HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: AUTORIA E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Valéria Maria de Oliveira Miranda - UNIVAP
Teresinha de Fátima Nogueira - UNIVAP

 

INTRODUÇÃO

 

Esta pesquisa foi desenvolvida na oficina de Leitura e Produção de Textos pertencente ao Projeto Vale Criar. Esse projeto é uma experiência nova tendo como parceria a Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), Instituto General Motors, Lions Club de São José dos Campos e a empresa de transporte Breda Turismo. É um projeto social que inclui diversos tipos de atividades pedagógicas desenvolvidas nas oficinas de educação emocional, educação física, ciências, leitura e produção de texto, música, teatro, foto e vídeo, brinquedoteca e artes, monitoradas pelos alunos universitários da Univap. Estas atividades são realizadas com crianças de baixo poder econômico de 10 a 14 anos da periferia de São José dos Campos/SP, tendo como um dos principais objetivos o acesso a prática culturais, recreativas e artística num contexto informal de aprendizagem.

A proposta pedagógica do projeto Vale Criar visa desenvolver e atender às necessidades de ambas as partes envolvidas: criança/adolescente e universitários, objetivando a construção da identidade dos primeiros, promovendo sua auto- estima para o desenvolvimento da cidadania, como também incentivando a participação dos universitários na forma de estágio, como monitor junto àquela população.

Aproveitando o sistema do projeto Vale Criar que é organizado sob uma pedagogia com caráter informal de ensino, ou seja, não há nota classificatória em suas atividades, e sim o auto- reconhecimento e participação livre do aluno, comecei a analisar os resultados das atividades de escrita na oficina, e notei que para o aluno escrever com mais prazer é necessário vivenciar um contexto informal e próximo a sua realidade. Junto à coordenadora da oficina, resolvi fazer um projeto no qual fosse possível desenvolver a escrita, fazendo com que o aluno tivesse interesse e prazer de escrever de uma maneira livre e informal. Uma das atividades propostas foi escrever uma história em quadrinhos em que o aluno põe suas idéias, seu pensamento, seu eu, em forma de história, passando assim a escrever o que gostaria com prazer, e não por obrigação, pois esses alunos não têm acesso a material de leitura variado e a escrita não se constitui uma prática cotidiana, ou seja, não faz parte de sua historicidade na comunidade onde vive, ocorrendo assim sua distancia do conhecimento do mundo cultural e seu discurso ficando em torno de sua sociedade habitacional. Isso contribui para que seu mundo se mantenha fechado, circunscrito, tendo acesso a ele somente os que fazem parte da sua história de vida.

Tendo em vista a finalidade desta pesquisa, segundo Olandi (1988.08), “... o sujeito quanto aos sentidos são determinados histórica e ideologicamente”, ou seja, todo sujeito- autor quanto aos sentidos carrega consigo sua historicidade, transferindo assim a sua realidade e ideologia para a escrita.

O sujeito- autor tem a ilusão da realidade do pensamento, isto é, o discurso se apresenta como reflexo de seu conhecimento objetivo da realidade, ele não se limita a expor a sua historicidade na escrita, para ele é até importante outros fazerem parte de sua vida para haver troca de idéias. A ideologia que se cria é de vencedor, mas de forma violenta, que para o aluno é considerado “acaso”, não há uma relação de sentimento, pois já faz parte da sua história de vida, e tendo esta visão, o sujeito carrega na escrita sua realidade, sua vivência, tais acontecimentos estão servindo de formação do discurso para o autor. Confirma-se assim a teoria e prática de que a linguagem é definida pela própria existência do homem, pois é na e pela linguagem que o homem se constitui sujeito, carregando toda sua história de mundo e de leitura na construção de seu discurso, num determinado tempo e numa dada situação de enunciação, isto é, as condições de produção discursiva.

Assim o sujeito- autor transfere para sua escrita as condições de produção deste discurso de maneira inconsciente e ilusória, sendo envolvido por elas e carrega dentro de sí, sem perceber a ligação que ocorre entre sua realidade e a escrita.

 

 

O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

 

Para que fosse trabalhada e desenvolvida a atividade de Histórias em Quadrinhos, contei com a infra- estrutura da sala de Leitura e Produção de Textos que contêm mais de 2.000 livros paradidáticos , 300 didáticos, jornal, caixa de correio para correspondência interna, revistas, dicionários e outros materiais como canetas hidrocolor, gizes de cera, canetas estereográficas, lápis de cor e diferentes tipos de papel, diversos tipos de gibis, para que os alunos passassem a ter um interesse maior antes da criação de uma História em Quadrinhos.

As histórias em quadrinhos foram desenvolvidas por etapas que levaram quatro meses para finalização: A primeira atividade a ser desenvolvida para a criação da história em quadrinhos foi a explicação sobre a importância do balão. Num segundo momento, discuti junto aos alunos os conceitos de monólogo, diálogo, diálogo- encadeado , e após , falei sobre os formatos que cada balão pode assumir e expressar como: o balão de pensamento, cochicho, grito, em situações de algazarras ou tumultos, vindo acompanhado das onomatopéias.

Após as explicações várias atividades foram desenvolvidas: a) os alunos receberam uma folha sulfite contendo desenhos referentes a várias situações e expressões de personagens para ser colocado o tipo de balão e a que se referia cada situação e sua onomatopéia; b) Trabalhei com as imagens das personagens, que dão movimento e vida aos quadrinhos, tais como: as imagens de medo, raiva, tombo, movimento, suor e cansaço, e também a expressão facial da personagem que revela suas emoções como: más intenções, dúvida, felicidade, sono, espanto e choro. Aqui também foi utilizado papel sulfite contendo desenhos com personagens para que os alunos descobrissem sua imagem e expressão.

Após estas duas atividades, percebi um envolvimento bem acentuado por parte dos alunos, pois tiveram uma boa compreensão, interesse e interação no desenvolvimento da atividade. A interação autor e material escrito evidenciou-se através das produções elaboradas por eles e através de uma expectativa positiva para construir as próprias Histórias em Quadrinhos, que seria o resultado final desta atividade.

A próxima etapa a ser desenvolvida foi os alunos desenharem uma personagem, iniciando pelo rosto com poucos traços e com a expressão que quisessem, terminando o desenho com o restante do corpo da personagem.

Foi trabalhado também os diversos gêneros do discurso através da exibição de filmes como comédia, drama, romance, suspense, aventura e terror, e cada gênero explicado era relacionado às diferentes histórias para que ficasse claro aos alunos a diferença que há entre os gêneros. Depois foi distribuído aos alunos um material contendo quadrinhos da Turma da Mônica sem diálogo, para que os alunos percebessem as diferentes expressões das personagens dentro deste gênero discursivo.

Na próxima etapa, foram escolhidos pelos próprios alunos os gêneros e o tema a serem trabalhados nas Histórias em Quadrinhos que eles produziriam. Após, os sujeito- autores escreveram uma narrativa da história objeto central do seu gibi com a finalidade de aprimorar os elementos coesivos e de coerência próprios deste tipo de produção.

Essa etapa do desenvolvimento do trabalho já indicava que a escolha de gênero e tema por parte dos alunos tinha como base seu cotidiano, suas histórias de vida e da sociedade em que estão inseridos.

Entre os gêneros mais utilizados pelos alunos em sua própria produção textual destaca-se aventura e suspense. Suas histórias foram construídas livremente, havendo minha intervenção somente para erros ortográficos, de coerência e coesão ou para esclarecer as dúvidas oriundas da dificuldade que os alunos têm em produzir material escrito.

Finalmente, os alunos desenharam as personagens nos quadrinhos seguindo a seqüência da narrativa, processo este que eles se envolveram de maneira integral e conseguiram expressar os sentidos pré- estabelecidos no seu imaginário discursivo. O entusiasmo e a empolgação foram constantes, pois eles vivenciaram uma produção escrita significativa para a construção do sujeito- autor.

Como já havia dito anteriormente, as narrativas das histórias em quadrinhos dos alunos foram baseadas em sua história de vida, na sua realidade social e histórica que denota uma vivência pessoal e familiar, compartilhada pelos personagens do meio que estão inseridos. Fatos concretos próximos ou mais distanciados configuram-se como um fio discursivo associados ao imaginário criativo dos autores em questão.

Cada história teve uma relação com acontecimentos de sua vida pessoal, pois como os alunos são residentes de um bairro no qual é possível presenciar muita violência, esta acaba fazendo parte de sua vida sem ao menos perceber.

Sendo assim, a temática mais utilizada nas Histórias em Quadrinhos foi a violência, que está presente em seu cotidiano, fazendo com que não consigam distanciá-la de suas vidas e da sua sociedade. No momento da criação das histórias, a imagem criada pêlos sujeitos- escritores em questão se materializa na sua produção escrita através da transferência do mundo real vivido para o mundo imaginário. Apesar dos alunos terem acesso às mais variadas revistas de histórias em quadrinhos no projeto Vale Criar e deles terem liberdade para produzir as suas próprias histórias, que poderiam vislumbrar uma temática com um teor de encantamento e fantasia, a produção de seu texto percorreu um caminho doloroso e trágico. O final das histórias que poderia ser encantador acabou em muitas vezes em tragédia, morte, transferindo mais uma vez sua realidade para a sua produção criativa.

