A DISFUNÇÃO BUROCRÁTICA EM IES
UMA AMOSTRAGEM

Carmem Lucia Pereira Praxedes (UERJ)

O célebre lingüista italiano Tullio De Mauro, depois do seu magnífico trabalho sobre os dialetos italianos, está desenvolvendo uma minuciosa revisão da linguagem da Administração Pública:

Il “burocratese” ha le ore contate, parola del Ministro Franco Fratini. Il linguaggio dei vari avvisi di pagamento, bandi di concorso, e comunicazioni varie verrà infatti notevolmente snellito. Con l’obiettivo di tradurre tutti gli atti, appunto, in un italiano più semplice, un gruppo di linguisti avrà il compito di portare avanti il progetto “parlare chiaro”. Per loro è pronto un progetto che sarà firmato in questi giorni. (http://it.news.yahoo.com - 13/03/2002).

A importância de um trabalho em que se proponha revisar as relações institucionalizadas e, aparentemente, aceitas pela sociedade, como o trabalho que citamos acima, oportunamente sobre a linguagem burocrática, é aquela de tentarmos levar a termo as teorias nascidas no seio da ciência. Há muito é possível observar o questionamento de boa parte da sociedade - tanto leiga quanto iniciada - a respeito da aplicabilidade do produto científico, principalmente o das Ciências Humanas e Sociais. A Lingüística e a Semiótica, apesar de envoltas em teorias de grande complexidade, podem e devem ocupar altivamente este espaço. Podemos avançar do mundo da teoria àquele da prática comprometida, tantas vezes oriundo de um sonho por um mundo melhor.

O estudo que ora apresentamos, além de ter procurado rever aquilo que o técnico-administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - entendia por universidade e o quanto investia esta lexia do poder-fazer-fazer, desenvolveu-se a partir de um estudo histórico das universidades, brevemente sobre as fundadoras: Bolonha e Montpellier e mais detalhadamente sobre o caso em estudo: a UERJ.

A importância desta pesquisa, ao nosso ver, apresenta-se em apontar as raízes da nossa latinidade instaurada em nossos dias e em nossas práticas, nesta instituição de ofício que atravessou os séculos com a marca da tradição envolta no discurso da modernidade.

Falar de universidade é retomar a iluminada Idade das Trevas, sobre a qual se debruçam pesquisadores como ECO, Le GOFF e PERCIVALDI, entre outros. O primeiro com o seu best seller O nome da rosa, (1980) o segundo com Immagini per un medioevo (2000) e a terceira com Lo specchio del Medioevo (http//www.medioevo.org/percivaldi.specchio.1.pdf) . O que nos trazem eles de novo? A atualidade da visão de mundo medieval. ECO já afirmou que só conhece a Pós-modernidade quando liga a televisão. Le GOFF, segundo a resenha sobre o seu livro, acima citado, feita por FIDANZIA - em que se destaca a importância das mudanças ocorridas na Idade Média:

(...) In tutte le sue opere ,propone una storia dell’uomo quotidiano, analizza gli elementi di lunga durata che hanno contributo a formare e ad influenzare, a volte fino ai nostri giorni, i modi di vivere e di pensare dell’uomo occidentale. L’originalità di Le Goff sta nel suo modo di procedere nella ricerca storica e nella sua capacità di scoprire quelle tensioni e quei conflitti che avrebbero provocato i mutamenti che hanno caratterizzato la storia del Medioevo. Un Medioevo che egli fa iniziare nel III secolo e terminare nel XVIII.

E. PERCIVALDI, por sua vez, contesta os atributos de obscuridade e inércia histórico-científica por tanto tempo aproximados à Idade Média.

Destacada como “età di mezzo” a Idade Média é vista como momento de transição entre a Idade Antiga e a Moderna, como aquele que transita deixa e traz marcas, ainda estamos em conjunção com a Idade Média, apesar do discurso da disjunção.

Efetivamente, retomar o estudo da universidade a partir da sua origem medieval, é, para nós, repensar as relações que vêm secularmente sendo mantidas, demonstrando as implicações destas relações para o andamento satisfatório das atividades fins desta IES.

