PAISAGENS FEMININAS
ESCRITA E PINTURA SOBRE O EROTISMO

Maria Aparecida Meyer Nascimento (UFRJ)

 

O ato interpretativo pressupõe a presença chancelar da intencionalidade e do jogo representacional da linguagem e do desejo. Assim, constata-se a amplitude do gesto interventor pessoal, permitindo um novo agenciamento de sensibilidades e uma leitura intersticial, paridos pelo ato de pensar pela imagem. E pensar é um caminho infinitamente desviante em relação a si mesmo, corresponde a um apelo vindo da experiência do sentir, do dizer e do ver.

Pensar não é sair da caverna nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas, a claridade vacilante de uma chama pela luz do verdadeiro Sol. É entrar no Labirinto, mais exatamente fazer ser e a aparecer um Labirinto ao passo que se poderia ter ficado "estendido entre as flores, voltado para o céu". É perder-se em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente, girar no fundo de um beco cujo acesso se fechou atrás de nosso passos até que essa rotação, inexplicavelmente, abra na parede fendas por onde se pode passar. (CASTORIADIS, 1987, p. 13).

A imagem e a palavra nos levam a múltiplas direções que mostram o mundo fragmentado em que vivemos. A memória imaginativa reabre nosso passado para encontrarmos nele os vestígios sufocados pelo tempo. Através de um fluxo com a memória, uma escrita literária é capaz de germinar a imaginação dinâmica, que impulsiona o pensamento. Ao ampliar a compreensão do mundo, retira da mudez personagens silenciados, desfaz a esteira de convicções áridas e busca conceitos ativos, que se expressam como metáforas vivas.

Neste sentido, a atividade sensivelmente humana assume a sua contínua capacidade de exercer o deslocamento, fazendo oscilar, sob revelações, o olhar que recupera todo o sabor contido na narração evocada pela imaginação lúdica, pelo jogo do gozo e da paixão, ancorados na realidade. Esse olhar-deleite, olhar-desvelamento busca rastros de um tempo, experiências que se fizeram presença na artesania da vida. É um olhar agregado ao ato sedutor, fecundado pelo que é escolhido para ser observado e usufruído. Mas ao subverter o "ver", realiza percursos eróticos, liberta o impalpável desejo, a pulsação de sentidos e palavras.

Em todas as épocas, a presença do erotismo está acoplado às artes poética e pictórica. Ainda que sob formas disfarçadas do discurso do recalque, tanto camuflado quanto denunciado, é inevitável que se converta na sua conseqüência imediata: a materialidade do desejo. Assim, por oposição, o desejo incontido pode encontrar escoamento nas águas revoltas do discurso poético, promulgando na esteira da produção lírica, a denúncia de "algo fora do lugar". Desencadeia-se, portanto, o discurso que se produz pelo viés da transgressão. Segundo Bataille, a interdição bloqueia o impulso de transgressão se a emoção for negativa, e o ato transgressor suplanta o poder inibidor exercido pela interdição, se a emoção for positiva. Pelo entrelaçamento de emoções, a expressão erótica revela-se inexaurível.

O que torna difícil falar de interdito não é a variabilidade dos objetos, mas seu caráter ilógico. Nunca, a propósito do mesmo objeto, uma proposição contrária é impossível. Não existe interdito que não possa ser transgredido. Freqüentemente a transgressão é admitida, freqüentemente mesmo ela é prescrita. (BATAILLE, 1987, p. 59).

O percurso da plasticidade textual aliada ao jogo sedutor da imaginação, cerra entre si certos interstícios abertos. Desenhando a sensualidade através de poemas inspirados em musas imaginárias ou mulheres reais, Vinicius de Moraes compõe versos, que são um terreno para o cultivo da paixão, marcados por uma retórica discursiva em que as palavras se repetem e, aos poucos, vão extravasando coloquialidade, sensualidade e refinamento. Há um efeito oriundo de contrastes harmoniosos e do poder de vislumbrar coisas corriqueiras. No poema Vida e poesia, a lua, símbolo da feminilidade, que com o seu perfil azul perpassa flores e ramadas, infiltra-se na pequena varanda, onde às escondidas, amantes-amigos fazem o seu ninho.

