PERFIS FEMININOS EM JOSÉ DE ALENCAR
UM ENFOQUE ESTILÍSTICO

Lucia Carine Rocha Corlinos (UERJ)
Iza Quelhas
(UERJ)

I- ASPECTOS SUBSTANCIAIS DA LINGUAGEM:

GRAFOLOGIA E FONOLOGIA.

O presente trabalho tem o objetivo de traçar e analisar sobre pontos estilísticos os perfis femininos alencarianos, baseado principalmente nas proposições do autor e escritor Antonio Candido na sua obra A Formação da Literatura Brasileira V. I e II. onde de uma certa forma nomeia três tipos diferentes de Alencares, a saber: Alencar dos heróis, Alencar das mocinhas e o Alencar dos adultos. Este trabalho infocará em aspectos estilísticos estes dois últimos.

A substância da linguagem é fônica - audível - ou é gráfica - visível. Para que se obtenha êxito no estudo de estilo relacionado a linguística, é necessário que se leve em consideração esse aspecto substancial da linguagem.

Segundo Spencer e Gregory citados em linguística e estilo:

Como a substância gráfica relaciona-se à, e em parte deriva da substância fônica, toda linguagem escrita tem algum potencial fônico (...) Em estilística, de que muito na linguagem escrita, particularmente no teatro e na poesia, escreve-se com potencial fônico, com seu falar impondo-se à mente.(p. 112)

A dimensão teatral presente nos perfis femininos escritos Por Alencar, caracteriza-se exatamente por essa relação fonologia-grafologia, no sentido em que o autor constrói cenários e reproduz emoções de seus personagens por meio de falas, fazendo intenso uso de sinais de pontuação - notadamente exclamações e reticências - grifos, acento e entonação, dando ao leitor a ilusão de fala em cena.

No romance Senhora, destacamos o seguinte trecho:

Quando lhe anunciaram o Lemos, ela sobressaltou-se; e o tremor que agitou as róseas asas da narina revelou a emoção interior:

- Uma pequena dificuldade que ocorreu naquele nosso negócio, é o que me traz.

- Qual foi?

- O Seixas...

- Já lhe pedi que não pronuncie este nome, disse a moça de modo austero.

- É verdade. Desculpe-me, Aurélia, precipitação...

Ele exige vinte contos à vista, até amanhã, sem o que ele não aceita.

- Pague-os. (p. 42)

Note-se que Sr. Lemos se refere a Seixas como Ele, de modo enfático, destacando com a inicial maiúscula a importância do pronome, já que durante o diálogo, não é permitido que se pronuncie o nome de Seixas, por uma questão de discrição.

Vejamos um outro exemplo, extraído do romance Lucíola, onde Alencar utiliza-se, mais uma vez, dessa relação fonologia-grafologia para expressar a emoção de suas personagens:

- Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei?

- Por quê?... Queria ver uma coisa.

- E não se pode saber o que era?

- Não é preciso.

- Há de me dizer...” (p.24)

A presença de sinais de pontuação, sobretudo exclamações, as reticências e o tom interrogativo, tem como função reproduzir a linguagem falada, tal como esta ocorre: com naturalidade, dotada de momentos expressivos aliados a todo instante aos sentimentos que nós falantes impomos à fala.

II- O LÉXICO NOS ROMANCES

Tonalidades emotivas das palavras

Os elementos que entram na constituição dos sentidos das palavras são de máximo interesse para a Estilística. A tonalidade afetiva de uma palavra pode ser inerente ao próprio significado ou pode resultar de um emprego particular, sendo perceptível no enunciado em razão do contexto, ou pela entoação (enunciado oral), ou por algum recurso gráfico como aspas, grifo, maiúsculas/ minúsculas, tipos de impressão e outros (enunciado escrito).

 

Palavras de significado afetivo: sufixos

Comecemos por mencionar a multiplicidade de valores afetivos dos sufixos de diminutivo e aumentativo.

O diminutivo pode exprimir, por um lado, apreciação, carinho, delicadeza, ternura, e por outro lado, irritação, ironia, hipocrisia. Está na fala de todos, cultos e ignorantes, e só não aparece com valor afetivo nos textos escritos que têm por meta a objetividade, e portanto, só admitem o diminutivo nocional, exprimindo a idéia de tamanho pequeno, sendo que, em muitos casos de diminutivo erudito, mesmo a idéia da pequenez passa despercebida (ósculo, opúsculo, glóbulo).

