmo inferno é também apresentado pelos Orcs, palavra derivada de demônio, em inglês arcaico. Sua aparência é repugnante, têm as pernas em arco, braços longos e dentes pontiagudos. São peludos e cheiram mal. Criaturas pervertidas por Melkor, agem como elfos degradados. Se os elfos têm uma bebida deliciosa e restauradora, que o mago Gandalf dá aos companheiros de viagem, os Orcs têm uma bebida desagradável com efeito semelhante. São guerreiros e brigam muito entre si. Supõe-se que são descendentes do cruzamento de homens e elfos deformados moralmente. Além de sua aparência repulsiva, sua língua soa mal, não tem musicalidade; isto mostra a ligação que Tolkien faz entre a linguagem e a moral: idioma feio, criaturas malignas.

Ao lado dos Orcs está Balrog, o demônio do fogo, que habitava as profundezas da Terra-Média. Adormecido nas minas de Moria, foi acordado quando os anões a escavavam., à procura de um metal precioso denominado Mithrul. "Negro como uma nuvem", diz Gandalf, o Balrog amedronta até os Orcs. É uma criatura alada, envolta em chamas, traz um chicote e se autodenomina Chama de Udûn, que significa inferno. Veja-se como Tolkien o descreve.

[...] era como uma grande sombra, no meio da qual havia uma forma escura, talvez humanóide, mas maior; [...] As chamas bramiram para saudá-la, e se ergueram à sua volta; uma nuvem negra rodopia subindo no ar. A cabeleira esvoaçante se incendiou, fulgurando. Na mão direita carrega uma espada como uma língua de fogo cortante; na mão esquerda trazia um chicote de muitas correias. (TOLKIEN, 2001, p. 350).

O Balrog e os Orcs evocam as forças que avassalam a razão e a imaginação, produzindo uma resposta de assombro. A majestade do Balrog confirma a vizinhança entre o Mal e o Sublime, redutíveis aos processos de dor e prazer. A discussão sobre o Sublime, que vem sendo feita desde a Antigüidade Clássica, encontra em Kant um ponto decisivo. Para Kant, o Belo consiste no enquadramento e na ordenação, já o Sublime aponta para o limitado e para o infinito, transgride as ilusões compensatórias da beleza e da razão. Exagerando a artificialidade dos Orcs e de Balrog, Tolkien mostra que o terror, tal como pensava Freud, não depende da crença na realidade que nos ameaça.

A ficção usa esses elementos para evocar aquilo que não pode ser representado, isto é, os conteúdos do inconsciente. A atualidade do problema do Sublime evidencia-se em Lyotard que, ao final de A condição pós-moderna, clama por "uma política que respeite tanto o desejo por justiça quanto o desejo pelo desconhecido." (LYOTARD, 1984, p. 67). Para Lyotard, um consenso sobre a estética da beleza seria como um consenso político - não apenas uma totalização indevida e, sim, uma forma de autoritarismo. Como acontece em geral com os monstros, o Balrog luta pelo controle de sua própria história e é apresentado simultaneamente como o Mal e o trágico: "Com um grito horrendo, o Balrog caiu para frente e sua sombra mergulhou na escuridão, desaparecendo." (TOLKIEN, 2001, p. 351). Ao morrer, o Balrog arrasta Gandalf para o abismo, deixando paralisados os componentes de A sociedade do anel.

A tragicidade das vítimas do anel é percebida em todas as personagens que se deixam apoderar por ele. Embora tomados fatalmente pela malignidade do anel, devem agir como sujeitos da própria conduta. Essa liberdade ambivalente, que não é nem heteronomia nem autonomia absolutas, mostra que o indivíduo tem de negociar com as forças político-sociais para sobreviver na comunidade. Trata-se do que Foucault chama de agonismo.

[...] uma relação que é, ao mesmo tempo, incitação recíproca e luta menos uma confrontação face a face que paralisa amplos os lados e mais uma provocação permanente. (FOUCAULT, 1982, p. 222).

Gollum é um exemplo de relação agônica. Atraído pelo anel mata o amigo para roubá-lo. Torna-se invisível quando o usa, descobre segredos e torna-se impopular. É expulso de casa e vai morar numa caverna das Montanhas Sombrias. Animaliza-se, rasteja como larva. À medida que vai adquirindo caracteres monstruosos, perde sua identidade e, por conseguinte, seu nome; deixa de ser conhecido como Sméagol e passa a ser chamado de Gollum, aquele que só emite grunhidos. Sem dúvida o destino castiga a curiosidade de Gollum, pois Tolkien o concebe como "o elemento mais curioso e mais ávido de conhecimento" (TOLKIEN, 2001, p. 54), dentro de sua família. Questiona-se aqui o território contestado, onde o sujeito e a instituição entram em conflito, encenando o drama da autoridade e da autonomia.

Os monstros de Tolkien, especialmente Gollum, apresentam a imagem do homem atormentado que não consegue escapar da sedução do poder. Evidenciam, em termos simbólicos e poéticos, que a ambição desencadeia o mal e que, embora faça parte da vida, não se pode a ela sucumbir. Tolkien desenvolve essas personagens quase de forma obsessiva para mostrar que o território dos desejos é povoado por perigos ameaçadores. A narrativa de A sociedade do anel é um desvendamento da fragilidade humana e a tentativa de empreender a organização da existência fragmentada (tal como os monstros que são criados a partir de fragmentos) de uma época que apenas se anunciava.

