TRANSPOSIÇÕES VOCABULARES E TERMINOLÓGICAS
EM CAMPOS LEXICAIS
ENSINO DA METALINGUAGEM TÉCNICO-CIENTÍFICA

Maria Aparecida Barbosa (USP)

Introdução

A complexa e multifacetada problemática do ensino do léxico se tem configurado como forte preocupação dos pesquisadores, no quadro das variadas e urgentes tarefas que se impõem à Lexicologia, à Lexicografia e à Terminologia. No mundo contemporâneo, o exame das práticas sêmio-lingüísticas dos enunciadores e dos enunciatários do discurso pedagógico tem permitido observar claramente que a questão do ensino do léxico não é considerada importante, é, até mesmo, freqüentemente esquecida ou desconhecida, no tocante aos modelos e aplicações, de que resulta, qualitativa e quantitativamente, um baixo rendimento, não só na matéria específica da língua materna, como também em todas as demais, eis que todas se realizam, como é evidente, em linguagem.

Diante disso, propusemo-nos a desenvolver pesquisas que conduzissem à elaboração de um modelo semiótico-lingüístico que desse conta dos processos de aquisição e desenvolvimento da competência e do desempenho lexicais, seja na comunicação utilitária, da linguagem dita 'banal', seja nos universos de discurso específicos e altamente específicos que caracterizam as sociedades heterogêneas, industriais e pós-industriais.

Numa primeira etapa, concluída há tempo, apresentamos um modelo que se sustenta em dois parâmetros: o da necessidade de ser observada, no processo ensino/aprendizagem do léxico, a co-ocorrência das variedades de normas lingüísticas diversas, convergentes e conflitantes no mesmo sujeito falante-ouvinte; o da imprescindibilidade de tomar-se como ponto de partida e de referência o universo lingüístico e sociocultural do aluno (Barbosa, 1984).

Em seguida, foram considerados, de um lado, o primeiro parâmetro apontado e, de outro, as diferentes funções semióticas e metassemióticas, ou seja, as diversas relações entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, suas transformações e transposições, sua observável distribuição nas perspectivas diatópica, diastrática, diafásica e mesmo diacrônica da língua, as relações intra e inter-universo de discurso (Barbosa, 1992: 258-264).

Tornou-se necessário, então, combinar aquelas duas etapas, de modo a obter mecanismos que fizessem viável o processo proposto. Demonstraram-se relevantes o desenvolvimento dos processos de automatização das formas vocabulares e de sua adequada atualização e sintagmatização, nos discursos, às situações de enunciação e de discurso, ao contexto sociocultural, não só em condições de sinfasia e sinstratia, mas também em condições de diastratia e diafasia.

Esses problemas exigiram o exame das articulações e da interação que se processam entre dialetos stricto sensu, socioletos, tecnoletos, idioletos, sua convergência e conflito, no sujeito falante-ouvinte.

Examinaram-se, tendo em conta esses critérios e variáveis, as relações estruturais-funcionais, morfo-semântico-sintáxicas e léxico-semânticas da parassinonímia, da hiperonímia, da hiponímia, da co-hiponímia, da paronímia. Essa análise trouxe subsídios importantes, por sua riqueza e complexidade, para uma melhor compreensão dos processos de desenvolvimento do vocabulário ativo e passivo, dos mecanismos de enunciação de codificação/decodificação, que conduzem a formular métodos suscetíveis de contribuir substancialmente para a ampliação da competência lexical e para o aprimoramento do desempenho lingüístico, em situação de discurso, dos mecanismos de produção de significação e informação, determinantes da eficácia discursiva.

Numa etapa subseqüente, fazendo dos aspectos acima considerados o alicerce de nossas reflexões sobre a pedagogia do léxico, direcionamos nossa pesquisa, nessa subárea, para um tipo de 'conjunto vocabulário' bastante específico: o das metalinguagens técnico-científicas (Barbosa, 1993: 56-63), examinado no âmbito da problemática do desenvolvimento da competência e do desempenho lexicais.