O uso de sufixos diminutivos com valor afetivo constitui-se uma marca no estilo de José de Alencar. Observemos alguns exemplos:

“Você é uma feiticeirazinha, Aurélia.” (Senhora, p. 25)

“Desde que a Duartezinha, como a chamavam nos salões, apareceu nas reuniões de Dona Matilde, foi logo cercada por uma multidão de admiradores.” (Diva, p.259)

Alencar utiliza esse recurso como forma de acrescentar às suas personagens uma condição de fragilidade e de suavidade por ele atribuídas às personagens femininas, o que foi bastante recorrente em todo o movimento do Romantismo. O autor enfatiza essa relação afetiva entre os personagens, criando uma atmosfera de bom convívio, familiaridade. Já em Lucíola, o artifício - embora o mesmo - possui outra função: Lúcia se utiliza a forma diminutiva de seu próprio nome - Lucíola - para tornar-se conhecida como cortesã. Nesse caso, o diminutivo expressa uma idéia de desproteção, e é exatamente essa idéia que tornará o termo Lucíola sedutor.

Alencar utiliza sufixos diminutivos também com caráter irônico quando, por exemplo, se refere à situação de Seixas: “desenganado o moço da Adelaide e dos trinta contos, não tinha remédio senão aceitar a consolação dos cem; consolação que levaria o pico de uma vingançazinha.” (Senhora, p.39)

Ou quando narra a atitude maliciosa e irônica do Sr. Lemos, quando este se refere à árdua tarefa de ser um negociante:

- Ora... o Sr. Seixas... Meu amigo, desculpe... Isto de negociantes... o senhor deve saber...Temos a memória na carteira ou no borrador. São tantas as coisas de que nos ocupamos, que realmente só uma cabeça de duzentas folhas, como esta, pode chegar para tanto. O velho soltou uma risadinha cacofônica e apontou para um livro mercantil colado sobre a carteira. (Senhora, p.40)

 

III - PERFIS E ELOS ENTRE FICÇÃO E REALIDADE

Os perfis femininos elaborados por José de Alencar, principalmente em Diva (1862), Lucíola (1864), e Senhora (1875) foram publicados sob o pseudônimo de G.M. e colocam algumas questões interessantes para se pensar o conceito de verossimilhança. Alencar faz uso deste conceito, com a intenção de convencer o leitor de que não se trata de uma mera narrativa de ficção, mas de um relato verídico.

A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, e em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso. (...) (carta do leitor - Senhora, p.7)

Um belo dia, recebi pelo seguro uma carta de Amaral; envolvia um volumoso manuscrito, e dizia: “Adivinho que estás muito queixoso de mim, e não tens razão. Há tempos que escreveste , pedindo-me notícias de minha vida íntima: desde então comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha história numa carta”. (...) (Carta ao leitor - Diva, p.5)

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências, e escrever também o romance de sua vida... (In: Senhora, p.138)

Esse caráter de veracidade próprio da literatura alencariana aparece também em suas cartas destinadas a seus leitores, com sentenças bem estruturadas, vocabulário bem escolhido, dirigido a um público letrado e seleto - notadamente a classe burguesa em ascensão no Brasil no século XIX. Alencar torna explícitas certas premissas da linguística, como a natureza e importância da relação emissor - receptor, as inter-relações entre contextos lingüísticos e não lingüísticos e dimensões de diacronia.

