A ESCOLHA LEXICAL E A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO FEMININO NO TEXTO PUBLICITÁRIO

Aline Cristina de Araújo (UFF)

 

Neste artigo, procuraremos observar a questão da escolha lexical e a construção do sujeito feminino, a fim de descrever a prática discursiva entre os atores da situação comunicativa, concebendo a própria marca como enunciador e as mulheres como enunciatárias. O trabalho ampara-se na linha de Análise de Discurso, desenvolvida por Fairclough, na concepção psicanalítica de subjetividade, um sujeito desejante, o que justifica o status de consumidor do enunciatário e o alcance da peça publicitária, que promove a venda cada vez maior de cosméticos.

O sociólogo francês Jean Baudrillard caracteriza o estatuto da sociedade global de consumo que em muito difere do padrão vigente na economia doméstica patriarcal, antes da Revolução Industrial. A nova ordem, a ordem da sociedade de consumo é descrita da seguinte forma:

O que domina o estatuto dos objetos produzidos para o consumo é a oposição modelo/série, essa oposição sempre se deu, desde quando um grupo menor era responsável por difundir peloartesanato local” os estilos. Mas é privilégio da era industrial o fato de que o uso do objeto de série se dá a partir de uma postulação implícita ou explícita dos modelos.

Outrora, a civilização impunha um ritmo aos objetos, hoje, são os objetos que ditam aos homens um ritmo descontínuo, à maneira como eles se alteram, e alternam, numa marcha sem fim em busca do novo modelo.

Dessa nova moral, nasce um sistema grosseiramente resumido no binômio produção-consumo. Não se acumulam bens como antes, o consumo precede a acumulação, para tanto o objeto a ser consumido deve basear-se em um modelo cuja sina é ser perseguido, nunca encontrado, sob a pena de interromper o ato maior da sociedade capitalista: a compra.

As alavancas desta nova ordem são a personalização e o crédito, enquanto a primeira personaliza o objeto, tornando-o exclusivo, a umvocê” no anúncio publicitário, o outro antecipa o prazer da posse, mantendo o grilhão do consumo, que, quando chega a fatura, há outras compras que não podem esperar, pois os objetos seguem sua busca frenética pelo modelo ideal, e é preciso ter aquele objeto. O crédito e a personalização conferem aos objetos, no dizer de Baudrillard (1993) uma função sócio-política que eles nunca tiveram.

Sobre os objetos a serem consumidos, gira um discurso que num primeiro momento é o discurso publicitário em sua função primeira : a divulgação de um produto para promover a venda. Em tese, esperaríamos uma fala didática que pretendesse informar. Ledo engano, o que se tem é um super elixir composto de informação, persuasão, artimanhas retóricas e um ingrediente mágico que vivifica, dá vigor à sociedade de consumo, atribuindo à publicidade uma função importante na ordem da sociedade: ela é o “álibisob o qual se protege todo o desenrolar da integração dos homens à sociedade global de consumo.

A esse ingrediente mágico, o sociólogo chama de “calor” e defende o seguinte ponto de vista:

O que a publicidade acrescenta aos objetos, sem o que eles não seria o que são – é o ‘calor’ [...]Você é visado, amado pelo objeto. E porque é amado, você se sente existir: você é ‘personalizado’: isto é essencial: a própria compra é secundária [...]  Se o objeto me ama ( e ele me ama através da publicidade), estou salvo.

A partir do que se pode fazer um paralelo entre o jogo publicitário e a situação primeira de gratificação vinda do outro, da mãe, uma reconciliação com o momento de plenitude perdido que se encontra a cada nova posse do objeto x ou y, que na sociedade de consumo não é um legado, uma herança, um dom, ou o sacrifício de um clã, mas o simples ato de compra.

Aqui surge o espaço para explorar o “ingrediente mágico” no elixir da publicidade, citado anteriormente, esse componente mágico nada mais é do que o “nome do desejo”. Ao ser humano destinam-se tarefas ingratas como a de descobrir em si mesmo o que lhe completa, a publicidade poupa o homem dessa árdua missão, quando diz-lhe exatamente o que ele quer. E a satisfação é total quando o que ele quer também o deseja, nomeando e suprindo a falta.

Outra possibilidade que se descortina para conceber essecalor” diz respeito ao modo de construção do objeto na mensagem publicitária, os tijolos dessa construção são as unidades que compõem o léxico de um idioma, são as potencialidades desse conjunto de palavras que determinarão o sucesso de um produto.