A lua projetava o seu perfil azul

Sobre os velhos arabescos das flores calmas

A pequena varanda era como o ninho futuro

E as ramadas escorriam gotas que não havia.

Na rua ignorada anjos brincavam de roda...

- Ninguém sabia, mas nós estávamos ali. (MORAES, 1992, p. 46).

Uma obra de arte está sempre envolta de elementos empíricos, históricos e temporais e, por isso, concebe o testemunho de seu tempo, uma concepção total do mundo, tanto espiritual como histórica, contentora de emblemas a serem desvendados. Pois, "a arte é um fazer que se faz aqui e agora, não ontem ou amanhã; e faz objetos, que o tempo não engole e que permanecem presentes". (ARGAN, 1992, XIX, La storia dell'arte, p. 42).

Testemunha de Paris do fim do século, Toulouse-Lautrec pode ser considerado como um inventor de uma nova sensualidade e de prazeres eróticos, porque subverteu o código social da época, pintando mulheres de bordéis. Através da exploração de particularidades com motivos picturais ligados à realidade da vida dos cabarés, transcreve o erotismo do mundo, que surge nos espetáculos noturnos de Montmartre. Prima as experiências concretas no olhar que prepondera sob os sentidos sensoriais, já que se envolveu ativamente em todos os prazeres que a vida lhe ofereceu.

O artificial e todo o encantamento inerentes foi por ele explorados. Buscava a redenção de suas angústias nas aventuras amorosas passageiras, nos perfis fugazes regados a vinho, absinto e pândega, na vida efêmera de lugares de diversão com luzes diferentes às do sol e da lua. Tomou para si o vício boêmico, diversidades de experiências, ímpetos, requinte, exibicionismo para não sentir o fardo do tempo que lhe dilacerava. A époque podia ser belle, mas a vida lhe negara largos gestos e movimentos corporais intensos, no entanto, concedeu-lhe expandir a possibilidade de olhar o mundo com a concupiscência de quem deseja passar para a tela, o universo e seus seres.

Segundo Foucault, o viciado é alguém que faz parte de uma nova rede de "poder/conhecimento" e não está relacionado somente à ordem pública, mas a uma aversão de aceitar o seu próprio destino. E o vício é um modo de controle sobre aspectos da vida cotidiana, transgride a ansiedade que o indivíduo tem de se enfrentar reflexivamente. Neste ponto podemos voltar à colocação do vício do sexo em discurso. As mulheres, como no caso, as prostitutas, presas a um processo em que a sua fonte de poder é a conquista sexual, tornam-se subjacentes ao comportamento sexualmente viciado, uma preocupação obsessiva com o sexo enquanto fantasia. Sendo assim, para Foucault, o interessante é a emergência de um "mecanismo da sexualidade" em relação ao eu, sob uma "administração positiva do corpo e do prazer".

Um discurso obediente e atento deve, portanto, seguir segundo todos os seus desvios, a linha de junção do corpo e da alma: ele revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da carne. Sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado de depurar de modo açambarcado e como que encurralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem sossego. [...] coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso. (FOUCAULT, 1998, p. 23-4).

A gestualidade das prostitutas despertou em Toulouse-Lautrec uma particular admiração pela espontaneidade oculta em meio à artificialidade e aos subterfúgios sociais. Seus corpos desejantes, cativos e subjugados enquanto vetores de excitação sexual, arrastam-nas ao turbilhão de devassidão. Com isso, enchem as bolsas para própria sobrevivência, como nos diz Baudelaire em La muse vénale:

Il faut, pour gagner ton pain de chaque soir

Comme un enfant de choeur, jouer de l'encensoir,

[...] Ou, saltimbanque à jeun, étaler tes appas.

 

Precisas, para ganhar o pão de cada noite,

Como um menino de coro, agitar o turíbulo,

[...] Ou, saltimbanco faminto, exibir os encantos.

(BAUDELAIRE, 1941, p. 16).