Inventor de uma nova mitologia inglesa, Tolkien não descarta o viés ritualístico de sua obra. Para enfrentar a monstruosidade é preciso preparar-se, ser iniciado pelo mago Gandalf, pelo espírito Bombadil ou pela rainha Galadriel.

Os Cavaleiros Negros, as Criaturas Tumulares, os Orcs e outros mais sugerem que há caminhos menos evidentes para perceber-se a realidade circundante. A ampliação do horizonte sensorial do leitor, introduzido num universo fantástico e onírico, passa a ser o desvio que leva a uma nova maneira de olhar a existência e a própria literatura.

Ao tomar contacto com os monstros de A sociedade do anel, o leitor realiza um percurso que se torna uma relação particular com essas personagens especiais, cujas deformações do físico e do moral tornam-se um espaço de representação exibido no corpo mesmo. Num momento em que a Teoria da Literatura contemporânea discute seus paradigmas e se aproxima inclusive de um discurso do corpo, deve-se reconhecer a importância dessa teratologia e a recorrência com que aparece na ficção. A monstruosidade é muito mais que a representação concreta das forças do Mal. Ela é o meio que Tolkien usa para uma relação mais direta com o homem; os corpos deformados, quer o do Balrog, o dos anões, o dos Cavaleiros Negros, quer a pequena estatura dos hobbits, dirigem-se ao corpo do leitor que abandona a condição de passividade e passa a participar ativamente dos movimentos dessas criaturas que se situam no limite entre arte e vida.

O monstro insiste em que o corpo não é um simples status biológico, ressaltando a tradição judaico-cristã de que "o dentro é o fora", o feio é o Mal. O primeiro Senhor das Trevas, em A sociedade do anel, é aterrador. Envenena as grandes árvores e cria os Orcs (Fig. 2).

 

Contracapa do CD The Lord of the Rings

Para provar que o monstro e a maldade sempre renascem, Tolkien destrói Melkor, também chamado de Morgoth, entretanto cria Sauron, o forjador do Um Anel, com a intenção de controlar toda a Terra Média. Melkor e Sauron tentam exercer seus poderes através do medo. Observe-se que os gregos distinguiam três espécies de medo:

o medo propriamente dito, provocado por causas reias, podia ser controlado;

b) o terror, provocado por causas reais ou imaginárias, era incontrolável;

c) o pânico, provocado por causas não identificáveis, representava a vontade dos deuses e só era controlado com sacrifícios.

Em A sociedade do anel, tem-se o terror alternando-se com pânico, pois às vezes são evidentes as causas dos perigos; outras vezes só o sacrifício é capaz de domar os espíritos do mal. No primeiro caso pode-se citar a presença do Balrog, por exemplo; no segundo, exige-se que o anel seja destruído, ou seja, que se abra mão do poder.

A imagem corpórea do monstro resgata a multiplicidade de sentimentos, que vão dos mais sublimes aos mais abjetos. Essa imagem prova que a nostalgia do corpo, ao ser vivenciada, leva a uma nova consciência do eu no mundo, a uma descoberta de si mesmo por meio do corpo do outro. Percebe-se também que a base dos corpos monstruosos está na licantropia, reiterando a crença de que seres infernais podem metamorfosear-se em homens e animais. Essa mistura atordoante, apoiada na lógica do absurdo, confere ao Mal um acréscimo de poder. O poder maligno expõe a fragilidade diante da tentação e diante das forças da morte. Bilbo só se desfaz do anel com a ajuda externa e Boromir morre, após quase aderir a ele.

Às vezes a monstruosidade não se manifesta no físico e, sim, no moral. É o caso de Saruman: possui habilidades incríveis, intelectual, corrompido e maléfico é o "outro lado" de Gandalf. Segundo Espinosa, o corpo, por sua própria natureza, exprime as imagens de sua relação com outros corpos. O pensamento permite que a alma tenha idéia de seu corpo e de si mesma. Assim, a relação com o outro é de interioridade e, simultaneamente, de reciprocidade. A alma exprime o corpo e o corpo exprime a alma: "a ordem e a conexão das afecções do corpo se produzem da mesma maneira que os pensamentos e as idéias se ordenam e se encadeiam na alma." (ESPINOSA, 1983, p. 279).

Ligados profundamente à hostilidade, que os homens mantêm uns contra os outros, os monstros são o imposto que se paga sobre a vida social. Eles encarnam as angústias escatológicas das mentalidades individual e coletiva, enquanto a literatura faz passar do medo à esperança, realizando o milagre surpreendente da obra de arte.

 

Referências bibliográficas:

APOCALIPSE. In: Bíblia Sagrada. Trad. João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil,1971.

BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992.

COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura do monstros; sete teses. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

ESPINOSA, Baruch. Ética. In: Espinosa. Coleção Os pensadores. Trad. Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

FOUCAULT, Michel. Storia della folia. Milão: Rizzoli, 1963.

KRISTEVA, Julia. Powers of horror: an essay on abjection. Nova York: Columbia University Press, 1982.

LYOTARD, Jean-François. The post-modern condition. Manchester: Maschester, 1984.

MARTINS FILHO, Ives Gandra. O mundo do senhor do anéis. São Paulo: Madras, 2002.

RAMOS, A. S. Drácula e os monstros. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

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STANTON, Michel N. Hobbits, elfos e magos. Rio de Janeiro: Frente, 2002.

A saga do anel . Coleção Livros Herói. São Paulo: Conrad, [s/d.]

WARNER MUSIC GROUP. The lord of the rings. Contracapa do CD. Reprise Records, 2001.