O estudioso Walter Raleigh definirá esta liberdade de escolha de significados em seu livro Style da seguinte maneira:

Pois as palavras carreiam consigo todos os significados que uma vez usaram e dever-se-ia julgar o escritor por aquelas que seleciona por proeminência no curso de seu pensamento (...) Ao escolher um sentimento para nossas palavras, escolhemo-lhe também um público. (Style, p.25-7)

Ora, Alencar ao preocupar-se com o uso das palavras adequadas e com a elaboração de sentenças bem estruturadas, para que se tenha a ilusão de veracidade, volta-se para as exigências de um público letrado e seleto, pelo destaque à expressão elaborada e não espontânea, esta última mais próxima das classes populares. Alencar escreve para a classe burguesa em ascensão no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, retratando e denunciando seus hábitos e costumes mascarados, por diversas vezes, de hipocrisia. Lucíola, Emília e Aurélia são perfis idealizados da figura feminina romântica: ocupam posição de superioridade em relação aos demais mortais, donas de uma beleza sobrenatural e de extrema sedução (mesmo Emília, em sua castidade e pureza, possuía “olhares de uma atração imperiosa e irresistível que cravavam um homem, o prendiam e o faziam cativo”) e retratos das damas da alta sociedade burguesa, pela posição social dada e pela semelhança com alguns traços de suas personalidades e de suas atitudes. Em suma, Alencar escreveu de acordo com os desejos a aspirações da classe burguesa utilizando um vocabulário e um modo de falar que confere identidade de gênero e classe social às personagens, no trânsito entre a idealização e a representação mais próxima das convenções realistas.

 

IV - FIGURAS DE LINGUAGEM

COMO RECURSO ESTILÍSTICO

METÁFORA E COMPARAÇÃO

Metáfora

Quando falamos em metáfora, pensamos, a princípio, em relações de semelhança entre duas significações com base na qual a própria pudesse ser substituída por outra, a figura, isto é, autoriza-se a transferência a partir da presença de um traço comum às duas significações. Por exemplo, quando Alencar em seu romance Senhora, compara - implicitamente - Aurélia a uma estrela, ele pretende, na verdade, atribuir à personagem qualidades próprias de uma estrela, tais como: luminosidade, capacidade de iluminar tudo ao redor, o que confere uma aura de superioridade. No entanto, em seu livro figuras de linguagem, Roberto de Oliveira Brandão, retomando a teoria de Jean Cohen, definirá metáfora como a “existência de um sintagma onde aparece contraditoriamente a identidade de dois significantes e a não-identidade de dois significados correspondentes” (p.76). E para que possamos compreendê-la será necessário encontrar o ponto comum que permita a redução dessa incompatibilidade inicial, isto é, a percepção de um desvio e sua redução.

Reparemos nesta metáfora de José de Alencar em seu romance Lucíola: “- Como se trata de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia - diga-se Lúcifer.” (p.36)

Imaginemos agora qual a relação de semelhança possível entre esses dois nomes próprios: Lúcia e Lúcifer, o ponto de intersecção entre eles para que ocorra uma redução de incompatibilidade inicial. Numa primeira leitura, sem o conhecimento do contexto, jamais compreenderíamos tal relação. À Lúcia são atribuídos certos traços de personalidade como o de seduzir o homem, espoliá-lo, tirar-lhe a graça Divina, para submetê-lo à sua própria dominação tal qual Lúcifer. Não se trata de uma substituição mera e simples de sentido, mas de uma intersecção, características comuns em ambos: Lúcia (prostituta) e Lúcifer estão associados pela capacidade de tentar, perverter, seduzir.

Vejamos outros exemplos de associações metafóricas presentes na obra de Alencar. Nesses exemplos também é evidente a idealização da figura feminina: “que esfinge era essa moça de dezoito anos?” (p.283)

De acordo com o Dicionário de Símbolos, esfinge é enigma, como a esfinge de Édipo; apresenta-se no início de um destino que é, ao mesmo tempo, necessidade e mistério. Ora mas qual semelhança há entre uma esfinge e Emília, a moça de dezoito anos? Alencar ao criar essa metáfora, relacionou os dois termos pelo sentido de mistério que ambos possuem; pela idéia oculta, apenas sugerida, como um segredo. As atitudes de Emília confundiam Paulo, que ora a tomava por ingênua, ora por mulher. Um enigma tal qual como uma esfinge.

“esse coração de mulher estava passarinho implume; quando lhe acabassem de crescer as asas, tomaria vôo e remontaria nos ares.” (p.70)

Nesse trecho de Senhora, Alencar nos apresenta os sentimentos através da imagem do coração de sua protagonista, Aurélia, um pouco antes de ascender: a intersecção entre um passarinho sem plumas, sem penas, e o coração de Aurélia sugere a idéia de fragilidade, de dependência, de falta, a necessidade da espera. Seria preciso que as asas crescessem para que ambos - a mulher e o passarinho - ganhassem o mundo.