Destacamos dessa pesquisa mais ampla, para expor aqui, aspectos que nos pareceram pertinentes ao tema proposto: natureza e funções das metalinguagens técnico-científicas, dicionários correspondentes e sua importância no desenvolvimento da competência e do desempenho, no quadro do saber e do saber-fazer de uma ciência ou de uma técnica; modos paradigmático e sintagmático de transmissão de uma metalinguagem; a questão das equivalências entre os termos técnico-científicos e os vocábulos banais/vulgares/populares (variantes diastráticas e diafásicas); o processo de banalização e/ou vulgarização como instrumento de aquisição e desenvolvimento da competência e do desempenho lexicais, relativos ao vocabulário de um universo de discurso específico.

Natureza e funções

das metalinguagens técnico-científicas

Ciências e tecnologias constituem universos de discurso que constróem uma metalinguagem específica e uma 'visão de mundo' segunda. Aprender uma ciência básica, uma ciência aplicada, ou uma tecnologia corresponde a aprender (adquirir competência e desempenho) na língua de especialidade desse modo constituída.

Assim, o universo de discurso metalingüístico de uma ciência - representação e síntese das suas descobertas e do saber construído -, se preciso e bem elaborado, leva a aprimorar a prática profissional em toda a sua abrangência e, conseqüentemente, essa mesma prática pode realimentar tal discurso como novos 'fatos' e novas unidades lingüísticas, reafirmando o processo de alimentação e realimentação da ciência básica e da ciência aplicada e/ou tecnologia.

Com efeito, os modelos científicos e tecnológicos aperfeiçoam-se, com a própria mudança dos 'fatos' que constituem o seu objeto de estudo, com os avanços da investigação, de modo que evoluem, concomitantemente, os seus discursos lingüísticos, daí resultando a necessidade do rediscurso constante da ciência e da tecnologia, de sua definição e limites, do seu objeto, dos seus métodos e técnicas, da sua metalinguagem.

Como se sabe, toda ciência ou tecnologia, seja, do ponto de vista epistemológico, seja do metodológico, seja, ainda, daquele da construção do seu saber metalingüístico, estabelece estreitas relações de cooperação - interdisciplinares, ao nível das ciências básicas, ou ao nível das ciências aplicadas, e de alimentação e realimentação entre estas e aquelas -, com outras ciências básicas, ciências aplicadas e/ou tecnologias. Esse processo de contribuição recíproca, entre tais disciplinas, não lhes retira, contudo, a especificidade do objeto de estudo, campo, métodos e técnicas e, até mesmo, de modelos e de metalinguagem. De fato, sustentando-se todas nesse relacionamento complexo e dinâmico de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, alimentação e realimentação, intra e inter-áreas do conhecimento humano, perseguem, efetivamente, objetivos comuns: a busca da verdade, a análise e descrição do seu objeto, a redução dos fatos a modelos, a construção do saber, o aprimoramento da qualidade de vida, a construção de um discurso metalingüístico específico.

Considerando-se, apenas, o último aspecto apontado, o do discurso metalingüístico, é lícito dizer-se que a prática de uma ciência básica ou aplicada, a sua produtividade e crescimento demonstram a imperiosa necessidade de construção e permanente reconstrução de um vocabulário próprio, preciso e consensual, instrumento de análise e descrição, que não somente permite defini-las e circunscrevê-las, enquanto disciplinas, como também lhes proporciona a aplicação mais rigorosa, produtiva, eficaz dos princípios, métodos e técnicas. Uma ciência que não conseguisse autodefinir-se não teria identidade, não poderia delimitar nem o seu objeto de estudo nem os seus processos de atuação. Dessa forma, uma ciência ou tecnologia vão constituindo-se e delimitando-se como tais, no processo histórico de acumulação e transformação do conhecimento, à medida que, simultaneamente, se vão delimitando o seu objeto formal, os métodos e técnicas de análise e descrição desse mesmo objeto e à medida que, igualmente, se vai consolidando a sua metalinguagem. Noutras palavras, com a precisa definição dos seus termos, e somente assim, determinam-se claramente os fatos próprios ao seu universo, seus métodos e técnicas. É legítimo afirmar, pois, que a construção da ciência é indissociável da construção de sua metalinguagem. À proporção de se vai constituindo, consolida-se a ciência e sua identidade epistemológica (Barbosa, 1989).

