As Teorias de Lessing e Hölderlin e sua Aplicabilidade na Tradução Intersemiótica da Poesia Concreta

Cristina Monteiro de Castro Pereira (UERJ)

 

Vídeo poesia: imagem, som, música, animação, montagem. Uma poesia representante do Zeitgeist do terceiro milênio, formada por um jogo de fragmentos sobrepostos que agem simultaneamente sobre o receptor, provocando sensações, instantes de percepção. A plurinomeada vídeo poesia (ou clipoema, poesia intersemiótica, ciberpoesia) é montada no computador. Linguagens e meios trabalham ao mesmo tempo, interagindo e "intersignificando" sincrônica e dinamicamente, como no cinema. O poema torna-se cinético.

Os poetas do grupo concretista, tradicionalmente inovadores, perceberam as possibilidades que as novas tecnologias abriam às suas experimentações poéticas. A montagem intersemiótica através do computador, o choque das múltiplas linguagens, a mise en scène do aspecto verbal, vocal e visual da palavra é o resultado multimidiático da poesia do grupo Noigandres[1].

A interação entre campos semióticos diversos na vídeo poesia pressupõe um trabalho de tradução entre os meios. Não se trata apenas de uma sonorização e movimentação lúdica e aleatória da poesia. A "idéia" de cada poema está contida em seus fragmentos, na imagem, no som, na animação.

A poesia verbivocovisual[2] dos concretistas, trafegando por diferentes tipos de medium, evoca a anánke levantada por Lessing, a necessidade de adaptação ao se traduzir uma intenção de efeito de um meio para o outro, quando se quer exprimir, em mais de um campo semiótico, a mesma idéia. Pensando no resgate dessa mesma "idéia" latente do original, Hölderlin inova em sua época: traduz a "forma" e não apenas o "conteúdo" do texto. Trabalha a estrutura, a materialidade da escrita de modo a "trazer para a superfície" a "alma" do texto traduzido. Valendo-me de dois poemas de Augusto de Campos, pretendo demonstrar a aplicabilidade das teorias de tradução de Lessing e de Hölderlin na montagem da vídeo poesia.

No século XVIII, G. E. Lessing, elaborou uma obra, Laocoonte ou sobre as Fronteiras da Pintura e da Poesia, onde rompeu com a antiga máxima do ut pictura poesis, apontando para as fronteiras entre pintura e poesia, a partir do levantamento das diferenças em relação aos meios que cada uma dispõe para realizar o efeito desejado no receptor. Contrariando a tradição que nasceu na Antigüidade e se reforçou a partir do paragone de Leonardo da Vinci, Lessing separa as duas "irmãs", designando a cada uma delas uma identidade própria.

Pensando em termos de diferença e não mais de semelhanças, Lessing se preocupa em definir o objeto em relação ao meio específico de cada arte e a seu modo de recepção. O meio da poesia, no entender de Lessing, é linear, progressivo no tempo, e seus instrumentos são signos arbitrários, o que a tornaria ideal para representar uma ação. A pintura, por sua vez, utilizando signos naturais, conseguiria um melhor efeito ao escolher um único momento no tempo e ocupando-se de sua representação no espaço. Ao perceber a relação pertinente entre a expressão final do objeto artístico e seu meio de veiculação, Lessing notou a necessidade, ou a anánke, de adaptar a arte a seus meios e instrumentos, considerando também a própria escolha do objeto, para alcançar o efeito desejado sobre o receptor.

Segundo Lessing, na poesia a narração seria melhor instrumento do que a descrição para que o efeito da ilusão se criasse e a fruição fosse completa. Isso porque, se a imaginação era a responsável pelo efeito da ilusão, logo a velocidade da leitura na narração daria a ela "asas" para soltar-se da materialidade do texto, induzindo o leitor a "esquecer-se" dos signos arbitrários que a compõe:

Antes, ele (o poeta) quer tornar tão vivazes as idéias que ele desperta em nós, de modo que, na velocidade, nós acreditemos sentir as impressões sensíveis dos seus objetos e deixemos de ter consciência, nesse momento de ilusão, do meio que ele utilizou para isso, ou seja, de suas palavras. (Lessing, 1998: 203)