No contexto lingüístico-semiótico, dedicar-se ao estudo do universo do discurso burocrático é procurar rever a dinâmica das relações que levam os homens à necessidade de criar coisas - documentos - para intermediar as suas ações de trabalho, sob a égide da impessoalidade autoritária, traduzida numa assepsia tirânica que, geralmente, pouco colabora com o seu bem estar.

Àqueles que julgam, ainda em nossos dias, que a ligação estabelecida entre o pesquisador e o objeto analisado não deva partir de uma paixão, ou seja, uma vontade quase obsessiva de estar próximo do objeto do desejo (ou objeto de valor como sugerem os semioticistas), tal qual uma criança que precisa descobrir as formas do seu brinquedo preferido, é necessário considerar que o distanciamento do objeto analisando é muito mais alvo da retórica positivista do que algo factível ao ser humano, pois até ao bicho homem é limitada a capacidade de condução de seus sentimentos, somos nós a todo o momento razão e emoção / biológico e cultural / querer e poder / dizer e fazer. Vivemos em dialética a ponto de, aos sábios, muitas vezes, a ignorância significar a paz, diante da impotência que possuímos para lidar com os problemas e mazelas do mundo. No entanto necessitamos vencer la nausée, o niilismo de e em nós mesmos, buscando, paradoxalmente, a distância e a aproximação sob a medida imensurável dos nossos sentimentos.

Apresentamos-lhes aqui uma parte de uma pesquisa sobre universidade, sobre os topoi onde o sentimento de mudança do jovem se mescla com a perfídia intelectual daqueles muitos que conseguiram sobreviver dentro da universitas. E o que nos apaixona nesta corporação? a sua capacidade de representar eficazmente a dinâmica das relações humanas - as universidades nasceram para ser o que são: paradiso, inferno e purgatorio (sob a ótica de um estudante); MERDA à la PESSOA (1986), em seu Ultimatum (sob a ótica de um catedrático); poesis/labor (sob a ótica de um técnico). E para as instituições seculares do poder: l’impero e la chiesa - as universidades são o lugar de legitimação de suas existências, por isso elas conseguiram contemplar todas as categorias estabelecidas por CALVINO (1990) para o próximo milênio com os seus contrários: leveza e peso; rapidez e lentidão; visibilidade e obscuridade, exatidão e inexatidão, multiplicidade e unicidade , e consistência (consistency) esta última que, ao nosso ver, é o produto da convivência dialética das cinco propostas anteriormente citadas. A universidade de cultura latina é indubitavelmente o espelho do sistema de valores da latinidade. E sua efervescência (Il gran fermento) é a máxima expressão do seu início e do seu possível fim.

In principio era il Verbo e il Verbo era presso Dio, e il Verbo era Dio. Umberto Eco inicia O nome da rosa (1989) com esta citação da Bíblia Sagrada. Como um dos nossos objetos de valor é o estudo do pensamento de ECO, detivemo-nos nesta citação que nos chamou a atenção para a palavra universidade. Expliquemo-nos, para iniciarmos um estudo sobre Universidade - enquanto Instituição de Ensino Superior - deveríamos retornar ao ambiente universitário e indagarmo-nos sobre o quê entendíamos por universidade (Il verbum), ou seja, buscamos realizar no topos universitário uma breve atualização desta lexia in sincronia, como os atores e actantes são muitos, propusemos a atualização a partir do discurso dos técnicos e administrativos. Efetivamente, entrevistamos 514 pessoas, num universo de 4616 técnicos, 1991 docentes e 24.317 discentes (Gestão Uerj 2002). Organizamos um modelo de ficha com a pergunta: O que é universidade? E foi a partir destas fichas que fizemos a análise sociossemiótica do discurso burocrático em universidades - o caso da UERJ.