Os aspectos até aqui apontados, dentre outros, mostram a importância das metalinguagens terminológicas na sociedade atual, para a ampliação do saber e do saber-fazer do indivíduo, não só sobre determinada ciência ou tecnologia, como também o seu saber sobre o mundo. Daí decorre a correspondente importância dos modelos epistemológicos e metodológicos de tratamento, compilação, recuperação e transmissão de metalinguagens.

Nessas condições, o vocabulário técnico-científico é, ao lado das outras obras lexicográficas, um dos instrumentos imprescindíveis para o recorte dos 'fatos' científicos, para a armazenagem e recuperação desses dados, para a comunicação mais intensa e eficiente entre especialistas, no interior de uma área científica, e entre áreas científicas. Além disso, assinala-se por importante instrumento de pesquisa e de sustentação do arcabouço teórico da própria ciência (Barbosa, 1989: 107).

Na sociedade moderna. industrial e pós-industrial, constituem os vocabulários técnico-científicos um instrumento de trabalho indispensável ao especialista, de reconhecida validade para todas as áreas do conhecimento. O papel que desempenham na investigação científica, fundamental e aplicada, tem levado a considerá-los como uma das condições do desenvolvimento científico e tecnológico (Barbosa, 1989: 105).

Os modos paradigmático e sintagmático

de transmissão de metalinguagem

Observando-se o processo histórico de produção, acumulação e transformação do conhecimento de determinada ciência e/ou tecnologia, verifica-se que à sua terminologia, enquanto parte de sua teoria, subjaz uma concepção teórica específica e caracterizadora do pensamento de uma escola, de uma corrente, de uma época. Assim, a substituição de um termo por outro, no tratamento de um supostamente mesmo conceito não significa uma sofisticação desnecessária e inútil. A troca de um termo por outro reflete a modificação do conceito, que, por sua vez, resulta de uma postura teórica e epistemológica diferente, em relação a um 'pré-conceito'.

Por todas as razões acima expostas, percebe-se a importância da metalinguagem técnico-científica, sobretudo como representação e síntese das descobertas, do saber e do saber-fazer construídos por uma ciência ou por uma tecnologia e, por isso mesmo, o seu valor como objeto de análise, para a própria compreensão da ciência ou da tecnologia envolvidas. Daí decorre a necessidade de sua assimilação e domínio, em vários graus, por parte de especialistas de uma área, por parte de alunos de diferentes níveis de escolaridade, que precisam ter acesso a 'saberes específicos', e mesmo por parte de pessoas leigas que, em sua atividade social e linguajeira, precisam ter algum domínio sobre línguas de especialidade.

Nesse contexto, uma questão que não pode ser esquecida é a que se refere ao 'modo' de se transmitir uma metalinguagem, seja no processo sistemático e institucional de ensino/aprendizagem do saber científico e tecnológico, seja no acesso que qualquer sujeito falante-ouvinte possa a ele ter, no seio da vida social.