No mesmo século XVIII, um outro pensador alemão retomou a questão formal da literatura. Contrariando a idéia de Lessing de que a ilusão na poesia, seria alcançada através de um "apagamento" dos significantes que daria entrada à imaginação, Hölderlin ativava a materialidade dos signos, criava "barreiras" intencionais à fruição linear. Querendo ir além do texto positivo na tradução, tornar acessíveis suas diversas camadas, trabalhava seu aspecto formal de modo não a "apagar" os significantes, mas a "marcá-los", a eles e a própria estrutura da obra, a fim de criar pequenas explosões de significados subliminares durante a leitura.

As traduções de Hölderlin de tragédias gregas destoaram em sua época, levantando críticas ferinas por parte de seus contemporâneos. Em vez de ater-se, como era o costume, à tradução literal do "conteúdo" do texto, Hölderlin concentrava-se na "forma". Através de processos filológicos e morfossintáticos, aproximava o alemão das possibilidades de expressão da língua grega, em prol de uma recuperação do imaginário grego pré-hespérico.

Com um trabalho de estruturação e "atomização" da linguagem, Hölderlin potencializa seu texto. Introduz a idéia de intuição intelectual, uma espécie de insight a que ele conduz o leitor com seus "truques", sua linguagem "marcada". Sua intenção era incitar a percepção do leitor, que poderia, a partir de certos estímulos formais, entender ou intuir de uma vez uma rede de conexões infinitas de elementos que a lentidão de um raciocínio linear e discursivo captariam através de um longo caminho de associações.

Através de uma montagem "ideogrâmica", Hölderlin consegue recuperar não apenas a "mensagem" do texto, mas o sistema de signos do original, sua "informação estética". A materialidade do signo é revalorizada por Hölderlin, apontando para o ideograma chinês e para a poesia concreta.

A poesia moderna não pode ser compreendida da mesma forma que a poesia épica tratada por Lessing no século XVIII. no Romantismo a linearidade não é mais uma característica essencial da poesia e a representação mimética perdeu seu poder normativo. A música, por sua expressividade harmônica com o ideal romântico, afirmou-se desde então como instrumento para poesia. A poesia passou a valer-se cada vez mais de seus componentes fônicos e rítmicos, alargando suas possibilidades de expressão musical. Intensificado e ampliado esse processo, a partir das vanguardas do fim do século XIX e do século XX, o hibridismo na poesia chega a um nível inimaginável na época de Lessing.

O caráter verbivocovisual da poesia concreta, sua materialidade e síntese, rompe definitivamente com a idéia, defendida por Lessing, de poesia como representante da "ação". Essa poesia não se baseia mais na narratividade. A característica pela qual a arte poética, segundo o filósofo, alcançava seus objetivos e conseguia produzir o efeito desejado no leitor, não é um instrumento para a poesia concreta.

A Poesia concreta não é linear; ao contrário visa a romper com a sintaxe. É uma poesia de sobreposição de meios, de significados e de efeitos. Pretende dizer o máximo possível no menor espaço e tempo, explorar à exaustão o significado do significante.

O "espaço" passa a ser um conceito operacional na poesia. O aspecto visual do significante, da folha de papel e dos caracteres tipográficos contribuem para a formação do significado, inovando e estendendo o alcance do que era entendido por "imagem" na poesia. A imagem agora é tão concreta quanto abstrata. A escrita retoma, de certa forma e em parte, seu caráter pictórico inicial, que sua apresentação visual passa a ser intencional e a ter força semântica. A palavra pode funcionar tanto como signo arbitrário como natural, expressa-se através da imagem e do texto. É importante notar o sentido de deslocamento existente na poesia concreta. Não é uma volta ao ut pictura poesis, não é o fim das fronteiras, mas uma nova relação entre texto e imagem. Um "estranhamento" estrutural e uma intenção de colaboração que ganham força a partir das delimitações das fronteiras feitas por Lessing. Ao perceber a importância da adaptação da "idéia" a ser traduzida em relação aos meios de veiculação para um amplo aproveitamento do efeito desejado, Lessing possibilitou o surgimento posterior de uma mobilidade extremamente funcional entre as artes.