São as Universidades, entre as Instituições de Ensino Superior - IES, aquelas que trouxeram até nós o modelo universitário medieval. Especificamente o da Università degli Studi di Bologna, considerada a mater Universitas, apesar dos estudos que põem em xeque a precisão nas datas da origem das Universidades. Todavia, se há controvérsias quanto às datas, o mesmo não ocorre quanto a dinâmica de formação, ou seja, o agrupamento de escolas pré-existentes, em geral de Artes, Medicina e Direito. Foi este o processo de formação que chegou aos nossos dias. A propósito, podemos dizer que a tradição medieval, no que concerne às universidades, é a mais moderna que temos. E outros fatores corroboram esta assertiva, são eles: a universitas; i. é. a corporação de ofício, o studium; lugar de estudar e os scolarium; os estudantes como determinantes da existência da universidade. Podemos também acrescentar os magistrorum; os mestres que são a base da estrutura universitária. As atividades fins das universidades eram o ensino e a pesquisa e a forma de vê-las estava necessariamente articulada ao atendimento das necessidades sociais - a grosso modo, a extensão. Outra isotopia é o exercício do poder político, que se dava - e se dá - na dinâmica: impero x papato - poder público x poder religioso. Muito embora os docentes tenham se associado para transmitir os seus conhecimentos diretamente aos estudantes, principalmente nas chamadas universidades espontâneas, eles foram limitados pela necessidade de obtenção da licentia docendi que era concedida pela Igreja.

Em Orléans, a disciplina principal foi antes de todas a Retórica. Esse desenvolvimento espontâneo inquietou a Igreja que, desde a Alta Idade Média, afirmava seu monopólio em matéria escolar e colocou em funcionamento o sistema da licentia docendi: para abrir uma escola, mesmo que particular, fazia-se necessário ter em mãos uma “autorização de ensino” outorgada em cada diocese pela autoridade episcopal. Esse sistema se impôs principalmente porque, de toda forma, a maioria dos mestres continuava sendo, por seu estatuto pessoal, de clérigos VERGER (1990).

Outras características bastante atuais são a existência de estatutos, a eleição de seus reitores, o poder dos estudantes, sustentado sob o peso da moeda e a visão que tinham da função da universidade, enquanto instituição capaz de lhes outorgar títulos, que eles tinham como objeto de valor a ser alcançado a qualquer preço. É-nos surpreendente como uma instituição milenar possa ter mantido suas características fundadoras até os nossos dias. Paradoxalmente, os documentos que poderiam nos relatar quem e quando uma pessoa pública fora seu aluno desapareceram - se é que foram organizados com a intenção de preservação - a universidade posta a serviço do Estado e da Igreja guard -ara, -ava, -a os seus segredos.

Somente no Século XIV, conforme aponta VERGER (1990) é que surgiram os primeiros documentos (pergaminhos de requerimentos individuais endereçados pelas universidades ao papado, registros de matrículas, sobretudo na Alemanha). O país da burocracia aponta para os caminhos da gestão dos papéis, dos quais tanto carecemos para a História das Universidades. Curiosamente tal carência mantém-se até os nossos dias, já na sociedade do conhecimento muitas universidades ainda não têm um banco de dados organizado (os Data universitas...). Eles nem sempre existem para auxiliar no contar da história. E a quem interessa conhecer a universidade em número e nomes? Os interesses são vários, se dissecar um cadáver pode ser um exercício de aprendizado para o entendimento das anatomias e fisiologias humanas, o conhecer a estrutura e funcionamento de um corpo, qualquer que seja, pode propiciar também o seu uso nocivo ao próprio corpo ou à espécie que ele representa, ipso facto. Esperamos que o uso que venha a ser feito do saber (de todo e qualquer saber) tenha em vista o desenvolvimento e o bem estar do homem.

O presente trabalho fundamentou-se na Teoria Semiótica, cujo ramo da Sociossemiótica nos detivemos mais especificamente.

Segundo PAIS (1993 )

La sémiotique scientifique, développée à partir des propositions Hjelmsleviennes, se caractérise, comme science sociale, dans la phase post-moderne, par une rupture épistémologique, par l’élargissement de son objet, par sa vocation multidisciplinaire, par le fait de considérer les systèmes sémiotiques et leurs discours en tant que processus de production de signification, information e idéologie, par l’elaboration recherchée d’une conception dialectique de système et structure, par l’ emploi de logiques modales et dialectiques dans son métalangages d’analyse.

Define-se então a Semiótica Científica, conforme o fragmento acima citado, como ciência da significação que tem como objeto os processos semióticos (sistema x discurso), cujo método é indutivo-dedutivo com uma abordagem pancrônica ampla, lançando mão como metateoria do conjunto das Ciências Humanas, Sociais, Lógicas, Dialéticas e Modais com uma concepção sistema/estrutura dinâmica.