De acordo com a formalização apresentada pelos autores do Dicionário de Semiótica (Greimas e Courtés, 1981: 2), há dois modos possíveis de apresentação de uma teoria, o sintagmático e o paradigmático. Reconhecem que, à primeira vista, o discurso teórico parece ser a forma habitual mais apropriada, na medida em que permite maior rigor e coerência na reconstrução da investigação científica e é mais eficaz a longo prazo. Na visão desses autores,

A forma do dicionário reúne as vantagens e as desvantagens da abordagem paradigmática e da apresentação descontínua. As vantagens são evidentes: permite o acesso imediato ao conjunto da terminologia em uso, torna mais fácil a ulterior introdução dos suplementos de informação que os progressos das pesquisas não deixarão de carrear, e, sobretudo, legitima a colocação lado a lado de segmentos metalingüísticos cujo grau de elaboração e de formulação é bastante desigual, justapondo definições rigorosas, exposições incompletas e indicações de domínios problemáticos, ainda inexplorados. O maior inconveniente está na dispersão alfabética do corpo dos conceitos, coisa que torna difícil controlar a coerência taxionômica que se supõe subjacente a eles. Esperamos, entretanto, que o duplo sistema de remissões que aqui se adota (...) acabe por manifestar, em filigrana, aquela que é a nossa maior preocupação: contribuir (...) para a elaboração de uma metalinguagem conceptual rigorosa, condição necessária a qualquer teoria da linguagem para o seu ingresso na categoria de linguagem formal.

O sistema de remissivas adotado por aqueles autores permite fazer, de fato, de maneira paradigmática a reconstrução sintagmática de uma teoria. Semelhante sistema, em vez de estabelecer relações sinonímicas, parassinonímicas e co-hiponímicas entre os termos que constituem a macroestrutura do dicionário, procura construir uma rede conceptual entre eles. Assim, ao final de cada verbete há uma indicação de termos - formalização lingüística de conceitos - que, interligados, permitem a reconstrução de um modelo teórico abrangente, dotado da necessária coerência. Veja-se, por exemplo, o termo termo, que na área de Terminologia, se define como "unidade significante constituída de uma palavra (termo simples) ou de várias palavras (termo complexo) e que designa uma noção de maneira unívoca no interior de um domínio (Boutin-Quesnel, 1985: 20); já no Dicionário de Semiótica (Greimas e Courtés, 1989: 459), é apresentado com outras acepções, dentre as quais vale citar:

Considerando-se que toda semiótica não é senão uma rede de relações (ou que uma língua natural, por exemplo, não é feita de diferenças), os termos só podem ser definidos como pontos de intersecção de diferentes relações. Assim, o exame da estrutura elementar da significação mostra que todo termo do quadrado semiótico é um ponto de intersecção das relações de contrariedade, de contradição e de complementaridade...

Ao final da microestrutura do verbete, esse termo é remetido para relação, quadrado semiótico, árvore, lexicalização.

Relacionando-se os elementos apresentados na microestrutura desse verbete aos conceitos subjacentes aos termos indicados nas remissivas, chega-se não só à delimitação do sentido específico que o termo termo tem em Semiótica, mas também à configuração do micromodelo teórico de que é parte integrante e, deste, ao conjunto mais abrangente que é a própria teoria semiótica. Em tal tipo de dicionário, pois, essa configuração é produto semântico da definição e do sistema de remissivas, que atribui aos verbetes a seguinte característica semântico-conceptual:

[Entrada + Definição + Remissivas] = micromodelo teórico

tal que os micromodelos teóricos (MCT) são elementos do Conjunto de Modelos Teóricos ou, simplesmente, pertencem a Teoria x:

CMTx = { MCT1, MCT2,..., MCTn }.

Dessa forma, parece-nos, o modo paradigmático pode fazer - com outra estrutura, natureza e funções - uma apresentação equivalente à sintagmática de uma investigação ou modelo científico.