Tomo como exemplo um poema de Augusto de Campos, "Poema Bomba"[3], onde /b/, /o/, /m/, /b/ e /a/ estão disposto de maneira tal na folha de papel que, juntamente com /p/, /o/, /e/, /m/ e /a/ , formam o desenho de uma explosão, com as letras se expandindo a partir de um centro. A idéia de "bomba" está sendo passada ao mesmo tempo por signos arbitrários e naturais. O significado da palavra "bomba" é expandido e intensificado por seus significantes, que explodem do centro para fora do papel. Produz-se uma "impressão" de bomba explodindo em estilhaços.

A poesia concreta, assim como toda uma vertente da literatura do final do século XIX e do século XX, não visa ao "apagamento do meio" apregoado por Lessing. Ao contrário, ela lida com a materialidade da escrita, reforçando para o receptor os aspectos sonoros e visuais dos significantes no poema. Ao intensificar as potencialidades de significação do poema, ativando suas possibilidades de expressão verbal, vocal e visual, os poetas estão fazendo uma montagem. Valendo-se de códigos diferentes que agem simultaneamente, a poesia concreta constrói seu ideograma.

Haroldo de Campos, teórico e poeta concretista, faz uma oposição entre uma organização "analítico-discursiva" do poema e outra "sintético-ideogrâmica". Este último termo, criado por Apollinaire, seria a base da poesia concreta. Através do jogo proposto entre elementos estruturais e morfológicos do texto e de um rompimento com a sintaxe tradicional, a poesia concreta expressa-se em poemas "condensados", sintéticos, que funcionam como um ideograma, cujos fragmentos agem em conjunto para intensificar o efeito total do poema.

Uma verdadeira atomização da linguagem, onde cada unidade verbivoco visual (sic) é ao mesmo tempo continente-conteúdo da obra interia  (Apud Araújo, 1999: 40, nota 5)

Hölderlin utilizava esse processo "sintético-ideogrâmico" para potencializar o texto através de sua forma e aumentar seu alcance. Aproxima sua poética da visão concretista que também busca, através de uma expressão sintética, provocar no fruidor percepções inteligentes, insights de (re)conhecimentos. Hölderlin, como os concretistas, criava núcleos de significados, que funcionam como fragmentos a serem "montados" pela percepção do receptor, agindo sobre este não de uma forma linear, argumentativa, mas de modo sincrônico e imediato.

A poesia concreta aventurou-se em sua trajetória por diversos tipos de medium. Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari vêm fazendo experimentações, desde a criação do grupo Noigandres, a partir das possibilidades que as novas formas de tecnologia proporcionam à expressão de sua poesia.

O Pulsar (1975)

 

Onde quer que você esteja

Em Marte ou Eldorado

Abra a janela e veja

O pulsar quase mudo

Abraço de anos luz

Que nenhum sol aquece

E o eco(oco) escuro esquece.

A passagem desse poema para outros campos semióticos deu-se de forma absolutamente pertinente com suas possibilidades de expressão. Lembrando Lessing mais uma vez, nota-se uma perfeita transformação do poema em música, artes plásticas e videoclipe.

"O Pulsar" foi trabalhado de modo a transmitir a mesma "idéia", contida no poema e expressa através de signos arbitrários, para uma imagem. As palavras estão dispostas num fundo preto de forma a lembrarem um céu estrelado. Duas vogais, /o/ e /e/ agem como indicadores. O /e/ figura como uma estrela e o /o/ é apresentado como uma circunferência. A circunferência remete para si, ao passo que a estrela pulveriza-se através de suas pontas, "ecoando" para fora. Destaca-se desta maneira, o próprio poema dentro da relação entre as duas vogais, num eterno jogo que remete ao "pulsar", ao movimento do poema. Essa impressão de movimento centrípeto e centrífugo, que se aproxima e se afasta, aponta para si e para o outro perpassa o poema como o próprio movimento de pulsação. O poema visual pulsa entre o "eco" e o "oco". O diálogo representado pelas vogais atua como um dos núcleos de significação concentrados do poema, como um "ideograma-fragmento". A estrela começa grande no poema e termina pequena; em contraponto, a circunferência percorre o caminho contrário. O choque entre o "eco" e "oco" aponta para o "pulsar" do próprio poema. No final, o eco/oco fundem-se em uma palavra. Com a sobreposição da estrela na circunferência, o oxímoro dissolve-se em potência, apontando para um pharmakon cósmico: o pulsar.