É certo que a propaganda, apesar de todo aparato icônico, do apoio da imagem, deve o seu sucesso à palavra, ao discurso, pois o não-nomeado não faz parte do real. E a realidade é constituída pelo símbolo, o real é produto da relação dialética entre os objetos, as formações imaginárias e o signo lingüístico.

A marca, o significante, a língua é o que permite ao humano compartilhar. Há uma ordem da língua à qual todos estão sujeitos como alerta Barthes (1997). “ a língua [...] não é nem reacionária, nem progressista: ela é simplesmente: fascista; pois o facismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.”. Entretanto, a subordinação à ordem não ocorre apenas no nível da língua como sistema. As amarras são muito mais firmes, pois também a ordem do discurso, como afirma Foucault, (2000).

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório.

Cerceado pelas ordens do dizer está o sujeito, para quem não outra opção de inserção no mundo real além do símbolo, além da submissão a tais ordens. Precisa-se da ordem da língua, da religião, do tempo, da família, da história, enfim o homem é instituição e língua e discurso é exatamente aquilo que o institui.

Mas como se dá esse mergulho no símbolo, em que momento da existência humana o verbo e o homem se encontram ?

Édipo, aquele que para Sófocles protagoniza uma tragédia, é para Lacan( 1988a, 1988b) uma figura para o tema da gênese do humano e representa o sujeito universal, que, contrariando a mitologia, alcança o sucesso quando reconhece Laio e dissocia-se de Jocasta. a instituição da tríade familiar permitirá ao ser humano escapar da tragédia de não ser, de apenas estar.

Num primeiro momento, o pequeno Édipo tem a mãe como a provedora de todas as suas necessidades, como se ela fosse um apêndice onde está contida toda satisfação.

Num período em que a teoria psicanalítica nomeia de o estádio do espelho, isto é, a partir de uma identificação com a imagem refletida, ou com a visão do outro, tem-se a percepção de si; é uma fase caracterizada por um transitivismo normal.

A dissociação será possível com a interdição provocada pelo pai. Até então, mantenedora de uma relação dual com a mãe, a criança como que não sabe onde termina, é preciso algo para circunscrevê-la, limitá-la ao registro imaginário. O desejo, que até então era “o desejo do desejo da mãe e, para satisfazê-lo identificava-se com o objeto deste desejo”, isto é, o falo, passa a ser substituído pelo símbolo que o nomeia e o transforma.

A adesão ao símbolo será possível com a aceitação da Lei do Pai. A partir de então o sujeito se engaja em um significante, em uma busca incessante fadada à não-satisfação.

Entretanto, tal qual Édipo, o ser humano não pode evitar a tragédia, seja quando reina em Tebas ao lado de Jocasta - o psicótico cujo reino é a totalidade do ser - seja por desfazer do oráculo, neuroticamente agregado a Laio e Jocasta, tragicamente encarcerado pelo muro da linguagem.

A metáfora paterna institui um momento radicalmente estruturante na evolução psíquica da criança. Além de inaugurar seu acesso à dimensão simbólica, afastando a criança do seu assujeitamento imaginário à mãe, ela lhe oferece o status de sujeito desejante. O eu advém porque circunscrito no simbólico o sujeito recai no imaginário, onde são compartilhadas as experiências da coletividade, a cultura. O eu toma seu valor da representação imaginária oferecida pelo outro e em relação ao outro.

Quinet (2000) afirma quedesejo é o nome do sujeito da nossa era: a era freudiana”. A Psicanálise postula que o sujeito se organiza a partir da falta, da interdição, de ter perdido o objeto. O que implica em uma busca a não ser satisfeita. Esse movimento à procura de é o desejo.

A busca está fadada à enunciação e não ao encontro. Ela será enunciada, deslocando-se de marca em marca. Hoje Mariana quer um batom Shiseido, amanhã um Lancôme..., porqueo desejo está no deslizamento do significante que busca se realizar de significante em significante” Quinet (op. cit.), mas que não se realizará, visto que ao sujeito está negada a volta à situação inicial, quando era a um tempo desejo e objeto, como foi com a “mãe”. Um sujeito pleno.

O sujeito em busca da plenitude aderi ao símbolo para significar sua falta, tal adesão provoca um assujeitamento à linguagem, aos discursos correntes na sociedade, de onde surge a questão maior deste trabalho: as influências do enxame de imagens e ditos produzidos pela publicidade na constituição da subjetividade.