A escolha do tratamento paradigmático ou do sintagmático de modelos técnico-científicos e/ou teorias acarreta uma série de conseqüências no mecanismo da comunicação. Dentre outras, vale ressaltar que o discurso contínuo e seqüencial da teoria científica - como ocorre no sistema semiótico lingüístico e seus códigos, por oposição aos códigos não-seqüenciais - é mais lento, seja do ponto de vista da enunciação de codificação, seja do da enunciação de decodificação; o discurso descontínuo - considerando-se a macroestrutura, a microestrutura e o sistema de remissivas acima considerados - do dicionário permite maior rapidez na apreensão e reconstrução do modelo teórico científico.

O modo sintagmático de apresentação tem, evidentemente, um custo sintagmático maior, em decorrência da própria expansão, tanto para o enunciador, como para o enunciatário; seu custo paradigmático, no entanto, é menor.

O modo paradigmático caracteriza-se por maior economia no eixo sintagmático, já que permite acesso direto a qualquer parte da teoria tratada; contudo, seu custo paradigmático é maior, por parte do sujeito da enunciação de codificação, visto que lhe exige um domínio simultâneo muito maior da teoria envolvida, do saber-fazer e da prática lexicográfica.

O percurso de transmissão

da metalinguagem técnico-científica

e a questão do dicionário

como instrumento de ensino/aprendizagem

Colocando o problema do ensino de léxico no contexto da teoria da comunicação e formalizando-o com o auxílio da teoria dos conjuntos, procuramos definir várias situações pedagógicas. Enfatizamos aquela que faz da intersecção dos dois pólos do diálogo pedagógico (professor/aluno) o ponto de partida para a ampliação do universo léxico, através do léxico, no tocante à visão do mundo e suas decorrências (Barbosa, 1984, p. 96-103).

Consideremos, pois, algumas dessas situações.

Existe um discurso pedagógico, ao nível do léxico, que opera com um falso diassistema, ou seja, supõe que parte de elementos lingüísticos, sociais e culturais são comuns ao emissor (conjunto A, do professor) e ao receptor (conjunto B, do aluno), quando, na verdade, produz-se apenas, ou sobretudo, no universo de A. Esse discurso acarreta, entre outras coisas, aumento do custo de armazenagem e codificação, perda do rendimento sintagmático. O resultado desse processo traduz-se num esquema de comunicação em que a intersecção entre o conjunto discursivo e vocabular de A e o conjunto discursivo e vocabular de B é muito pequena ou, até mesmo, tenda a zero, daí decorrendo a incomunicação e pouco ou nenhum aproveitamento. A intersecção mínima revela-se insuficiente para assegurar a comunicação pedagógica. Configura-se esse discurso como impositivo, que não respeita o ponto de partida do aluno. Pode surtir efeito, às vezes, à custa do sufocamento do universo lingüístico e sociocultural preexistente do aluno.

Por outro lado, o ensino que opera somente na dia-norma (professor/aluno), simplesmente reitera os recortes do universo lingüístico e sociocultural do aluno. Dele resulta a não ampliação do conjunto de elementos disponíveis em sua competência e a anulação da comunicação pedagógica dialógica desejável. O processo é de tal forma reiterativo que se tem uma situação comparável à da comunicação monológica (diálogo interior), em que o sub-sistema de A e o sub-sistema de B tendem à identidade.

Entretanto, o ensino que parte do universo de B, ou, se preferirmos, do dia-sistema e da dia-norma do conjunto A e do conjunto B (conjunto universo do aluno) e conduz paulatinamente à incorporação em B dos elementos do conjunto-diferença primitivo de A (conjunto universo do professor), tem como conseqüência a ampliação da intersecção entre ambos. Tal solução é, sem dúvida, melhor.

Esse último tipo de discurso pedagógico sustenta-se na tensão dialética entre universo conhecido/universo desconhecido e minimiza a possibilidade do efeito de ruptura, tanto no processo de A, como no processo de B; permite uma progressiva ampliação da competência lingüística e da visão do mundo, sem, entretanto, anular ou sufocar o universo lingüístico e sociocultural anterior; permite, ainda, uma reorganização do universo de partida.