A Sociossemiótica - um dos ramos da Semiótica - é o estudo dos discursos sociais não-literários que considera o modo de existência e produção de significação - o estatuto sociossemiótico, as estruturas de poder, as relações intersubjetivas e espaço-temporais de enunciação e enunciado, os mecanismos de persuasão, sedução e manipulação, argumentação e veridicção - os sistemas de valores - com vistas a estabelecer uma tipologia dos discursos.

Esta definição se materializou no decorrer deste estudo através das considerações que tiveram como semiótica-objeto a semiótica verbal com um tipo de discurso não-figurativo. O topos escolhido foi a Universidade do Rio de Janeiro -UERJ - localizada na capital do Estado que lhe dá nome.

O recorte do discurso burocrático partiu de uma opção nossa, ocorrida por considerarmos, a partir de experiências anteriores, que seria este universo discursivo aquele que, ao nosso ver, melhor poderia demonstrar os entraves no desenvolvimento das atividades fins da universidade.

O discurso burocrático é sem dúvida um dos mais perversos, tendo como efeito de sentido a manipulação, ele se apresenta modalizado através do poder-fazer-fazer. As Instituições de Ensino Superior - IES - em que se destacam as Universidades - universitas - entendidas como corporações de ofício, mantiveram suas características por meio dos séculos e aderiram aos princípios burocráticos, articulando este discurso ao pedagógico. Assim, a importância da transmissão de conhecimentos, com vistas à aquisição de competência para o exercício profissional, nascido do querer-ser e querer-fazer sob a égide da ética profissional, vem atravessando os séculos subjugada aos interesses de alguns que nem sempre têm em vista o bem estar e desenvolvimento dos povos e nações. No Brasil, a forte herança latina da disfunção burocrática impossibilita a eficiência e a eficácia no desenvolvimento do ensino e da pesquisa, ou seja, da transmissão e da produção do saber.

Em meio aos discursos manifestos destacamos aquele dos técnicos e administrativos. A nossa indagação inicial foi como esta comunidade organizava o modelo mental de universidade, por isso, quando realizávamos a entrevista sobre o assunto, pedíamos aos entrevistados, um a um, que nos dissessem com poucas palavras o que é universidade. Buscávamos verificar o que eles de forma rápida e espontânea conseguiam organizar quando lhes era feita tal pergunta. Quais eram os lexemas GREIMAS (1989) que seriam relacionados (+ ou - vinculados ao campo da burocracia), efetivamente, como era produzida a significação; inscrita como sentido articulado (sentido/significação) (Op. cit., p. 419), para a produção e para a apreensão dos desvios da diferença.

Dos resultados alcançados alguns apontaram para a organização de uma visão universitária atualizada com os nossos tempos: A visão de cultura enquanto produto da universidade. As poucas alusões às lexias profissão, saber e ciência. Enquanto à profissão, podemos concluir que lhe tenha sido oferecida o mesmo investimento semântico de formação/ formação para o trabalho. O saber é passível de organização conjuntamente ao conhecimento. A ciência foi a grande lacuna apresentada. Vejamos alguns discursos: É a reunião de ciências em todos os graus. É uma casa de formação da ciência e conhecimento para o bem ou mal da humanidade. Provedor de cultura, ciência e desenvolvimento.

Todos os enunciados são, ao nosso ver, afóricos, pois o segundo que poderia ser considerado disfórico, neutraliza-se na medida em que articula o bem e o mal como produtos possíveis da ciência que venha a ser produzida na universidade. A grande quantidade de respostas generalizadas, tais como: a universidade é tudo. É maravilha. É uma fábrica de desempregados. É o universo da cidade. É tudo. É um mal necessário. A universidade é legal. É algo bem amplo. É a base de tudo, já que aqui nós aprendemos tudo e mudamos tudo. A intenção é muito boa, mas infelizmente. É um caminho para vida. É uma comunidade que precisa de informação. É um lugar onde... não há palavras para expressar este lugar. É o conjunto de maravilhas, já que daqui saem coisas maravilhosas. É tudo. Minha vida. Não é aquilo que se espera. Pensa-se uma coisa e se descobre outra. Maravilha - demonstra o grande campo de pulverização semântica em que a universidade se encontra. Atualmente, ela ainda é instituição de conhecimento, ensino, trabalho, formação, cultura, pesquisa, estudo e educação, pois 3/5 das respostas apontaram para estas lexias. Mas é também digno de destaque o 1/5 de alusões que apontaram para generalidades de caráter eufórico (maravilha) e disfórico (A intenção é muito boa, mas infelizmente) aqueles que conseguiram, de alguma forma, ingressar na universidade - como aluno ou trabalhador - manifestam em seus discursos a mesma trajetória da afetividade demonstrada por FAVARATTI (1997), vide figura, cuja indiferença leva ao não compromisso com as atividades fins da universidade ou, até mesmo, com as mudanças que possam ocorrer no estabelecimento dessas atividades.