O sujeito é profundamente influenciado pela publicidade, permitindo-me o uso do parco recurso da analogia, as imagens, o padrão vendido com determinados produtos funcionam comotijolos” na construção dos sujeitos pós-modernos. Tem-se à disposição o formato idealizado e, desde que se possa pagar a conta, leva-se para casa o produto acompanhado da esperança de adquirir a novamesma forma, como reitera Sodré (1998)

...a biologia genética e as diversas tecnologiascosméticas’ (medicamentos, psicologia euforizante, produtos de beleza, ‘gender-clinics’, publicidade etc.) dão margem a uma livre combinatória da identidade pessoal.

Pensemos em como o discurso publicitário conduz o sujeito feminino a aderir a esta ou àquela forma.

No cenário descrito até então, nota-se a presença de três grandes questões:

1-       A sociedade global de consumo, cuja alavanca é a produção de objetos cada vez mais perenes, a fim de manter a escalada do consumo.

2-       O sujeito consumidor, cuja antropogênese, com base na teoria psicanalítica, remonta a um tempo ao símbolo e ao desejo.

3-       O porta-voz dos objetos de consumo, isto é, a mensagem publicitária que apoiada no discurso nomeia a falta, fazendo crer que cada novo produto saciará o desejo.

Fairclough (2001) propõe uma abordagem para análise de discurso que investiga fenômenos sociais, contemplando as práticas discursivas, a partir do que exploraremos as configurações referentes à beleza feminina nos textos publicitários.

Segundo o autor, a multiplicidade de meios para expressar um significado oferece perspectivas diversas sobre os domínios da experiência, é a lexicalização alternativa, que pode levar à geração de novas categorias culturalmente importantes. O uso de certos itens lexicais ao invés de outros são determinantes na construção de textos e no caso das mensagens publicitárias, dos sujeitos.

Observe os fragmentos de textos que se seguem, retirados de propagandas que promovem a venda de anti-rugas, veiculados na Revista VEJA, Ed. 1 729/A, ano 34 – nº 48, dez 2001:

 

Texto 1

Nivea Visage de Nivea

“Funciona e eu sou prova disso.” Karen

Rugas ? Isso não é mais um problema pra mim.” Cláudia

Não é artificial, é natural da própria pele.” Renata

Quando três mulheres concordam em alguma coisa, é porque funciona.

Depois de 6 semanas, você percebe a redução de rugas e linhas de expressão.

 

Texto 2

Neutrogena Healthy Skin de Neutrogena

Se a idade não está na sua cabeça.

Também não precisa estar no seu rosto.

Neutrogena Healthy Skin resultados visíveis a partir da segunda semana.

[...]Retinol e Multivitaminas que reduzem linhas finas, rugas e manchas.

Texto 3

Revitalift de L’oréal

[...]

Efeito de alta penetração dos nanossomas de Pró-Retinol A

Eficiência em anti-rugas : 80 % Os nanosomas de Pró-Retinol A agem no coração das rugas.

Menos rugas em 4 semanas.

Eu quero mais que um simples anti-rugas” Andie Mac Dowell

 

L’oréal

Porque eu mereço.”

 

Texto 4

Chronos de Natura

A mulher bonita de verdade não cabe em padrões de beleza ou ideais de perfeição.[...] Quando ela ri ou fica séria, é de verdade, mesmo que isso venha a causar rugas com o tempo. A mulher bonita de verdade tem orgulho da sua idade.[...] Inspirada nessa mulher, a Natura criou Crhonos um sistema de tratamento anti-sinais que, como ela, não tem a pretensão de parar o tempo. Mas tem o compromisso de evoluir sempre com ele.

 

A apresentação de certos itens lexicais leva o enunciatário a perceber domínios particulares da sociedade que são utilizados pela publicidade, veja que nos textos estão presentes os prazos de ação dos produtos, palavras ideologicamente significantes, na medida em que se sabe que o tempo, hoje, é moeda de troca e não se pode perdê-lo. Em semanas X, você ficará livre da velhice.

Palavras como: nanosomas de Pró-Retinol A em (3) Retinol e Multivitaminas em (2) atribuem aos produtos o status prestigiado de uma terapia com base científica. Um vocabulário típico de bula de remédio.

O uso de determinadas palavras pode ser considerado como um aspecto relevante de intertextualidade, segundo Fairclough (2001) “Nomear um domínio da experiência é equivalente a, no nível do vocabulário, constituir uma configuração particular de elementos intertextuais na produção de um texto.” Veja a diferença de vocabulário do texto (4).