No seu cartaz Divan Japonais (ARNOLD, Fig.1, p. 35), Lautrec perpetuou a dançarina Jane Avril, sentada em primeiro plano, e ergueu um primeiro monumento à diva da "canção realista" Yvette Guilbert, que embora com a cabeça cortada pela parte superior da moldura do cartaz, é reconhecível pela silhueta perfectiva e pelas suas famosas luvas pretas, que aumentavam a elegância de seus braços e ombros. Nesse cartaz, Lautrec empregou o Cloisonnismo Japonês, maneira de compor a cena de modo que seja cortada pelos bordos do quadro. As suas definições são marcantes e originais, devido ao tipo de representação acentuada do essencial, aos próprios monumentos escolhidos e à sua sensatibilidade para representá-los. O tecido negro que cobre o corpo e o chapéu da dançarina, preenche, de forma densa, a parte central do quadro. Apresenta-se não como traço limitador da superfície, mas que passa, com sua cor, a fazer parte da própria vestimenta enquanto elemento perceptível à sensibilidade e à alegoria. Há uma integração da escrita no estilo do desenho, numa composição de letras e imagens.

 

A dimensão experiencial da corporeidade mobiliza diversas capacidades cognitivas e sensoriais de uma pessoa. A sua externalização corresponde a uma ampliação dos estímulos, rompendo as fronteiras da intimidade corporal para revelar estados de sensualidade e prazer.

Divan Japonais, 1892/1893.

O erotismo nas suas mais variadas configurações, contribui para a tematização do prazer, com o deslocamento do objeto da sedução, centrando-o no próprio fazer poético. Este fazer poético reflete o engendramento que envolve a relação sexual, adquire contornos antropomórficos, se transforma num "obscuro objeto do desejo". Assim, o prazer pode vir a ser um desejo appetitus, num mundo invulnerável ao devir, onde mulheres cujo gozo não está relacionado somente a Eros, mas principalmente a Thanatos. São mulheres-simulacros que produzem enigmas e ocupam o espaço da prostituta dadivosa, com sexos episódicos, possibilitados pelos encontros amorosos. Diz Giddens:

A sexualidade episódica dos homens parece claramente relacionada a uma tentativa inconsciente de reivindicar e dominar a mãe toda poderosa. Esse tipo de aventura sexual extrema parece bastante ausente entre as mulheres. Mas sabemos que o desejo de dominar não está limitado à psicologia masculina, e não surpreende descobrir que algumas mulheres usam a promiscuidade como um meio de diminuir o compromisso pressuposto por um relacionamento primário. (GIDDENS, 1992, p. 156).

O eu poetante investe conscientemente no desejo, fazendo do discurso a projeção de seus anseios e, centrado no deslizamento dos signos, estabelece um pacto de cumplicidade com o leitor, na medida em que ele entra em sintonia com aquele desejo. "O objeto do desejo é diferente do erotismo. Não é todo o erotismo, mas é atravessado por ele. [...] o erotismo, que é fusão, que desloca o interesse no sentido de uma superação do ser pessoal e de todo limite, é no entanto expresso por um objeto". (BATAILLE, 1987, p. 122).

Segundo Argan, "devemos nos acercar da obra de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico. Em um fenômeno todos os fatos particulares que o constituem têm um significado: não se pode acrescentar ou desprezar nenhum". (ARGAN, Prefácio XVI, Il primo Rinascimento, p. 1). Sendo assim, os aspectos de uma obra artística ganham significação, sobretudo a compreensão do caráter expressivo das formas e da possibilidade de uma história das imagens, em que os objetos de arte aparecem da interseção entre objetividade e subjetividade.

Por isso o artista, fustigado pelas incertezas, próprias das tentativas do fazer artístico, vive para ser o usuário da paleta das utopias. Ele busca traduzir a essência do imaginário que pulsa e o conduz à sonância de percepções e modalidades do agir humano.

A arte é um fazer exemplar que, em última análise, tem como horizonte a produção de objetos perfeitos, que sirvam de guias às demais atividades. Nessa busca, ela é também criação de valores, já que deve se perguntar a todo instante pelo sentido do agir humano e operar de modo a garantir e ampliar seus próprios fundamentos. E esse movimento traz consigo necessariamente uma temporalidade de ordem histórica, em que passado, presente e futuro se condensam na presença instigante de um objeto particular. (ARGAN, Prefácio XX, La storia dell'arte, p. 33-4).

Pela sensibilidade de quem percebe o mundo e não se quer ausente, inserindo palavras sensuais nas cenas capazes de tocar a nossa subjetividade, o poeta permite a concatenação de idéias que contagiam o leitor, já que o texto é desejante e estimulante. Sob a tessitura textual pinta o poema da hora, entre perfumes, frutos e cores.