Precisamente, no âmbito desta pesquisa, os técnicos administrativos demonstraram através dos discursos manifestos serem trabalhadores de nossos dias, segundo FLUSSER (1998 )

O trabalhador no seu sentido clássico e moderno tem sido substituído pelo funcionar. Já não se trabalha para realizar um valor, nem tampouco para valorizar uma realidade, antes se funciona como funcionário de uma função. Este gesto absurdo não se pode entender sem uma consideração da máquina, pois se funciona efetivamente como uma função de uma máquina, a qual funciona como uma função do funcionário, que por sua vez funciona como função de um aparato, e

esse aparato funciona como função de si mesmo. (Grifo nosso).

 

Sendo funcionários de uma função, não se sentem comprometidos, por sua vez, com a função da universidade, com o sucesso e realização de seus alunos, para onde vão e de onde vieram, pois a universidade, instituição tão célebre dentro da sociedade, investe os seus técnicos do poder míope do dever-fazer-fazer, pelo bem do serviço que nem sempre é o bem da instituição.

O treinamento (quando há) que é imposto ao técnico tem em vista, na maioria das vezes, enquadrá-lo em um sistema de normas e compromissos o mais estático possível.

Cabe às chefias - formadas por outros técnicos e/ou professores devidamente adaptados ao sistema guiá-los (cegamente) no trabalho. Finalmente, os técnicos aceitam e executam as ordens recebidas, sem demonstrarem muito apego às suas atividades - apenas 3% dos entrevistados vêm a universidade como a sua casa - diminuindo, assim, o compromisso que deveriam ter com elas.

A universidade é uma parte da sociedade envolta em laços de cetim, basta, portanto, que a sua comunidade queira retirar tais laços para que ela possa ser desamarrada.

O técnico-administrativo apresentou nos discursos manifestos a angustia característica do trabalhador num sistema cujas relações de trabalho são funcionais. Aqueles que apresentaram uma relação de euforia com a universidade ou são recém ingressos ou já superaram satisfatoriamente o percurso da adaptabilidade (esperteza), caracterizador da cultura e ordenamento social brasileiros, conforme PAIS (1997).

Constatamos que as estruturas de poder intra-universitário são altamente hierarquizadas e divididas em corporações, conforme a universitas, de acordo com o trabalho que executam. O trabalho- ensino, o trabalho-estudo e o trabalho-trabalho, sendo que em todos eles há pontos de interseção, ou seja, há professores que além de ensinar também são estudantes; estudantes que além de estudar também são professores e/ou trabalhadores e trabalhadores que além de trabalharem também estudam.

