ESTRATÉGIAS DE LEITURA, COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS NA ESCOLA

Beatriz dos Santos Feres (UFF)

Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. (Freire: 1997, 11)

I - Considerações iniciais

Há mais de quinze anos atuando principalmente no Ensino Fundamental como professora de Língua Portuguesa, sempre me incomodaram as queixas dos pais, dos próprios professores e dos alunos em relação à má formação lingüística dos estudantes ao final do Ensino Médio. Observando a prática pedagógica em escolas da rede pública e particular, tradicionais ou de orientação construtivista, comecei a perceber a inconsistência da maioria das atividades elaboradas nas aulas - observação essa que me levou a muitos questionamentos: o que o assusta nas aulas de LP? O que afasta o aluno da leitura e da escrita? Por que, passando tantos anos na escola, tantos anos estudando LP, não adquire habilidade lingüística suficiente para ser um - pelo menos - razoável leitor e produtor de textos? Por que não encontra sentido no que faz (e pergunta: para que preciso saber análise sintática?)? Por que a informação fácil graças à “evolução tecnológica” nada auxilia? Quais têm sido os verdadeiros objetivos da escola - e do professor? Como são elaboradas as atividades dessas aulas? O que pode ser melhorado? O que é mais difícil: ensinar gramática, fazer o aluno ler ou fazê-lo escrever?

Se, para o aluno, as aulas de LP carecem de sentido, para mim, enquanto professora e educadora, passou a ser fundamental buscar meios de tornar claro esse sentido para o aluno. Quase não é necessário dizer que todo o questionamento já trazido na bagagem ganhou corpo e foi enormemente aprofundado a partir de sérias reflexões sobre o ensino da Língua e da leitura de autores como João Wanderley Geraldi, Eglê Franchi, Fiorin, Ângela Kleiman, entre outros que, professores como eu, também vêm problematizando o papel da escola e do professor na formação de proficientes usuários da língua. Que, educadores como eu, vêm mostrando a urgência da mudança de postura do professor na sua prática pedagógica, para que seja interativa, reflexiva, transformadora, consistente.

 

II - Reflexão e análise

 

É notório que continua havendo, como afirma a Prof ª Maria Helena Neves (2001), a compartimentação do ensino de LP, que trabalha com três momentos estanques - Gramática, Redação e Leitura-compreensão-interpretação de textos - em prol de uma fórmula “que dá certo” e que oferece um bom “preparo” para o vestibular. Aliás, prática essa predominantemente metalingüística, reprodutora de regras gramaticais, que ensina ao aluno, de acordo com Geraldi (1997), “o enjôo pelo estudo, o desamor pelas letras, a repugnância ao trabalho mental”.

Entre os lingüistas que voltam sua pesquisa para o ensino de Língua, é unânime a premente necessidade de adotar-se uma nova perspectiva, a perspectiva textual, que poderia levar o aluno a aprender os “vários modos de dizer”. Em outras palavras, poderia levar o aluno a aprender não só a língua, mas também a linguagem em suas diferentes esferas, que Coseriu (1980) denominou saberes (elocucional, idiomático e expressivo), através da interação e da reflexão. Destarte, a escola cumpriria a proposta do Prof. Fiorin (1996:9), segundo a qual, “O compromisso primeiro do professor de LM é auxiliar o aluno a tornar-se um leitor autônomo e um produtor competente de textos.”

Geraldi (1997:135) considera a “produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua”. Essa afirmação vai ao encontro da preocupação com a necessidade de formar um indivíduo reflexivo, crítico, capacitando-o a posicionar-se diante do mundo através de sua habilidade de expressão das idéias. E é bastante pertinente essa preocupação num país - e num mundo - excludente e desigual, tão carente de posicionamentos, líderes, transformações.

Mas como ajudar alguém a se expressar, se não houver o que expressar? Como ter o que expressar, se é tão difícil compreender o mundo que nos cerca; se é tão difícil compreender o jornal a que assistimos, o manual do aparelho eletrodoméstico, as leis de trânsito, o livro que a professora nos indicou para ler? É tão difícil adentrar numa cultura centralizada na escrita, se não nos posicionamos diante das questões porque não as conhecemos bem; se não conseguimos relacionar os fatos que vêm até nós através da mídia porque não vemos além das aparências; se não percebemos as “entrelinhas”, o discurso demagógico; se não sabemos inferir; se não conhecemos o poder que as palavras carregam: “Ai, palavras, ai, palavras,/ que estranha potência, a vossa!” (Inevitavelmente lembramo-nos de Cecília Meireles.)