Assim, o professor-destinador, na estratégia de sua intervenção cognitiva, dota o aluno-destinatário de uma dupla competência narrativa e científica. Essa competência narrativa é geral, pois se insere numa situação em que se passa de um estado de não saber a um estado de saber; ela é também específica, no sentido de que reconstrói a sucessão de ações que constitui essa transformação.

Mas esse universo do "não-saber" do aluno (B) , que tem uma das partes incluídas no universo do "saber" do professor (A), está contido no conjunto diferença de A - na relação de comunicação entre os dois -. Para ser inserida no conjunto intersecção de A e B, ampliando-o, precisaria a transmissão do saber partir do próprio conjunto intersecção entre ambos, ou então do conjunto diferença de B. O discurso do não saber nunca deve, a nosso ver, partir do conjunto diferença de A e ser imposto ao conjunto B.

A dinâmica da passagem do "não saber" para o "saber" deve, pois, fazer um percurso que começa no conjunto diferença de B, ou na intersecção entre A e B, vem para o conjunto diferença de A, retorna para os dois anteriores, ampliando-os e reformulando-os. O universo do professor enriquece-se simultaneamente.

Para viabilizar esse processo, principalmente no caso do vocabulário técnico ou científico, quer se opte pelo modo paradigmático, quer pelo modo sintagmático de transmissão desse "saber", parece-nos importante, de um lado, dotar o aluno de um número expressivo de parassinônimos lexicais diastráticos e diafásicos, assim como de mecanismos de atualização e devida contextualização dessas formas equivalentes; de outro, procurar fazer dos vocábulos banais, vulgares ou populares ("saber" do aluno) o ponto de partida para o acesso aos termos correspondentes (integrados no "saber" do professor) e, conseqüentemente, para o acesso ao modelo teórico, técnico ou científico subjacente a esses mesmos termos.

Ressalte-se nesse processo a importância não só do domínio do maior número possível de parassinônimos, como também da automatização de mecanismos de comutação, segundo o contexto discursivo, dessas formas lexicais parassinônimas, quase sinônimas ou 'equivalentes'. Empregamos, aqui, o termo 'equivalente' em sentido amplo, conforme a concepção de Lyons (1979:: 478), que define a sinonímia em função da implicação recíproca ou equivalência, e não no sentido específico que tem na área de Terminologia - em que é definida como a relação estabelecida entre designações de línguas diferentes que representam a mesma noção (Boutin-Quesnel, 1985: 20; Lino, s.d.: 124).

Nessas condições, o dicionário terminológico, ou o vocabulário técnico-científico e especializado têm um papel relevante a desempenhar no processo de ensino/aprendizagem das metalinguagens técnico-científicas, como também das linguagens especializadas, desde que sejam elaboradas de maneira a atender a certas exigências que assegurem a sua eficácia. Destaca-se, aqui, a necessidade de tomar o modo paradigmático de transmissão de uma teoria científica, com as vantagens próprias do dicionário, já assinaladas no item 2, e articulá-lo com um sistema de remissões, ordenado por relações semântico-conceptuais, que favoreça percursos de reconstituição coerente, por parte do usuário, da teoria ou das teorias em causa.

O processo de banalização ou de vulgarização

como instrumentos de aquisição

da competência/desempenho técnico-científicos

Dentre os mecanismos de transmissão, desenvolvimento e ampliação do inventário lexical, salientamos o que permite estabelecer relações entre os termos técnico-científicos ou especializados de domínios e subdomínios de experiência e os possíveis equivalentes seus no universo de discurso banal.

Nesse ponto de nossas reflexões, seria interessante tecer algumas considerações sobre o termo banalização. Não raras vezes, os termos banalização, vulgarização e popularização são tomados como sinônimos. Uma análise semântica mais acurada, entretanto, mostra que seus significados não são idênticos, que se trata de processos distintos, conducentes a diferentes resultados, e revela sua especificidade semântica, ao lado dos elementos de intersecção.