Os discursos manifestos em maioria apresentam-se debreados do sujeito-enunciador, embreados no sujeito da enunciação. Embreados no espaço - (A universidade é lugar de....), cujo tempo da enunciação em geral foi o presente. Os tipos de manipulação encontrados foram a tentação e intimidação. É importante destacar que o técnico enquanto agente de um fazer é aquele que deve cumprir ordens que são passíveis de se sobredeterminarem em poder-fazer-fazer. O sistema de valores manifesto é aquele do privilégio e da restrição. Conforme PAIS (1997) como caracterizadora da cultura e do ordenamento social brasileiros, sustenta-se uma tensão dialética entre duas forças contrárias, o privilégio e a restrição. Consideremos, pois, esses metatermos, no plano das modalidades semióticas. O metatermo privilégio define-se pela combinatória de modalidades complexas (querer-fazer, crer-poder-fazer, crer-saber-fazer, crer-dever-fazer). O metatermo restrição define-se, por sua vez, pelas modalidades (querer-não-fazer, crer-não-poder-fazer, crer-não-saber-fazer, crer-não-dever-fazer). O termo contraditório de privilégio é não-privilégio, caracterizado pelas modalidades (não-querer-fazer, não-crer-poder-fazer, não-crer-saber-fazer, não-crer-dever-fazer). O termo contraditório de restrição é não-restrição, correspondente às modalidades (não-querer-fazer, não-crer-poder-fazer, não-crer-saber-fazer, não-crer-dever-fazer). Como se vê, trata-se de valores ligados a uma vontade política e a um sistema de crenças, concernente, ainda, a uma vontade, uma determinada competência e uma ética.

Como contribuição à tipologia do discurso burocrático universitário, apresentamos a figura abaixo:

 

A figura representa na linha nº 1 a aforia (A) apresentada nos discursos de cem técnicos, isto é, a grande maioria definiu a universidade sem querer demonstrar um juízo de valor. Discurso do tipo: É uma universidade. É um local onde forma pessoas.

Na linha número 2 a euforia - 41 enunciadores manifestaram-se (É algo importante no que se diz respeito ao ensino no nosso país e no nosso estado. É Maravilhoso. Pude perceber isto já neste primeiro ano que estou aqui.).

Na linha nº 3 a disforia (É uma fonte de stress e um lugar para se profissionalizar bastante.)

O efeito de sentido-verdade surge sobremodalizado em enunciados de estado, caracterizando-se a universidade com uma competência para fazer-ser/conhecer.

A partir deste estudo, pudemos notar que a universidade necessita rever as suas relações de trabalho, com vistas a melhorar o seu desempenho nas atividades de ensino e pesquisa. O técnico-administrativo precisa ser orientado e, sobretudo, preparado para valorizar as suas atribuições enquanto atividades fundamentais e decisivas para o desempenho de boa parte da sociedade - daquela que venha nela estudar e, por conseguinte, preparar e realizar seu ofício em seu meio. Também pudemos constatar que a cultura do governo dos papéis é bem aceita, da mesma forma que é a dos privilégios. Àqueles que se manifestam resta o espaço da exclusão ou, para poucos, o da adaptação. O discurso da legalidade surge desarticulado ao da legitimidade. Criou-se o controlicismo - que se caracteriza por não objetivar o desenvolvimento institucional e sim servir de aparato as suas falhas e disfunções. Neste contexto, os profissionais mais capacitados ou se afastam ou são afastados destas instituições. A disfunção burocrática, ao contrário do que muitos afirmam, não é um problema característico da instituição pública, pois ela ocorre relacionada aos vícios culturais, sustentada pela política da esperteza ainda presente em alguns países como Brasil e Itália e ainda existe por gerar recursos financeiros com baixo investimento, sendo, portanto, ainda mais nociva em instituições educacionais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ECO, U. Il nome della rosa. Milano: Bompiani, 1989.

FAVARATI, V. L. C. Uma análise semiótica dos contos de Nelson Rodrigues: a condição da mulher, do homem, da família e o sistema de valores da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH, USP, 1997.

FLUSSER, V. Para além das Máquinas. In: BERNARDO, Gustavo (Org.). Literatura e sistemas culturais. Rio de Janeiro: UERJ, 1998, p. 9-18.

GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 403 e 419.

PAIS, C. T. Pour une approche sociosemiotique du processus culturel: lexique et metatermes. In: PAIS, C. T. Conditions sémantico-syntaxiques et sémiotiques de la productivité systémique, lexicale et discursive. Thèse de Doctorat d’État ès-Lettres et Sciences Humaines. Paris: Université de Paris-Sorbonne/Lille, Atelier National de Reproduction des thèses, 1993, p. 603-613).

------. Dos valores socioculturais, dos processos de inserção e exclusão In: Anais da 49ª Reunião Anual da SBPC. Conferências, mesas redondas, Simpósios. Vol. 1. São Paulo, SBPC, 1997.

PESSOA, F. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986, p. 509- 520.

VERGER, J. As Universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990, p.14-25.