Por isso a preocupação com a Leitura e com a Leitura de Literatura (grafada com respeitável letra maiúscula), por onde perpassam todos os elementos de constituição da textualidade e que, levando o aluno à reflexão a respeito de seu conteúdo, da língua, da estrutura do texto, da intenção daquele que o produz, do momento enunciativo, pode transformá-lo em um bom leitor - não só de textos, mas, quem sabe, também leitor de um mundo melhor.

É o que esta pesquisa pretende problematizar: a Leitura de textos literários. Estará a escola sabendo identificar e relacionar as esferas acima citadas? Que estratégias estão sendo usadas para desenvolver a competência para a construção de sentido? Que arcabouço teórico será necessário para isso? Como devem ser intercruzadas as atividades de gramática, redação e leitura? E por que a escola não forma leitores autônomos?

Algumas hipóteses podem ser levantadas:

· A prática pedagógica não estimula a reflexão, tornando passiva a atividade com o texto, quando não provoca o aluno com atividades instigantes.

“De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa, (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor”. (Bakhtin: 2000, 290)

 

· O professor, muitas vezes, não considera a importância da experiência pessoal do aluno para a construção do sentido, desencorajando o desenvolvimento da criticidade.

 

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.” (Freire: 1997, 11)

 

· A escola trabalha quase que exclusivamente com a “informação pronta”.

 

“A maioria das pessoas tem como leitura habitual apenas a mídia. É lá que vão buscar os seus tijolos para construir, mas pouca coisa tem serventia. (...) Na verdade, a mídia nos oferece uma espécie de “visão tubular” das coisas. É como se olhássemos apenas a parte da realidade que ela nos permite olhar e da maneira como ela quer que nós a interpretemos.” (Abreu, 2000:35)

 

 

· O aluno não aprende a diferir “conhecimento” de “sabedoria”. Bloom (2001:17), ao defender a importância de ler (Literatura), indaga: “Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas onde está a sabedoria?” E ainda considera: “Caso pretenda desenvolver a capacidade de formar opiniões críticas e chegar a avaliações pessoais, o ser humano precisará continuar a ler por iniciativa própria.”

 

Como a Lingüística Textual pode vir a auxiliar nessa nova perspectiva? Em primeiro lugar, centralizando as aulas nos textos (orais e escritos, de diversos registros) e diminuindo ou acabando com a distância entre leitura-produção-gramática. Em segundo lugar, trazendo uma análise textual que focalize a interação, fazendo com que o receptor assuma sua responsabilidade de construir o sentido do texto através de suas marcas superficiais e das relações extralingüísticas que o texto mantém com a enunciação e com os outros textos de uma cadeia discursiva.

A Lingüística Textual sugere que a produção e a recepção de textos sejam observadas a partir de funções textuais de natureza lingüística e extralingüística, organizadas em quatro categorias: contextualização, coesão, coerência e conexão de ações (Marcuschi, 1983). Essas noções estão centralizadas no processo de comunicação via texto - e não no texto como produto -, na atividade verbal como “uma instância do planejamento interativo”. Noções essas que pressupõem a noção de texto eleita para nortear o presente trabalho: conjunto de enunciações coerentes, intencionalmente estruturadas sintática e semanticamente e estreitamente ligadas a fatores comunicativos e referenciais.

Além disso, para realizar uma pesquisa voltada para a atividade de leitura-compreensão-interpretação de textos na sala de aula do Ensino Fundamental, a Semiolingüística mostrou-se bastante adequada aos nossos propósitos, que pretendem problematizar a ineficácia na formação de proficientes leitores. Essa linha teórica postula que a competência de produção/interpretação ultrapassa o simples conhecimento de palavras e suas regras de combinação e requer um saber mais global, que compreende outros elementos da interação social que fazem parte do processo de enunciação.

Seguindo essa orientação, torna-se premente a necessidade de substituir a postura do professor-reprodutor de regras gramaticais por outra, investigativa, experiencial, que faça com que os alunos busquem compreender os mecanismos intra e interdiscursivos de constituição do sentido.

De acordo com Charaudeau (1995), o termo Semiolingüística origina-se de semiosis (relacionando forma e sentido) e lingüística, lembrando que a forma de ação pretendida pelo sujeito comunicante é sobretudo constituída por material linguageiro.

No processo de semiotização do mundo agem dois sujeitos do mundo real, externos ao enunciado: o sujeito-comunciante e o sujeito-interpretante. Eles desdobram-se em dois outros sujeitos, internos ao próprio enunciado, pertencentes ao mundo da palavra: o sujeito-enunciador e o sujeito-destinatário. Fazendo a ligação entre os sujeitos externos e os internos, há o sujeito-locutor e o sujeito-interlocutor.