Em trabalho anterior (Barbosa, 1993: 58-60), mostráramos que tais processos compreendem certas operações que lhes são comuns - a transcodificação, a intertextualidade, a paráfrase, o estabelecimento de equivalências, entre estruturas semântico-lexicais de universos de discurso diversos -, dos quais resulta, também, um metatexto explicativo. Não obstante, esses termos não têm a mesma distribuição, isto é, não são comutáveis em todos os contextos, na medida em que apresentam diferenças semântico-pragmáticas importantes.

Banalização é aqui entendida no sentido que lhe dá Galisson (1978: 8-12), ou seja, um processo de que resulta uma linguagem banalizada, uma segunda linguagem, enxertada numa linguagem técnica, para assegurar a difusão [+ popularização], a compreensão [+ banalização], sem tornar chulo, grosseiro [- vulgarização]. Parece-nos importante, igualmente, estabelecer uma oposição clara entre linguagem banal e linguagem banalizada: a segunda expressão marca um processo, ou o resultado de um processo, contendo, pois, a categoria de aspectos; a primeira pode ser ou não o resultado de um processo, o que a coloca em microssistemas diferentes, ou como equivalente de banalizada, ou como equivalente de linguagem comum, geral, corrente, e, neste último sentido, não se caracteriza como intertextual.

Nesse contexto, o processo interdiscursivo de transcodificação propriamente dito refere-se à explicação de uma linguagem primeira - a técnico-científica/especializada - por uma linguagem segunda - a banalizada -, um texto ponte entre a metalinguagem especializada e a linguagem coloquial. De fato, a expressão linguagem banalizada pressupõe sempre um texto de partida, viabilizando a intercomunicação entre universo de discurso técnico-científico/espe-cializado e a língua comum, seja do ponto de vista da enunciação de codificação, seja do da enunciação de decodificação.

Noutras palavras, a banalização é um processo de transcodificação que, a partir da linguagem técnico-científica, procura tornar compreensíveis aos não especialistas de uma área mas por ela interessados os significados e os valores específicos do universo de discurso em causa. Trata-se de uma metalinguagem mais acessível, que ainda remete para o universo de experiência técnico-científico. Já a vulgarização é o processo caracterizado pela passagem de um termo técnico-científico para a língua comum, com a perda de sua especificidade e sua desvinculação ao universo de discurso de origem. Assim, por exemplo, o termo feedback foi introduzido pela biologia, referindo-se aos mecanismos de retroalimentação de uma célula, como resposta desta a um estímulo químico; banalizou-se, passando a ser utilizado em outras áreas, como as ciências humanas, por exemplo, com o significado de retroalimentação, em qualquer processo; enfim, vulgarizou-se, sendo empregado na língua comum, para expressar algo como a captação do efeito produzido, como o caso do ator que diz precisar sentir o feedback do público.

Por outro lado, convém lembrar que as metalinguagens técnico-científicas são construídas a partir da língua comum. Logo, para ensinar a um sujeito falante-ouvinte uma 'língua de especialidade', como propusemos no item anterior, é necessário começar da língua comum e passar paulatinamente para a linguagem especializada; nesse processo, a linguagem banalizada funciona como instrumento eficaz de intermediação. Ao fazer essa intermediação, ela estabelece uma função - relação de dependência - entre os elementos do discurso transcodificador e transcodificado. O importante, pois, é o estabelecimento de uma relação de dependência entre o vocábulo e o termo e, de outro lado, o enriquecimento do vocabulário do sujeito falante-ouvinte e o ganho de precisão nos mecanismos de substituição automática dos vocábulos, na passagem de um universo de discurso a outro.

