A LEITURA NUM CONTEXTO INFORMAL DE ENSINO APRENDIZAGEM

Cíntia de Castro Leite - UNIVAP
Teresinha deFátima Nogueira -
UNIVAP

 

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa foi realizada durante o meu trabalho de monitoria na sala de leitura e produção de texto do projeto Vale Criar, que é um projeto de iniciativa do Instituto General Motors, em parceria com a Univap (Universidade do Vale do Paraíba), Lions Club São José dos Campos Centro e com o apoio da Empresa de Ônibus Breda Turismo, que atende a 250 crianças e adolescentes de 09 a 14 anos do bairro Galo Branco da periferia de São José dos Campos. Este projeto tem caráter social e visa o desenvolvimento da auto estima e do aluno cidadão, valorizando sempre a sua cultura.

Todas as crianças e adolescentes atendidas pelo projeto Vale Criar são alunos da rede pública municipal e estadual de ensino e no horário contrário que freqüentam a escola participam do projeto, que conta com as seguintes oficinas monitoradas pelos alunos graduandos da Univap: foto e vídeo, informática, artes, brinquetodeca, recreação, teatro, jogos e esportes, música, educação emocional, ciências e sala de leitura e produção de textos. Os alunos são divididos por período ficando 125 para cada período (manhã e tarde) e depois divididos em turmas de no máximo 15. Cada turma passa por todas as oficinas uma vez por semana, isso facilita muito o desenvolvimento das atividades dentro das oficinas, pois o monitor/professor acaba dando mais atenção àqueles alunos com maiores dificuldades o que torna o aprendizado mais efetivo.

O projeto Vale Criar foi desenvolvido para atender os alunos do Galo Branco por dois anos, durante esse período alguns alunos saíram, por motivos variados, e eram colocados educandos para que o projeto atendesse às 250 crianças e adolescentes. Esses novatos, dependendo do número, acabavam constituindo uma turma nova ou entrando numa turma já formada, o que requeria uma atenção mais efetiva dos monitores para que houvesse uma inclusão receptiva e não conflitiva desses novos participantes numa turma antiga.

No início do projeto Vale Criar (dezembro de 2000) as salas de leitura e produção textos eram separadas, mas como os trabalhos eram realizados integradamente entre essas oficinas, com o desenvolvimento das atividades percebemos que para um melhor andamento das oficinas e para que os objetivos fossem atingidos mais eficientemente, já que os trabalhos estavam sendo realizados juntos pelas monitoras, as oficinas se uniram a partir do segundo semestre do ano de 2001. Com esta união ficaram duas monitoras numa mesma oficina, ao contrário do que acontece nas outras oficinas. A realização das atividades de escrita e a abordagem em leitura foram desenvolvidas mais integradas e com mais eficiência.

 

A PRÁTICA DE LEITURA NO PROJETO VALE CRIAR

 

Na oficina de leitura há cerca de 2000 livros paradidáticos, 300 didáticos (que são usados pelos alunos em caráter de pesquisa escolar), 07 dicionários, duas caixas de correio que servem para a comunicação escrita entre os alunos da manhã e tarde, assinaturas das revistas Capricho, Superinteressante e gibis variados, que ficam ao lado de um grande tapete com muitas almofadas, para que os alunos fiquem mais à vontade para fazer as suas leituras. Há também as assinaturas de três jornais, ValeParaibano (regional), Folha de S. Paulo, e o jornal de esportes Lance.

A primeira atividade que os alunos realizam na sala de leitura do projeto Vale Criar é a leitura dos jornais ValeParaibano, Folha de S. Paulo e Lance. Houve a principio uma certa resistência na leitura dos jornais, pois este tipo de material escrito não fazia parte do cotidiano desses alunos, e na sala de leitura esse material é usado com muita freqüência e também nas atividades de leitura e produção escrita das outras oficinas do projeto Vale Criar. Num segundo momento, os alunos são livres por 20 minutos para escolherem livros para levarem para casa, lerem gibis, revistas, livros ou jornais. A escolha de livros para leitura é livre, só há a intervenção do monitor quando o aluno solicita, e isso normalmente ocorre quando os alunos começam a freqüentar a oficina. Para auxiliá-los nas escolhas dos livros os alunos preferem pedir a ajuda a um amigo mais experiente ou recorrer a um painel, onde estão escritos pelos próprios alunos os livros que leram e mais gostaram.

Os alunos não são obrigados a levarem livros para casa, e quando isso ocorre o monitor intervém, tentando levá-los a conhecer alguns títulos, tendo como parâmetro o perfil, a idade e o sexo destes alunos, e oferecendo vários títulos para que eles possam escolher sozinhos. Essa intervenção tem funcionado de maneira bem efetiva, o importante é estar atento aos alunos e não deixar de estimulá-los para a leitura.

Os últimos 20 minutos da oficina são dedicados às outras atividades de leitura, tais como o trabalho com contos, fábulas, histórias em quadrinhos, jornal, propaganda, “me conte uma história”, leitor do mês, li e gostei, poesias, pesquisas escolares, entre outras.