O paradoxo é, para Hölderlin, uma forma de, através das possíveis nuanças de tom contidas nas relações entre seus sentidos opostos, revelar de forma subliminar uma verdade que ultrapassa o discurso positivo do texto. O paradoxo de Hölderlin funcionaria como o choque de contrastes da poesia concreta. Nos dois casos, o jogo, o deslocamento de elementos "estranhos", a suspensão de um raciocínio automatizado rompem a toda hora com a leitura fácil e impõem

uma espécie de "Verfremdung", uma barreira deliberada ao entendimento, que nos impede de pensar nas trilhas de noções ou conceitos habituais, a fim de dirigir nossa inteligência sensível em direção a um modo de "pensar" concreto ou "selvagem" que se situa abaixo do nível das explicações discursivas. (Rosenfield, 2000: 180)

A passagem do poema verbal para uma linguagem visual acarreta um ato de criação. Como nas traduções de Hölderlin, o artista precisa pensar na forma, modificá-la, reconstruí-la de maneira a melhor expressar a "idéia" do texto original. Essa "idéia", funciona como um "ícone", que contém latente as "qualidades materiais"[4] do signo.

A poesia passa por uma tradução intersemiótica que precisa considerar as possibilidades de expressão do poema em outros campos e meios de veiculação. Esse processo foge à tradução literal, à idéia de "fidelidade", e precisa ser baseada na re-criação do objeto artístico a partir do resgate de suas possibilidades latentes sob a forma de "ícone".

Assim, a tradução como signo enraizado no icônico tem no princípio de similaridade a única responsabilidade de conexão com seu original. A cadeia signo-de-signo, mesmo a nível icônico, comporta tempo, mudança e transformação, onde a identidade está excluída de antemão, comportando incompletude e diferença, intervalos que são preenchidos pelo signo tradutor, pois o signo sugere, elide, aponta, delimita, indica, mas sempre dentro do sistema de relações analógicas de sua semiose. (Plaza, 2001:.32)

Os poetas concretos utilizam o termo transcriação[5] para melhor identificar esse processo de tradução (que pode ser tanto de uma língua para outra como entre campos semióticos diferentes) em que a forma é recriada em prol do resgate da potencialidade da obra original.

Na tradução Intersemiótica como transcriação de formas o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir estruturas que visam à transformação de formas. (PLAZA, 2001: 71)

A mídia eletrônica permitiu carregar a poesia com - além de uma infinita possibilidade de aspectos visuais como cores, tipos de letras diversos, fundo de tela trabalhado - som, música e movimento. Novamente o grupo Noigandres vai além das fronteiras tão bem definidas por Lessing e entra agora no campo da tecnologia. Através dos novos meios tecnológicos, o próprio significante ganha som e movimento. A ação se dá em frames animadas como no cinema, como num videoclipe - é a mise en scène da palavra.

A versão em vídeo[6] não é uma mera animação e sonorização do poema. A "idéia" do poema é resgatada e expressa-se também na movimentação das palavras na tela e na música/leitura do poema. Na versão em vídeo, alia-se a música ao poema visual e introduz-se o movimento. As palavras aparecem e somem na tela como pulsações, enquanto vão sendo cantadas por Caetano Veloso. Por último forma-se o quadro inteiro, com todas as palavras em cena, de acordo com a versão pictórica do poema. A imagem é congelada, a não ser por uma pequena estrela (a letra "e") que pisca/pulsa ainda uma última vez. Também a "forma" da animação do poema é trabalhada de modo a traduzir a "idéia" latente do poema, a transcriá-lo em movimento.