A Semiolingüística inscreve-se numa problemática que pretende articular operações cognitivas de ordem lingüística com operações cognitivas de ordem psico-socio-comunicativa.

Ao elaborar um enunciado, o sujeito-comunicante intervém no espaço da tematização e da relação. Durante a tematização, identifica os seres do mundo, qualifica-os, representa suas ações, explica etc; trabalha com o sentido literal ou explícito, um sentido de língua, que é medido segundo critérios de coesão, num movimento centrípeto. Além disso, o sujeito-comunicante precisa construir um sentido de acordo com sua intencionalidade, um sentido indireto ou implícito, num movimento centrífugo: é o sentido de discurso. Nesse caso, intervém no espaço da relação, pois trabalha com operações destinadas a significar a finalidade do ato de comunicação e a identidade dos protagonistas, fornecendo índices semiológicos como cenários, scripts, roteiros de ação e sua “identidade discursiva”.

No processo de recepção textual, o sujeito-interpretante faz o movimento contrário. Age em duas esferas: da compreensão e da interpretação. Ele deve reconhecer o sentido das palavras e as “instruções de sentido” mais prováveis, a coesão contextual propiciadas pelas operações de identificação, qualificação, que presidem o sentido de língua - é o trabalho de compreensão.

Outrossim, deve reconhecer o sentido indireto, implícito mas verossímil em função da intertextualidade (operações de ordem inferencial). Pelo grau de coerência do trabalho inferencial, mede-se a verossimilhança do sentido de discurso. Também deve reconhecer o quadro contratual do ato de comunicação; ao relacionar as marcas do texto e as características desse quadro, sinaliza outras inferências que testemunharão a finalização do mundo significado. Pelo grau de ajustamento do trabalho inferencial, será medida a justeza do sentido de discurso.

O trabalho de interpretação de texto é constituído, pois, pelo duplo processo (discursivo e situacional) de ordem inferencial que leva ao reconhecimento-construção do sentido do discurso problematizado e finalizado.

Adotar a perspectiva da Semiolingüística para o trabalho com texto na sala de aula pode possibilitar uma abordagem mais consistente quanto ao ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa e da linguagem.

III - Conclusão

Elaborar atividades em que sejam acionadas essas estratégias de compreensão (no âmbito da superfície textual) e de interpretação (relacionadas ao momento enunciativo e às relações extralingüísticas) representará a possibilidade de proporcionar meios de amadurecimento e autonomia para o leitor em formação - o que deve ser prioridade da prática pedagógica. Isso será possível fazendo um trabalho, embora consciente das dificuldades inerentes ao processo, certo da capacidade de transformação nele contida. Daí a preocupação com a construção do sentido do texto, com os procedimentos envolvidos nessa construção, com as estratégias acionadas no processo de leitura e, principalmente, com a necessidade de o professor assumir uma nova postura nas aulas de Língua Portuguesa.

Trabalhando desta forma, quem sabe possamos nos juntar ao Prof. Fiorin, acreditando que “uma pedagogia da compreensão dos mecanismos constitutivos do sentido é uma pedagogia do gosto, pois, como dizia Valéry, a compreensão precede o prazer estético”. E, finalmente, possamos formar usuários proficientes da língua, que encontraram razões para estudar LP, que se sintam seguros para escrever ou falar, ou -até - para gostar de ler.

IV - Referências bibliográficas

­­­­­­­­ ABREU. Antônio Suarez .Leitura e redação. In: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Discutindo a prática docente em Língua Portuguesa. São Paulo: IP/PUC-SP, 2000.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BLOOM, Harold. Como e porque ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

CHARAUDEAU, Patrick. Les conditions de compréhension du sens de discours. Anais do I Encontro franco brasileiro de análise do discurso. Rio de Janeiro: CIAD/UFRJ, 1995.

COSERIU, Eugênio. Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

FIORIN, José Luís. Teorias do discurso e ensino da leitura e da redação. In: Gragoatá. n.1 (2. sem. 1996). Niterói: EDUFF, 1996.

FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis - a redação na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 33.ed. São Paulo: Cortez, 1997.

GERALDI, João Wanderley .Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

KLEIMAN, Ângela. .Leitura: ensino e pesquisa. 2 a ed., São Paulo: Pontes, 1996.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Lingüística textual: o que é e como se faz. Recife: UFPE/Mestrado em Letras e Lingüística, 1983.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2001.