As atividades realizadas na sala de leitura do projeto Vale Criar estimulam mais do que o hábito da leitura, estimulam também a criatividade dos alunos durante o processo de leitura, como afirma Silva (1988:47).

“(...) é com o ato criativo, ligando duas ou mais dimensões da experiência, torna possível ao homem atingir uma evolução mental mais complexa, e que esse ato criativo é um ato de libertação, ou seja, de superação do hábito pela originalidade(...)exercer a criatividade não significa produzir novas idéias a “partir do nada”, mas recuperar os elementos da cultura, reativá-los e recombina-los através da imaginação e a partir daí corporificar um objeto inédito, original, não-convencional.”.

Esse ato criativo na produção da leitura dos alunos foi visível no decorrer de uma atividade de poesias. Primeiramente a monitora recitava as poesias para os alunos utilizando não somente a linguagem oral, mas também a corporal e sonora. Numa segunda etapa, esse procedimento foi realizado pelos alunos de maneira envolvente e interativa. Todos na oficina dançavam, representavam, cantavam e recitavam as poesias, num processo de interação com o texto. O resultado dessa dinâmica foi um número muito elevado de empréstimos de livros de poesias, que anteriormente não se constituía em material de leitura escolhido pelo aluno.

Incentivados pela monitora esse processo de leitura de poesias culminou na produção de poemas por parte dos alunos, para que participassem de um concurso promovido pela Univap, e também para a criação de uma coletânea dos poemas elaborados pelos alunos do projeto Vale Criar.

Para que essa produção fosse possível a monitora orientava os alunos para produzirem poesias de temas que fizessem parte de seu cotidiano, pois assim seria mais envolvente para os alunos escreverem. Entre os temas escolhidos pelos alunos estão os do ato de brincar, natureza, família, amigos e por último o de amor.

Até hoje uma grande maioria dos alunos escreve e lê muitas poesias, dentro e fora do projeto Vale Criar, e sentem um orgulho muito grande de suas produções, tanto que durante o sarau poético para as apresentações de suas produções quase todos os alunos foram ler a sua poesia em voz alta num palco e sem o mínimo de constrangimento, muito comum na idade deles.

Neste caso específico além de atender os objetivos da oficina de leitura e produção textos, atendeu-se também um dos objetivos primordiais do projeto Vale Criar: o desenvolvimento e a valorização da auto-estima

Os alunos do projeto Vale Criar são carentes, tanto financeiramente quanto de material escrito, por isso não possuem um repertório experencial para atribuir significados à leitura de textos. A sala de leitura deste projeto é um espaço onde os alunos podem vivenciar uma prática textual intensa e múltipla e a partir daí tornar-se um leitor mais envolvido e proficiente, não somente pelo hábito da leitura, mas sim por uma leitura como prática social, relevante para a sua constituição como sujeito.

Não são só os materiais escritos os utilizados nas atividades, privilegia-se também as linguagens visual, sonora e corporal, e recorrendo aos materiais de leitura utilizados pelos alunos fora da sala de aula, que é um dos atributos necessários para o desenvolvimento da leitura apontado por Silva (1988:49).

Se diz que a escola está fora da realidade à medida em que privilegia a linguagem escrita em detrimento de outras linguagens, como a visual, sonora, corporal, etc. Na sociedade, fora da escola, o aluno vê e lê uma coisa e na escola uma outra. E este fato recorrente aparece como sendo uma causa do distanciamento entre a escola e a vida social(...)”.

A leitura vista com esta concepção, além do trabalho com os tipos de linguagens, trabalha-se com o uso não artificial da língua, dando aos alunos o por quê da leitura, o que o faz perceber a relevância do que se lê, pondo fim ao imaginário do aluno de que todo texto será utilizado na aula de gramática, ou só para responder algumas perguntas sobre compreensão e interpretação de texto, como comumente ocorre nas escolas. Na sala de leitura do projeto Vale Criar isso não acontece, as escolhas dos textos não são para ensinar gramática, as escolhas dos livros não são para fazer uma avaliação ou responder uma ficha de leitura, mas sim para desenvolver o hábito da leitura significativa ou interagir de forma mais prazerosa com os textos narrativos. E está aí uma das diferenças entre a leitura no projeto Vale Criar e a leitura na escola , “na escola não se lêem textos fazem exercícios de interpretação e análise de textos. E isto nada mais é do que simular leitura” como relata Geraldi (1984:78).

Não podemos negar a importância disso tudo para a formação discursiva de um sujeito-leitor, a liberdade da sala de leitura do Vale Criar oferece aos alunos o prazer em descobrir os sentidos possíveis por eles produzidos, sem ser questionado se está certo ou errado como afirma Orlandi ( 1988:50).

O sujeito leitor se apresenta como esse sujeito da livre determinação dos sentidos ao mesmo tempo que é submetido às regras das instituições(...)”.

A monitora orienta o aluno a buscar informação no texto para poder explicar a todos os sujeitos participantes deste processo, o por quê de uma interpretação diferente, respeitando a sua opinião e mostrando a todos que a leitura dá essa possibilidade de haver interpretações diversificadas, pois um texto não é uma unidade fechada onde só vale a significação que o autor quis dar, mas sim algo aberto para que o leitor interaja com o texto. Levar o aluno a compreender um texto vai além da sua interpretação dada a ele, é necessário ao aluno ir ao contexto da situação (imediato e histórico) da produção deste texto, e ao fazê-lo, poder apreciar o lugar em que o leitor se constitui como tal e cumpre sua função social, como diz Orlandi (1988).

Para que o aluno torne-se sujeito ativo na produção de sentidos nos materiais a que são expostos é necessário que o processo inicial de contato destes sujeitos-leitores seja feito a partir de textos (quaisquer que sejam) próximo à realidade vivenciada por estes alunos. È fundamental que o leitor mais proficiente (neste caso, a monitora) faça uma verificação mais sistemática através de um instrumento de pesquisa (questionário, entrevista) das preferências dos alunos em relação a temas e gêneros. A partir destes dados orientá-los na escolha do material e desenvolver atividades de leitura que sejam mais prazerosas e que os levem a refletir e compartilhar os significados produzidos. È na interação com o texto e com o outro que se constrói, des-constrói e re-constrói o sujeito enquanto leitor, ou seja, enquanto produtor de sentidos.

Outro aspecto relevante no processo de leitura é a história de vida e de leitura dos sujeitos envolvidos no ato de ler. Estes alunos trazem para a oficina uma história de vida pautada na dificuldade das relações pessoais na e pela linguagem, e uma história de leitura empobrecida pela falta de acesso e estímulo a materiais de leitura.

A monitora dará sua contribuição para modificar as condições de produção de leitura propiciando aos alunos que construam suas histórias de leitura, e quando necessário resgatando as relações intertextuais e a história dos sentidos do texto como relata Orlandi (1988). Para que haja este resgate a monitora deve sair do seu papel de autoridade para dar o direito ao aluno de ler de forma diferente o mesmo texto, e para que possa desenvolver o senso-crítico, sem o temor de que estará submetido a uma leitura única, que é a da autoridade do professor. Trabalhando assim a monitora provoca o aluno a desenvolver suas próprias histórias de leitura, pois um maior contato prévio deles com textos variados, definirá melhores condições de produções e reflexões sobre a leitura.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

Os fatores que tornam a sala de leitura do projeto Vale Criar um lugar onde contribui para a formação de um leitor criativo e crítico são primeiramente a concepção de leitura da monitora, que respeita o aluno e o seu ritmo na aprendizagem e na produção de leitura, para que a relação entre leitor e texto ocorra de forma pessoal e num momento próprio, sem excluí-lo das atividades coletivas e discussões; a relevância do fator sócio-histórico-cultural do aluno para a elaboração das atividades; a liberdade de escolha desses alunos, respeitando suas preferências sem impor nenhuma leitura, e o direito de deixar de ler o que não lhe agradar, porque ler ou não ler, ler e gostar, ler e não gostar, são reações válidas para a formação do sujeito-leitor, sem deixar de questioná-lo o por quê do abandono, o que auxiliará na sua formação discursiva e crítica.

Outro fator é o ambiente propício para a leitura, com horários para que todos os oficinandos passem pelo menos uma vez por semana na sala de leitura. O acervo com diversidade e qualidade de materiais de leitura priorizando os de interesse dos alunos de acordo com a faixa etária. E um esforço de todos os monitores e coordenadores do projeto Vale Criar para a recuperação do valor da leitura, pois é por meio dela que esses alunos terão melhores condições de vida, tornando-se cidadãos críticos para poderem atuar e modificar a nossa sociedade.

Levar em conta todo esse processo de produção da leitura e do sujeito-leitor, possibilitando não somente a reflexão, mas também a recriação e expressão dos leitores segundo Silva (1988) é o que faz do projeto Vale Criar um lugar onde o aluno se sente livre para se desenvolver como leitor e sujeito da sua leitura, não um mero decodificador de textos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

GERALDI, João Wanderlei (1984). O Texto na Sala de Aula. Cascavel, Editor Assoeste, 6ªedição.

GERRA, Maria de Lourdes A. SOUZA, Valéria S. (1999). Leitura na Escola: O Que Há a Dizer Antes de Fazê-la acontecer , Monografia de Graduação do curso de letras, São José dos Campos Univap

KLEIMN, Angela.(1989) Leitura Ensino e Pesquisa, Campinas SP. Editora Pontes 1ª ediçao.

ORLANDI, Eni Pulcinelli (1988). Leitura e Discurso. Campinas.SP, Editora da Universidade de Campinas, 1ª edição.

SILVA, Ezequiel Theodoro da(1988). Leitura e Realidade Brasileira . Porto Alegre Editora Mercado Aberto, 4ªedição