Só os perfumes teciam a renda da tristeza

Porque as corolas eram alegres como frutos

E uma inocente pintura brotava do desenho das cores

Eu me pus a sonhar o poema da hora. (MORAES, 1992, p. 42).

O eu poetante , no estranho estado de desejo, subverte o erotismo tradicional, revelando progressivamente uma pulsão erótica, em que a afirmação de um "ser mulher" culmina com a capacidade de sedução exercida por ele. Pelo olhar observa a claridade de um sorriso e capta o rosto amigo, desejável, que faz fruir apelos ainda indizíveis.

E, talvez ao olhar meu rosto exasperado

Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga

Talvez ao pressentir na carne misteriosa

A germinação estranha do meu indizível apelo

Ouvi bruscamente a claridade do teu riso

Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada. (MORAES, 1992: 42).

Através do poder de olhar por detrás das persianas, capturando cenas íntimas, registrando a existência da alma que habita os corpos femininos, Lautrec constrói o seu museu imaginário, impressões de um mundo refletido pelo artista sob o esboço de uma experiência concreta. O compulsivo colecionador de emoções e almas explora o movimento, a angústia, recortes da vida. Traz consigo a noite, meia-luz do céu apagado, apresentando o belo e o efêmero espetáculo da ambigüidade sobre o eterno e o fugaz.

Em La Toilette (JULIEN, Fig.2, p. 64), o artista quer mostrar um fragmento de espaço onde a figura feminina é um núcleo de movimento, atraída pela perspectiva retesada do quarto. O seu rosto oculto dirige o olhar do observador, através da percepção sensorial, para suas costas e o modo de se sentar no chão, desnudando seu ritmo interno vital. Ela transmite seu ímpeto ao espaço, com a toalha enrolada em torno das ancas, que se confunde no halo do lençol amarrotado. O artista parece evitar tudo o que incita a visão, para isolar o que desperta uma resposta do pensamento.

A narrativa erótica em particular ajuda seus leitores a descobrir que os problemas pessoais pertencem à ordem da vida, já que neles estão representados composições da experiência humana, através de uma linguagem simbólica para mostrar arquétipos do inconsciente.

Desenhando o erotismo no decurso dos poemas, subjaz, no poeta, a depuração artística, registros líricos de anseios amorosos. Operando palavras sensuais, Vinicius de Moraes, em sua forma contemporânea de ser, nos conduz ao condão da sedução que circunda o mundo, lançando-nos nas malhas da atração.

E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite

Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos

Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo

E se escorrer sobre os teus lábios como um suco

E marulhar entre os teus seios como uma onda

Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias

De que me tivesses possuído antes do amor. (MORAES, 1992: 46)

 

La Toilette, 1896.

A pintura se oferece ao poder do artista de exprimir reflexos múltiplos e passagens dos abismos até os acmes refulgentes de suas projeções mais acentuadas. Ao olharmos um quadro de Toulouse-Lautrec, podemos observar que foi ali retratado o fragmento-memória de um artista, que se importou em captar o universo interior de mulheres, no templo do amor encomendado. Andar por Montmartre é como assistir plasticamente suas paisagens femininas, em momentos-flashes de emoção. Por suas veredas, compõe-se a falácia erótica de seus significantes, como retrato de uma busca, quadros para ler.

Na fuga planejada de si mesmo, o ser humano vai galgando funções sociais, tecendo acontecimentos passados, ocidentes arqueográficos, ânsia e temores, e o desejo de compreender o porquê do atribulado caminho a percorrer. Porém, tenta operar a travessia interior, num estado de contínua descoberta, sob as vias das paisagens subjetivas.

 

Referências bibliográficas:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARNOLD, Matthias. Henri de Toulouse-Lautrec - O teatro da vida. Taschen: Köln, 2001.

BATAILLE, Georges. O erotismo. 2ª ed. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BAUDELAIRE, Charles. La muse vénale. In :Les fleurs du mal. Paris: Éditions de Cluny, 1941.

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillon Albuquerque. 14ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

JULIEN, Edouard. Lautrec. Paris: Flammarion, 1951.

MORAES, Vinicius de. Vida e Poesia. In: Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.