A música de Caetano Veloso age como mais uma "repetição em diferença". É possível notar uma transcriação intersemiótica do poema para a música. Ao utilizar a música modal, em que as combinações entre as notas e seus resultados sonoros são particularmente relevantes, Caetano reforça em som o "pulsar" verbal e visual do poema. Extremamente ligada à poesia por realçá-la, a música modal "pulsa" de sílaba em sílaba, ativando a latência musical intrínseca do poema. O jogo entre as vogais /o/ e /e/ encontra seu eco na música: o diálogo concretiza-se entre o (grave) que incide sobre a vogal /o/, e o (agudo), que recai sobre a vogal /e/. Mais uma vez pode-se notar a pertinência dessas escolhas. O som agudo é condizente com o aspecto visual da estrela, que "ecoa", "aponta" para fora, enquanto o som grave lembra introspecção, remete ao centro da circunferência. Reinterando o próprio poema, a música "pulsante" de Caetano Veloso aponta ao mesmo tempo para o texto, para a imagem e para o movimento.

A interação entre arte e tecnologia foi, segundo entrevista dos próprios poetas que participaram do projeto de Vídeo Poesia desenvolvido no LSI, Laboratório de Sistemas Integráveis (Escola Politécnica da USP) em 1992 , uma experiência de adaptação entre suas intenções e as possibilidades reais do novo medium. Algumas das idéias dos poetas tiveram que ser modificadas em favor de um melhor efeito, considerando o alcance dos meios tecnológicos. Retomando Lessing, nota-se nesse processo de tradução intersemiótica da poesia concreta em vídeo poesia a presença marcante da necessidade, ou anánke, de adaptação da obra em relação aos meios de cada arte (e/ou tecnologia) para se obter o melhor efeito. Considerar a diferença de possibilidades de expressão dos diversos meios é o pressuposto para uma maior eficiência ao trabalhar suas estruturas. Mesmo subvertida em diversos pontos, em razão das mudanças radicais pelas quais seu objeto de estudo passou a partir da modernidade, a teoria de Lessing se mostra extremamente atual e eficaz.

Volto agora com o mesmo "Poema Bomba", de Augusto de Campos, que foi analisado acima. Este foi um dos poemas da experiência desenvolvida no LSI, Laboratório de Sistemas Integráveis (Escola Politécnica da USP), em 1992. Na versão em videoclipe[7], o poema ganha uma cor de fundo vermelha, que explode em instantes amarelos. O poema parte de um ponto central da tela e também explode em direção ao espectador. A animação por computador permite o aumento progressivo das letras num movimento de expansão que provoca o efeito de uma bomba sendo detonada. Ao mesmo tempo, trabalhando em conjunto com a parte visual e cinética, o poeta as palavras "poema" e "bomba", enfatizando o efeito sonoro dos significantes. O engenheiro e o poeta (lembrando João Cabral) concretizam, num ambiente virtual, o que havia de latente no poema.

A articulação dos procedimentos de alta definição cinética dos supercomputadores gráficos com os recursos sonoros de um estúdio também computadorizado (...) permite que se chegue de modo mais cabal à materialização das estruturas verbivocovisuais prenunciada pela Poesia Concreta (Apud Araújo, 1999: 28)

O texto e a imagem - agora acrescidos de cor, som e animação - são fragmentos, explorados individualmente e montados, combinados de maneira a provocar um determinado efeito na recepção: a intuição intelectual de Hölderlin. Texto, imagem, som e movimento funcionam ao mesmo tempo como totalidade e fragmento da obra, contribuindo para a formação de um efeito concentrado, sensível e potencialmente ativo.

Uma poesia de colagem de signos sobrepostos não produz a ilusão tal qual Lessing a entendia, produz o efeito da ilusão: a "sensação" do objeto. A superposição de signos, de fragmentos de significação gera um reconhecimento instantâneo e profundo, como um insight: uma percepção da idéia latente do objeto como aquela perseguida por Hölderlin. A imaginação trabalha de outra maneira nessa nova proposta de poesia: juntamente com a memória, promove uma "montagem intelectual", uma síntese posterior ao/do que foi visto/ouvido/percebido.