Ele vem na contramão daquilo considerado típico pelo consumidor alvo, no lugar de fortalecer padrões, a mensagem pretende eleger o não-padrão como novo modelo, ao afirmar que: a mulher bonita de verdade não cabe nos padrões. O que nada mais é que a abertura de um leque de modelos a fim de abarcar as que se auto-intitulam livre das amarras do ideológico. Lembremos que a não-ideologia é a ideologia contrária, portanto ideologia. Admite-se a existência das rugas e o passar do tempo, com uma sinceridade cativante. A repetição da palavra verdade acaba por fazer crer que Chronos é o anti-rugas de verdade, aquele que funciona, pois não pára o tempo.

Quanto aos aspectos interdiscursivos, em (1), observa-se a absorção e o reforço de um fala corrente que nos diz “As mulheres discordam em tudo, não conseguem manter uma fala uniforme a respeito de um dado tema.”

O texto 2 acentua a crença de que a idade está na alma e não na cabeça. Apoiada no imaginário, pode-se construir uma nova idéia:  A idade não está no rosto de quem usa o anti-rugas da Neutrogena.

Em se tratando da intertextualidade manifesta, os textos 3 e 4 recorrem à representação discursiva, representam-se quatro falas no que é tradicionalmente chamado discurso direto. O apelo às diversas vozes(depoimentos) que corroboram com a idéia final levam a enunciatária a pressupor que, vindo de mulheres comuns, tal depoimento é verdadeiro e livrar-se das rugas é possível tanto quanto foi possível para as vozes do texto, é o jogo da dialética das identificações brincando com o imaginário feminino.

No texto 3, duas vozes se sobressaem, uma evidente em primeira pessoa, a atriz de cinema que explicita seu desejo:

A oração simples absoluta aliada à carga semântica do verboquerer” traduz a intenção primeira da marca: provocar o desejo pelo produto, a Andie quer e não quer somente mais um anti-rugas ela quer o Revitalift da L’oréal .Espera-se que a leitora também o queira.

A voz retorna para L’oréal e a frasePorque eu mereço” possui múltiplos enunciadores: a atriz, todas as consumidoras. Com esse argumento pode-se saciar o desejo de consumo, como se os produtos da Lóréal fossem prêmios.

Ferrés (1998) atenta para a questão da manipulação dos sentimentos pela publicidade e a promoção de uma cultura do desejo:

O desejo nunca poderá ser satisfeito por completo, porque é a expressão da limitação humana. A publicidade aproveita essa carência, joga com ela, propondo sempre um novo produto capaz de resolver a insatisfação experimentada após aquisição e consumo do produto anterior.

O texto publicitário é o agente distribuidor das formas produzidas em série pela indústria midiática, é o fabricante das imagens que circulam na sociedade e constrói pulsionalmente identidades.

Conclui-se atentando para a questão maior deste trabalho, a construção da subjetividade a partir da eleição de um padrão apoiado no discurso. Quem viveu as décadas de 70-80 e foi espectador da obra de Monteiro Lobato na tela da Rede Globo, certamente tem registrada na memória a figura da Cuca , um dragão, uma bruxa que na versão atual tem o corpo esguio e maravilhoso da Barbie. Se uma bruxa pode transformar-se em um padrão de beleza o que dizer da mulher comum ? De acordo com a publicidade ela pode compartilhar do desejo das estrelas de cinema, como atesta a campanha do Revitalift de L’oréal.

Atenta-se, ainda, para o fato de que não da manipulação do desejo, a fim de apagar e construir identidades, vive a publicidade, há uma grande afinidade entre as leis de um mercado monopolista e um desejo nunca saciado. E o poderoso mediador destas categorias é o discurso, o signo, a palavra que nomeia a falta, significando os bens de uma sociedade neo-liberal tentando supri-la. Como defende Sodré,

Se a finalidade imediata da produção é o consumo, sua mais profunda disposição ocorre no sentido de que nenhum consumo possa satisfazer realmente nenhum desejo, a fim de que não pare jamais a escalada geométrica da ordem produtiva.”(op. cit.).


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1997.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perpectiva, 1993.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2000.

FERRÉS, Joan. Televisão Subliminar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1988a.

––––––. O Seminário: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988b. livro 11.

QUINET, Antônio. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1998.

––––––. Televisão e Psicanálise. São Paulo: Ática, 2000.