Quanto às implicações didático-pedagógicas, cumpre ressaltar que o desenvolvimento da competência lexical do sujeito falante-ouvinte requer, dentre outros aspectos, que o mesmo adquira um número razoável de variantes diafásicas, ou seja, de parassinônimos pertencentes a universos de discurso diferentes. Daí resultam: aumento do número de unidades memorizadas e disponíveis para atualização; maior rigor nas oposições semêmicas e, conseqüentemente, maior precisão do enfoque semântico; maior habilidade na seleção das unidades léxicas, face à situação de enunciação e de discurso; maior habilidade na manipulação das relações de significação; decorrente dos itens anteriores, maior habilidade na transposição de sentidos e no trânsito entre universos de discurso (metalinguagem e transcodificação).

Nesse sentido, o desenvolvimento de mecanismos que permitam estabelecer relações entre vocábulos da linguagem banalizada e termos técnico-científicos revela-se muito eficaz para a comunicação entre o leigo e o especialista e como instrumento, para o aluno, ou iniciante, de acesso a um novo universo de discurso, sem que este lhe pareça uma linguagem artificial e completamente desvinculada de seu saber anterior; além disso, mostra-se valioso instrumento de ampliação de seu vocabulário.

Outro aspecto importante do processo é o desenvolvimento de mecanismos de passagem de unidades do vocabulário passivo para o ativo, indicadora do grau de sua automatização, por parte do aluno/iniciante, que não mais se restringe à enunciação de decodificação mas alcança, também a de codificação. Tem-se aqui um importante momento, revelador do acesso a um saber técnico-científico e seu crescimento: o sujeito-falante já consegue discursar ou rediscursar a investigação e os modelos teóricos.

Sabemos que aprender uma língua é aprender um modo de "pensar o mundo". O mesmo acontece com as metalinguagens técnico-científicas, seus recortes, seus sistemas de valores e designações que lhe correspondem. Assim, a metalinguagem técnico-científica de qualquer área do saber e/ou de suas aplicações constrói a sua 'visão do mundo' específica, de tal forma que só é possível aprender uma ciência, quando se adquire a competência semiótico-lingüística do seu universo de discurso.

Tem-se aí o problema seríssimo do sujeito falante-ouvinte não iniciado e que deseja aprender uma nova ciência ou tecnologia. Por vezes, essa tarefa se mostra mais difícil que o aprendizado de outra língua natural. Com efeito, ao assimilar uma metalinguagem técnico-científica, o estudante universitário ou o pesquisador iniciante estarão assimilando e construindo o saber e o saber-fazer específicos daquela ciência e/ou tecnologia, que lhes possibilitam entender, rediscursar e realimentar não só os modelos científicos ou tecnológicos, como também a sua própria 'visão do mundo' anterior, num processo de amadurecimento intelectual e pessoal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Maria Aparecida. Da constituição e transmissão do saber lexical: um modelo lingüístico pedagógico. Revista Brasileira de Lingüística. São Paulo, v.7, p. 83-106, 1984.

------. Aspectos da produção dos vocabulários técnico-científicos. Estudos Lingüísticos XVII. Anais de Seminários do GEL. São Paulo, p. 105-112, 1989.

------. O percurso gerativo da enunciação, a relação de equivalência lexical e o ensino do léxico. Estudos Lingüísticos XXI. Anais de Seminários do GEL. Jahu, p. 258-265, 1992.

------. A banalização da terminologia técnico-científica: dialética intertextos. Estudos lingüísticos XXII, Anais de Seminários do GEL. Ribeirão Preto, p. 56-63, 1993.

BOUTIN-QUESNEL, Robert. et al. Vocabulaire systématique de la terminologie. Québec: Publications du Québec, 1985.

GALISSON, Robert. Recherches de lexicologie descriptive: la banalisation lexicale. Paris: Nathan, 1978.

GREIMAS, Algirdas Julien. e COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1978.

LINO, Maria Teresa da Fonseca et al. Terminologia da 1. Lexicologia e lexicografia. 2. Terminologia e terminografia. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, [s/d.].

LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Ed. Nacional/Edusp), 1979.