Cada fração sincrônica - que pode ser isolada do contexto narrativo diacrônico, particularmente da mídia mais agressiva e contemporânea, como a publicidade e os videoclipes - contém em si um numero de códigos muito superior a qualquer meio de comunicação até aqui conhecido. E o espectador se acostuma, aliás, desenvolve suas capacidades perceptivas e decodificadoras, o que o colocam numa situação altamente ambivalente em relação à mensagem (CANEVACCI, 2001: 92)

A multiplicidade e simultaneidade de estímulos provocada por essa poesia multimídia induzem o leitor/espectador a uma "leitura sinestésica", onde sensações de natureza diversa, provocadas por meios distintos trabalhando em conjunto, sugerem entre si um sentido global. A sinestesia, do grego sun (com) e aisthésis (sensação), atua na relação das conexões múltiplas que a vídeo poesia propõe e incide sobre o leitor/espectador provocando uma percepção ou sensação do objeto.

A recepção é imediata, age simultaneamente em todos os canais do fruidor com a rapidez de um raio. O movimento inserido na poesia não permite (num primeiro momento) nem o pensamento analítico-discursivo, nem uma fruição lenta. A recepção é imediata, sensorial. A reflexão encontra espaço após a fruição. A intensificação exacerbada da obra através de aspectos visuais, sonoros e do movimento transmite uma mensagem condensada, hiper-significacional que provoca no receptor uma compreenção instantânea, como aquela perseguida por Hölderlin, numa dimensão alargada pelas possibilidades tecnológicas.

Fica claro, nas transcriações da poesia concreta aqui apresentadas, a aplicabilidade das teorias de Lessing e Hölderlin. A recuperação da "idéia", das potencialidades latentes do texto, é alcançada na vídeo poesia devido a uma "tradução criativa" baseada na "re-criação" formal da obra em outros meios. Na vídeo poesia, o poema atua sobre o receptor de modo sincrônico, sob a forma de música, imagem, som e movimento. Diferentes tipos de meios são sobrepostos como uma montagem, um ideograma multimidiático.

Ora, apesar de deslocadas as noções de tempo e espaço de Lessing e estendido para o campo intersemiótico o processo formal e estrutural de Hölderlin, são dessas concepções de tradução que se utilizam os poetas e técnicos ao transcriar em videoclipe a poesia concreta. É pensando na forma desejada de expressão, nos meios e instrumentos utilizados e no alcance de suas possibilidades para se intensificar o efeito geral da obra, que a poesia é colocada em cena.

As formas de expressão são plurais na pós-modernidade. A interação entre as artes é uma tendência atual. A vídeo poesia atravessa o campo da literatura, das artes plásticas, do cinema, da tecnologia. O grupo Noigandres transcria sua poesia, numa constante exploração de suas potencialidades. Mas não é uma volta a ut pictura poesis. Os papéis estão mais claros do que nunca, assim como sua relatividade. Consciente da anánke levantada por Lessing, a poesia concreta transita por outros campos semióticos com a segurança de quem conhece suas fronteiras.

 

Bibliografia

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www.imediata.com/BVP/

www.pucsp.br/~cos-puc/galeria/pulsar/

www.uol.com.br/augustodecampos/


 

[1]Grupo concretista formado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

[2] neologismo inventado por James Joyce e resgatado pelos concretistas para designar uma poesia que valoriza o aspecto verbal, vocal e visual do significante.

[3] "Poema Bomba" é um poema de Augusto de Campos publicado na contracapa do caderno literário Folhetim, n.565, editado pelo jornal Folha de São Paulo em 11 de dezembro de 1986

[4] Refiro-me aqui a noção de "qualissigno" formulada por Peirce. O signo possui características formais próprias, alheias ao objeto que está representando. Essas características são vistas por Peirce como as qualidades materiais do signo.

[5] Transcriação é um termo usado pelos concretistas para designar uma tradução que se afasta da literalidade e busca a passagem da "idéia" e do efeito do texto original numa outra língua ou linguagem. É uma recriação do objeto estético.

[6] A versão em videoclipe do poema "O Pulsar" pode ser encontrada em http://www.imediata.com/BVP/Augusto_de_Campos/index.html

[7] O "Poema Bomba" em sua versão em vídeo pode ser encontrado em http://www.imediata.com/BVP/Augusto_de_Campos/index.html ou em http://www.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm