Análise onomasiológica
de um conto de Machado de Assis

Maria Lucília Ruy (USP)

mas, haverá remédio para existir senão existir?

A um bruxo, com amor
Carlos Drummond de Andrade

Em Uns Braços, Machado de Assis conta a história de Inácio - adolescente pobre enviado pelo pai à casa do solicitador Borges para com ele trabalhar, visando à melhoria de vida. Com a convivência, Inácio apaixona-se por dona Severina, esposa de seu “protetor”. Ou melhor, pelos braços dela. Porém, também a ela acontece de se sentir atraída pela meninice do rapaz; um fugaz arroubamento dela por ele. Uma atração que explode num beijo, dado por ela nele dormindo, mas, bruscamente interrompida quando ele é despedido, provavelmente por um pedido dela ao marido, com certeza atemorizada pela ação que praticara, num gesto tremendamente enlouquecido (de amor?).

Nesta Comunicação, para a análise do conto em questão, usaremos o método onomasiológico (do grego, ojnomasiva “designação” + lovgos “nome") sincrônico - o estudo das denominações -, através do qual procuraremos comprovar o fato de que Machado de Assis, ao dispor de palavras suficientes e adequadas à expressão do seu pensamento, de maneira clara, fiel e precisa, dá ao leitor melhores condições de assimilar conceitos, de refletir, de julgar. Buscaremos os aspectos vivos e as forças criadoras da linguagem utilizada por ele. O estudo dessa linguagem, até mesmo do ponto de vista sonoro e onomatopaico, permitirá “ver a cultura do povo, cuja língua se estuda, costumes, ocupações, crenças e crendices, enfim, sua mundividência. Permite sentir a linguagem viva, traduzindo a vivência cultural do povo.” (Bassetto, 2001)

Sobre a base do método onomasiológico sincrônico são estudadas, em certo período de tempo, as palavras em sua ambiência social (Matoré, 1953). Segundo essa análise, a palavra é considerada não como um objeto isolado, mas como um elemento no interior de conjuntos mais importantes, classificados hierarquicamente. Em outras palavras, o estudo das expressões (significante) de que dispõe uma língua para traduzir determinada noção (significado), que parte, pois, do significado para estudar o significante.

A linguagem, enquanto produto humano que se manifesta na língua de uma sociedade, nas ciências e nas artes, é uma criação, que se repete perpetuamente, capaz de converter o som articulado na expressão de seu pensamento. Ela é um ato individual, o exercício da língua.

A língua é uma instituição social da qual a linguagem é sua realização concreta. Em sua condição “estática” se atualiza por intermédio do dinamismo da linguagem. Disso resulta que a língua e a linguagem se identificam, respectivamente, com a diacronia e a sincronia.

Na sincronia se descreve um estado da linguagem no presente, ou no passado, sem se preocupar como ela surgiu. Enquanto que a diacronia se aplica à história de vários elementos da linguagem.

Pela análise onomasiológica sincrônica de Uns Braços, a linguagem será considerada, portanto, sobre o plano estático, visto que, quanto mais extensa a visão sincrônica, tanto melhor poderá ser fixada uma determinada situação da linguagem estudada.

A escolha de um conto de Machado de Assis deveu-se à riqueza de suas expressões entre as quais pode-se colher um grande número de tipos, variadas formas, jogos de palavras, que perpetuam sobremaneira o seu incomparável estilo.

Da sua maneira de dizer um sem-número de coisas, pensamentos, idéias - suas e de seus personagens -, de fazer a sua crítica, o seu humorismo, ressaltam admiráveis efeitos expressivos, alguns dos quais apresentaremos nesta Comunicação, como exemplo dessa variedade. O seu incomparável estilo pode ser prontamente verificado pela análise dos inúmeros recursos estilísticos por ele utilizados. Dentre eles, há o uso da onomatopéia.

O estudo das onomatopéias traz ensinamentos valiosos ao conhecimento de outros aspectos da linguagem, sobretudo os aspectos de caráter fonético. Onomatopéia (do grego ojvnomatopoiiva. ojvnoma “nome” + poijew “fabricar, criar”) é o fenômeno gramatical que significa a fabricação de uma palavra com base no significado dessa palavra. Ou seja, essa construção procura fazer com que a nova palavra seja a descrição do seu significado; ela relaciona o significado com o significante.

Nesse conto, Machado faz dela um uso mais largo - num sentido mais amplo atribuído à onomatopéia. Ele lança mão de uma espécie de atmosfera onomatopaica - a harmonia imitativa. (Martins, 1988)

Essa atmosfera surge quando se trata de demonstrar o poder de Borges sobre os demais personagens - através do medo, que pode ser sentido no comportamento de Inácio e nas atitudes de Da. Severina. Primeiro quando ela age - num momento em que parecia “fora do natural, inquieta, quase maluca” (Machado, 1975) -, ao dar um beijo em Inácio e, após tal ação, depois de o medo ter passado, mas o “vexame” ficado e crescido, quando cobre os seus braços com um providencial xale. Essa resumida análise pode ser comprovada também pelo estudo dos nomes dos personagens. Borges vem do alemão B’orke, que significa “casa”, “castelo” - portanto, a fortaleza, a força moral. Severina vem de “severo” (do latim severus) e quer dizer “austero”, “severo” - portanto, a rigidez de caráter. E, Inácio, “fogoso”, “ardente”, também do latim ignis, is “fogo”, “amor” - portanto, a chama da paixão.

Em Uns Braços há momentos de “barulho”, dados por essa harmonia imitativa, e também momentos de “perturbador silêncio”. Nestes últimos, fica demonstrado, através do Narrador Onisciente, o pensamento dos personagens “subalternos”. A reação de Inácio e de Da. Severina é informada apenas pelo Narrador. Não há voz ativa de nenhum dos dois. Apenas no final do conto ele responde a uma pergunta de Borges. Mesmo assim, para dizer: “Sim, senhor.” Ou seja, a sua condição ainda não havia mudado.

Logo na primeira linha do conto o uso do verbo transitivo “estremecer” nos fornece importantes informações. Estrategicamente, através dele Machado de Assis estabelece a relação hierárquica entre os personagens e informa as circunstâncias em que se dá a ação, indicando seus participantes, o espaço e o tempo.

Enquanto verbo transitivo, “estremecer” precisa de um complemento, ou uma ação anterior que justifique o fato de o personagem ter tremido. A resposta à pergunta estremeceu por quê? fornece dados ao leitor que o levam a concluir que Borges exerce domínio tal sobre Inácio a ponto de agüentar calado os xingamentos a ele dirigidos e, ainda, que o mesmo é um funcionário sem nenhuma iniciativa e, portanto, sem perspectivas de progresso nesse trabalho. O medo - tremor - é causado pela vogal anterior [e], própria para exprimir sons agudos e estridentes, ajustando o seu valor de forma mais contundente à palavra “gritos”.

Isso explica o fato de Inácio não ter se atrevido a abrir a boca, informando ao leitor sua condição de subalterno em relação a Borges.

A atmosfera onomatopaica produzida com o uso de “estremecer”, “gritos” e “trovoada” - com a qual pode se sentir o medo de Inácio - se estende ao longo desse primeiro parágrafo, completada com os adjetivos de cunho afetivo “malandro”, “cabeça de vento”, “estúpido”, “maluco”.

Com a palavra “trovoada” o efeito torna-se patente. A vogal oral [a] traduz um som forte, nítido e reforça a impressão auditiva das suas consoantes porque é o fonema mais sonoro, mais livre de todo o nosso sistema fonológico. E, ainda, a vogal posterior [o] imita sons profundos, cheios, sugerindo a idéia de medo - o objetivo de Machado. O leitor chega mesmo a ouvir trovões e a ver suas rajadas reluzentes.

Tal medo, primeiro, foi estabelecido por “gritos”. Gritar já leva a isso. Por ser um verbo de elocução, indica o tom da voz da personagem; neste caso depreciativamente. Machado de Assis, no entanto, não utiliza o verbo gritar, mas, o plural do substantivo grito, o qual, por causa da vogal oral anterior [i] exprime sons agudos, estridentes e fortes, reforçando ainda mais essa impressão auditiva; e da vogal posterior [o] que imita sons profundos, cheios, sugerindo a idéia de medo. Chegamos mesmo a quase ouvir tais gritos.

Com isso o leitor fica tomado pelo medo como se fora Inácio porque recria mentalmente a tonalidade da voz sugerida pelo texto e antecipada pelo Narrador.

Mas, tal condição vai sendo confirmada na medida em que a voz do primeiro se superpõe à das demais personagens ao longo da narrativa. Muito embora quase não sejam ouvidas essas vozes; nem a de Borges, inclusive.

Inácio “só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada”. Machado de Assis utiliza o verbo falar, de elocução propriamente dito, com o significado nuclear de “dizer”, que tem a função de indicar o interlocutor que está com a palavra. Aqui, tal função é cumprida, ainda que indiretamente, mas, aponta, ainda - uma outra característica dos elocutivos - a atitude de Inácio em relação às demais personagens e, sobretudo, em relação ao seu patrão.

“Deixe estar”, pensou ele um dia, “fujo daqui e não volto mais”. (Machado, 1975) Essa frase informa ao leitor o descontentamento de Inácio com sua própria situação. Ele não gosta do tratamento que recebe de Borges. A expressão deixa estar é bastante popular, significa quase uma ameaça. Contudo, Machado utiliza um verbo de elocução (“pensou”), com o qual considera o enunciado daquele personagem como resultado de uma atividade mental, de um julgamento, sem manifestar se concorda ou não. Ou melhor, o nosso escritor deixa em suspenso o que realmente quer o seu personagem. E que, portanto, seria mais provável que não cumprisse tal ameaça.

Com isso, o leitor toma conhecimento de quão confuso se encontrava Inácio. Primeiro, por sua pouca idade. Ainda não vivera o suficiente para adquirir maturidade. E, depois, pela novidade que estava experimentando. O seu sentimento estava “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem”. Exatamente como se sentia em relação a Borges. Borges, embora sendo grosseiro e bastante severo, lhe estava ensinando um ofício, que lhe seria útil para a vida dali adiante. Portanto, essa maneira rude de o tratar doía, mas, ao mesmo tempo, lhe faria um bem. Para expressar esse sentimento, Machado lança mão de uma belíssima metáfora: “alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor” (Machado, 1975). Demonstrando, também, como pode ser dolorida a passagem por esse processo de adolescência até que se consiga alcançar a plena maturidade.

Esse sentimento confuso também demonstra ao leitor como eram educados os adolescentes dessa época. “A educação que tivera não lhe permitia” encarar os braços de dona Severina abertamente. “Encarou-os pouco a pouco” e “assim foi descobrindo, mirando e amando”. Machado de Assis fez uso de uma prosopopéia para atribuir características humanas à educação. Com isso, o leitor entende perfeitamente que Inácio havia tido ensinamentos bastante rígidos. E tais ensinamentos lhe diziam que o seu comportamento não estava condizente com o que a sociedade permitia. Por isso o vexame do início.

Por isso, ainda, Inácio - porque tinha apenas quinze anos - não possuía maturidade bastante para chegar a se auto-questionar por esse sentimento. E, assim, deixou-se levar. Comportamento próprio de adolescentes. Tanto assim que não conseguiu entender “a completa mudança de dona Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada”. Aqui, mais importante é a palavra “xale”, pois com o seu uso Machado de Assis quis demonstrar todo peso da educação da época. Os braços à mostra foram o motivo de tudo. Se eles não pudessem ser vistos nada teria ocorrido.

Inácio, finalmente, consegue perceber algo quando é mandado embora da casa de Borges: ele “acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera” (Machado, 1975). E concluiu: “não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços...”. Esse comportamento diferente pode ser percebido pelo uso do verbo ser, de cópula, que exprime estado ou mudança de estado. Reforçado pela conjunção aditiva e, cujo valor fundamental é reunir fatos que se acrescentam.

Dona Severina, por seu turno, age conforme as conclusões que tira ao observar o comportamento de Inácio. E, assim, logo pressente algo. “(...) dona Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa.” (Machado, 1975), mais uma vez, através de um verbo de elocução, recapitular, que exprime um processo mental.

No início rejeitou a idéia porque para ela Inácio não passava de uma criança. Para demonstrar isso Machado de Assis faz uso de um dito bastante popular: “Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam”. Significa que dona Severina relutou em aceitar que era amada por Inácio, mas não conseguiu desviar-se facilmente, mesmo sendo uma mulher madura. Mas, logo passou a repensar seu juízo: “(...) entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita?”.

“Rascunho de buço” é uma expressão usada quando se quer dizer que está começando a aparecer barba num adolescente. E isso significa a passagem da idade infantil para a adolescência, transição para a fase adulta de uma pessoa. Inácio, portanto, estava passando por uma importante mudança. Daí a descrença de que ainda fosse uma criança. Mesmo porque o verbo começar está conjugado no subjuntivo, o modo que exprime um fato provável, eventual, ou uma antecipação.

A possibilidade de ser o primeiro amor de um “adolescente” turvou-lhe o pensamento. No início pensou em dizer tudo a seu marido, mas logo desistiu dessa idéia. Depois de refletir - sempre nos momentos de “silêncio” do conto, trazidos à luz pelo Narrador - concluiu que não precisava “recear nenhum desacato”. Com isso, Machado faz com que o leitor perceba que a idéia de “complicação moral” começa a aparecer em dona Severina - embora ainda não conscientemente. Ela começa a ficar transtornada ao ver “que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não era menos quando ria”.

Ela estava um pouco confusa, “vexada e medrosa”. Aqui, esses adjetivos cumprem uma importante função porque demonstram, pela tonalidade emotiva, o envolvimento dela com Inácio, ainda que mentalmente. Ela se sentia dessa forma, mas, começava a tomar consciência da “complicação moral” em que se meteria caso alguém soubesse o que estava acontecendo. O que também pode ser comprovado pela tonalidade emotiva dessas palavras, inerente ao próprio significado de ambas, mesmo porque isso é perceptível pelo contexto.

E, mais uma vez, Machado de Assis, faz uso da harmonia imitativa, para descrever a que ponto chegou dona Severina devido a seu transtorno emocional: [ela] “estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador”, “sentiu bater-lhe forte o coração com veemência”. “De repente estremeceu (...) era um gato que deitara uma tigela ao chão”. Até que, “inclinando-se, ainda mais, muito mais, deixou-lhe um beijo na boca”.

Essa cena é cinematográfica, realmente digna de ser filmada. Porque aí Machado de Assis é magistral. Para dar idéia do medo que dona Severina sentia, ele faz com que o leitor fique apreensivo por intermédio dessa atmosfera onomatopéica. O som dos “passos” de Borges pode ser sentido pela sonoridade da vogal oral [a] que traduz sons fortes, nítidos, reforçando o som sibilante da consoante [s]. Depois, o coração de dona Severina bate forte; batida essa sentida pela força da vogal oral [a] e também pela vogal posterior [o] que imita sons profundos sugerindo a idéia de medo. E, então, o barulho da “tigela” caindo no chão. A vogal anterior [i], por ser uma das mais altas, oferece uma possibilidade expressiva mais acentuada. O barulho é muito mais estridente. E, finalmente, o clímax da ação: o estalo do beijo que ela dá em Inácio, que também pode ser ouvido - o leitor tem a sensação de o beijo ter acontecido no instante mesmo da leitura - pelo som das vogais [e], [i] e [o], reforçado pelo da consoante oclusiva bilabial sonora [b], que dá uma impressão forte, violenta, ao exprimir a explosão do estado emocional de dona Severina.

Depois do beijo ficou o vexame. E foi só aí que ela sentiu o peso da “complicação moral”. Por essa razão, portanto, primeiramente, cobre seus braços passando a usar um xale. Um vestido sem mangas poderia suscitar pensamentos indecorosos nos homens e as mulheres podiam ganhar fama por isso. Uma fama nada boa, diga-se de passagem. E, dessa forma, o leitor toma conhecimento do comportamento da mulher na sociedade do século XIX. Depois, toma a resolução de pedir a seu marido para despedir Inácio. Atitudes, essas, muito mais, é claro, devido aos “liames sociais”, os quais estão configurados na própria figura de Borges, o solicitador.

Solicitador - atualmente uma profissão inexistente - era um auxiliar de advogado e tinha habilitação por lei para requerer em juízo ou promover o andamento de ações. Mas, possuía diversas restrições. Ou seja, o seu poder era restrito. Mesmo assim, a uma pessoa que trabalhava como solicitador rendia-se bastante respeito. Por isso o medo sentido por Inácio e dona Severina.

E é Borges quem levanta suspeita sobre o tal “silêncio perturbador”, ao dizer: “Parece que cá em casa anda tudo dormindo!”. Para tanto, Machado de Assis utiliza o verbo de elocução parecer por se tratar apenas de uma suposição; e, ainda, porque pode também indicar um julgamento ou uma avaliação da situação, apesar de esse verbo estar conjugado no presente do indicativo, o modo que exprime a realidade objetiva, como ela é de fato. Isso demonstra estar mesmo acontecendo algo.

Com isso, fica claro para o leitor que Borges é um homem experiente. Algo anda errado de fato. Por isso o seu descontentamento com o comportamento de Inácio e de dona Severina - ambos andam com a cabeça “no mundo da lua”. E esse descontentamento é reforçado na subordinada objetiva pelo uso do gerúndio (“dormindo”) precedido por andar, no presente do indicativo, explicitando, por isso, essa idéia de oposição. Mais uma vez Machado de Assis faz uso de uma expressão bastante popular: “anda dormindo”, que dá a idéia de inércia.

Contudo, o caráter da desconfiança de Borges é bastante diferente do de dona Severina. Para ele, significava pura preguiça, nem sequer desconfiava do envolvimento amoroso dela com Inácio. “Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo”, “Deixem estar que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos”, diz ele a Inácio e Da. Severina, respectivamente, em tom de ameaça. Mais uma vez, numa demonstração de poder. Por isso, sentiam medo dele e, por isso, agiam silenciosamente. Silêncio que pode ser explicado pelo fato de ser necessário à dona Severina e a Inácio ocultar seus sentimentos de qualquer maneira; pois se tratava de um comportamento desviante das normas impostas pela sociedade.

Machado de Assis soube tirar o melhor partido das imagens. Não só usando o legado cultural de suas leituras, como também rejuvenescendo inúmeras dessas imagens pela alteração de seus constituintes formais, pela nova ordem dos termos, pelo jogo habilidoso das palavras. Ao penetrar os recantos secretos da alma humana, cultivando com amor a fantasia, pôde empregar muitas imagens, renovando sempre. Pelo insólito desperta no leitor uma viva admiração.

Segundo Ezra Pound, “o bom escritor escolhe as palavras pelo seu ‘significado’. Mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge com raízes, com associações, e depende de como e quando a palavra é usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante e memoravelmente.” (Pound, 1970)

E Machado conseguiu esse intento com maestria. Em sua obra a palavra é usada na ocasião certa, na situação certa, com a gama de sentidos, com a rede de associações, para o fim maior da expressividade.

Concluindo, ele utiliza palavras conhecidas de seu público leitor - levando-se em conta a época dele - porque as novas se impõem com dificuldade e o leitor pode vir a desinteressar-se pelo texto. E também porque uma leitura fácil proporciona uma compreensão mais rápida da mensagem. E a estrutura das frases é também conhecida, em geral; permitindo ao leitor prever a categoria das palavras. O que leva à afirmação de que Machado de Assis - que pretendia uma ampla difusão do romance brasileiro - sabia muito bem que o uso de uma linguagem rebuscada poderia perturbar a legibilidade do texto, prejudicando em muito tal pretensão. E, para tanto, cuidou - pelo menos em Uns Braços - de casinhos miúdos, aparentemente desimportantes, vividos por pessoas comuns.

 

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Civilização Brasileira. São Paulo. 1975.

AZEVEDO, Sebastião Laércio. Dicionário de Nomes e Pessoas. Civilização Brasileira: São Paulo. 1993.

BAKHTIN, Mikhail. “A estilística contemporânea e o romance”. In: Questões de Literatura e de Estética. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini et alli. Ed. UNESP. São Paulo. 1993. p. 72-84.

BALDINGER, Kurt. Teoría Semántica. Hacia uma semántica moderna. Alcalá. Madrid. 1977

BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica. Edusp. São Paulo. 2001.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Cultrix. São Paulo. 1994.

BOSI, Alfredo et alli. Machado de Assis. Coleção Estudos Brasileiros. Ática. São Paulo. 1982.

BÜHLER, Karl. Teoria del Lenguaje. Revista do Ocidente. Madrid. 1950.

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Dispersos. Fundação Getúlio Vargas. São Paulo. 1975. p. 131-149.

CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários Escritos. Duas Cidades. São Paulo. 1995. p. 17-39.

Dicionário de Alemão-Português. Porto Editora: Lisboa. 1980.

Dicionário de Latim-Português. Porto Editora: Lisboa. 1998.

DUBOIS, Jean et alli. Dicionário de Lingüística. Cultrix. São Paulo. 1973.

GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1974.

ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário de Grego-Português. Apostolado da Imprensa: Braga. 1998.

LE GUERN, Michel. La metáfora y la metonimia. Cátedra. Madrid. 1973.

MARTINS, Nilce S. Introdução à Estilística. Edusp/ Queiroz. São Paulo. 1988.

MATORÉ, G. La Méthode en Lexicologie. Domaine Français. Paris. 1953.

MIAZZI, Maria Luísa Fernandez. Introdução à Lingüística Românica. Histórico e Métodos. Cultrix/Edusp. São Paulo. 1972.

MURACHCO, Henrique. Língua Grega. Visão semântica, lógica, orgânica e funcional. Vozes. São Paulo. 2001.

NOGUEIRA, Rodrigo de Sá. Estudos Sobre as Onomatopéias. Clássica Editora. Lisboa. 1950.

POUND, Ezra. O ABC da Literatura. Cultrix. São Paulo. 1970.

REIS, Luzia de Maria R. Machado de Assis. Coleção Encanto Radical. Brasiliense. São Paulo. 1986.

SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Duas Cidades. São Paulo. 1977.

ULLMANN, Stephen. Semântica. Uma introdução à ciência do significado. Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1964.

VANOYE, Francis. Usos da Linguagem. Martins Fontes. São Paulo. 1996.

VIDOS, B. E. Manual de Lingüística Románica. Aguilar. Madrid. 1973.