Isso nos evidencia que o aluno usa a escrita para reproduzir o mundo que o cerca, como a sua sociedade, o seu bairro, o seu cotidiano, que é a sua única vivência possível até o momento, e também, através da escrita ele tenta se livrar dos problemas que estão em sua volta mesmo que seja através de sua reprodução. Como em sua realidade os problemas de intrigas são resolvidos entre as pessoas acabando em morte, o aluno também em sua escrita tenta resolver os problemas de suas Histórias em Quadrinhos através da morte, mas de maneira mais suave, porém refletindo de modo claro e evidente a interferência da sua realidade na escrita.

Nas histórias em quadrinhos produzidas percebe-se que não há continuidade, pois o aluno não tem o conhecimento e a prática de gênero narrativo, e assim acaba finalizando sua história sem ter a menor preocupação com o leitor se este irá compreender ou não, pois para o sujeito- autor a sua história está nítida e perfeita. O único leitor que consegue compreender e perceber o que o escritor está querendo dizer é aquele que também tem sua história de vida similar a do autor. Pelo fato da produção escrita não se configurar em uma prática cotidiana e significativa para o aluno, mesmo num gênero que eles têm acesso como leitores, a formação discursiva fica comprometida. Nas suas histórias não existe regularidade discursiva, pois o limite entre aquilo que pode ser dito e o que é realmente dito tem caráter inconsciente e ideológico. Sendo assim analisando sua História em Quadrinhos e a de uma revista de super herói podemos notar a diferença, a do super herói combatendo a violência, e a do aluno criando esta.

 

Conclusão

 

Através dessas Histórias em Quadrinhos, verifiquei que o interesse do aluno para desenvolver uma escrita mais significativa é baseado na temática e no gênero como parte de sua realidade. O interesse de desenvolver qualquer produção de texto junto ao aluno deve ter como ponto de partida um tema que tenha significado para sua vida, e para ele não faz sentido somente escrever, tem que haver algo mais que envolva com o seu eu, o seu imaginário, a sua realidade, pois assim o trabalho será mais produtivo. Quando o sujeito- autor vai desenvolver uma produção escrita, ele resgata o eu que existe dentro de si e cria suas histórias a partir do seu mundo imaginário, que constitui sua própria linguagem. Esta relação que houve nas Histórias em Quadrinhos evidência que a produção escrita do sujeito- autor inexperiente tende a se focalizar na sua historicidade sócio- cultural, pois para ele não existe um mundo imaginário de encantamento e fantasia, e sim o imaginário real no qual se assegura e se embasa para dar o desfecho da história, pois sendo o protagonista na versão real ou imaginária, o fim será o mesmo, o que não ocorre nas histórias de contos de fada.

Ao escrever uma história, seu imaginário idealiza sua sociedade mesmo que adotando discursivamente uma espécie de reprodução na qual é mais fácil se relacionar, se expor e se auto- valorizar, pois há alguém que irá reconhece-lo como herói.

Esse tipo de trabalho colaborou para uma identificação de suas personagens, dos papéis que ele ocupa na sociedade como cidadão, como escritor, mas não conseguindo separá-los e sim relacioná-los ou associá-los. Neste sentido, ele expôs o seu sentido de vida, a sua representação do que seja viver, o que poderia não ocorrer da mesma forma se o trabalho fosse sobre histórias de fantasias, pois nessas histórias ele não assumiria o papel de protagonista, já que no seu cotidiano não há espaço e nem vida para um príncipe encantado, apenas para um sujeito rodeado de sofrimento, tristeza, tragédia, morte.

Essa prática de produção de texto é possível fazer dentro das condições estruturais do local e da aproximação do professor para a realidade do aluno, havendo assim uma interação maior aluno- professor, o trabalho será mais qualitativo no qual é possível ter retornos surpreendentes em que o aluno progride tanto para a escrita como para a leitura, porque sem a leitura não há criatividade para escrever.

 

BIBLIOGRAFIA

CORACINI, Maria José Rodrigues Faria (1991). Análise de Discurso: Em busca de uma metodologia. D.E.L.T.A, vol. 7, nº 1.

GALLO, Solange Leda (1992). Discurso da Escrita e Ensino, Campinas, Editora Unicamp.

GARCEZ, Lucília ( 1998). A Escrita e o Outro, Brasília, Editora UNB

KATO, Mary A. (1998). No mundo da escrita. Uma perspectiva psicolingüística, São Paulo, Editora Ática, 6º Edição.

ORLANDI, Eni Pulcinelli (1988). Discurso e Leitura. Campinas, Editora Unicamp, 5ª Edição.