“Por que segredo da natureza a rosa eu há pouco se ostentava no viço da florescência, abrochara as folhas, e agora botão recente, mal ia desatando o seio?” (p.84)

Alencar nos apresenta desse modo à capacidade de Lúcia de situar-se entre a sedução e a inocência; de mostrar-se ora como uma prostituta - dotada de malícia e eroticidade - ora apresentar-se, curiosamente, como uma donzela casta e pura. Na realidade, o que se pretende com essa metáfora é mostrar ao leitor que, embora Lúcia comercializasse o seu próprio corpo - situação exterior - ela ainda preservava, dentro de si, um estado de inocência que ela própria, por forças das circunstâncias, fora obrigada a adormecer.

Nos estudos da linguagem, a retórica considerava a existência de dois tipos de metáforas, a saber: In absentia - são comparações implícitas, já que não aparece o termo cujo referente é invocado; In praesentia - aquelas em que se manifestam os dois termos.

Tomemos um outro exemplo, extraído do romance Senhora: “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.” (p.14)

Alencar se refere dessa forma à ascensão de sua personagem na sociedade brasileira. Novamente, a compreensão da metáfora só se torna possível a partir do conhecimento do contexto, uma vez que a comparação é implícita.

O autor associa os grandes bailes da alta sociedade burguesa do Segundo Reinado ao céu: ambos possuem dimensão incomensurável, iluminados por diversos corpos celestes - as estrelas - na verdade, as jovens musas dos salões cariocas. No entanto, a Aurélia é dado um lugar de destaque: ela possui as marcas de um ser superior, que irradia luz e se sobrepõe ao humano, ao terreno, tal qual uma estrela.

Para alcançar um efeito estético, Alencar utiliza um recurso semântico bastante consagrado na literatura, concentrando os recursos na idealização da personagem feminina.

Comparação

Dentre as diversas modalidades de figuras semânticas, Todorov apresenta a comparação como “aproximação de dois fenômenos distintos”. Muitas vezes, essa aproximação se dá pelo uso de conectivos de “fraca equivalência”, como por exemplo: tal, parece, assim como, entre outros; ou por meio de conectores que refletem uma equivalência mais direta, explícita: como o verbo ser e o conectivo como.

Citaremos, a seguir, alguns exemplos de comparação explícita utilizadas como recurso semântico, isto é, aproximação de dois termos distintos com alto grau de equivalência entre eles, retirados do romance Diva: “era Emília um colibri implume.” (p.245)

A aproximação que se estabelece entre Emília e um colibri implume é a de falta, pois ambos não possuem plumagem. O termo plumagem aparece com sentido metafórico, uma vez que, mulher alguma, possui plumas. A associação feita entre o substantivo plumagem e Emília estabelece conexões com a atividade de ornar, enfeitar, embelezar.

“Há meninas que se fazem mulheres como as rosas: passam de botão à flor: desabrocham.” (p.245)

A equivalência entre os termos mulheres e rosas realça o processo de transformação física, de evolução, crescimento, expressado pelo verbo desabrochar.

Concluímos assim, que José de Alencar muito contribui na formação da literatura brasileira, com inovações estilísticas que em sua época serviu como base para muitos romancistas, que por sua vez espelharam-se nele para construção de romances históricos, sociais, urbanos e rurais. É importante ressaltar que esses recursos estilísticos mencionados ao longo deste trabalho deu a José de Alencar o título de precursor de inovações estilísticas no séc.XIX.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: Dicopel, 1977.

------. Diva. Rio de Janeiro: Dicopel, 1977.

------. Lucíola. Rio de Janeiro: Dicopel, 1977.

ENKVIST, Nils Erik et alli. Linguística e Estilo. São Paulo: Cultrix, 1964.

MARTINS, Nilce de Sant’anna. Introdução à estilística. São Paulo: São Paulo, 1977.

BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As Figuras de Linguagem. São Paulo: Ática, 1989.

TODOROV, T. Littérature et signification. Paris: Larousse, 1967.

RALEIGH, Sir Walter. Style. Londres, 1918.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 1º v e 2º vol. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.