Alguns aspectos pragmáticos
na construção dos enunciados
no Conto machadiano
“Cantiga de Esponsais”

Luciana de Jesus Dias (UERJ)

Os estudos lingüísticos têm apresentado uma diversidade de trabalhos com temas e objetivos tão variados quanto complexos, a partir das contribuições de Saussure no seu Curso de Lingüística Geral.

Surge, mais tarde, uma nova área de estudos: a Pragmática, apostando nos estudos da linguagem, levando em conta a fala, e não realizando estudos da língua isolada de sua produção social.

A linguagem só ocorre porque cada falante se coloca como autor ou sujeito do seu discurso, imprimindo nele marcas lingüísticas concretas e individuais para realizar o que Saussure chamou “parole”. Este é exatamente o ponto que nos propomos desenvolver no presente trabalho: discutir quais os elementos pertencentes à linguagem na sua concretização, antes excluídos pela Lingüística saussuriana. À luz dos estudos pragmáticos, entendidos como o estudo do uso lingüístico, esboçaremos um exame do discurso do conto “Cantiga de Esponsais”, escrito por Machado de Assis, procurando identificar suas marcas enunciativas com base nas teorias estabelecidas por Benveniste e Bakhtin.

Benveniste integra aos estudos lingüísticos o conceito de subjetividade na linguagem, pois o lingüista entende que, ao produzir um enunciado, o locutor se revela nitidamente como o sujeito de seu discurso, fazendo-se representar nele quando assume a pessoa do EU presente em qualquer língua. Deste modo, ao proferir-se EU, elege o seu interlocutor na pessoa do TU. E estes dois elementos da enunciação se realizam na língua principalmente sistematizados em pronomes pessoais, em formas verbais do presente e em expressões adverbiais de espaço e tempo que se organizam textualmente.

É isso que se constata no primeiro parágrafo do texto:

Imagine a leitora que está em 1813, na Igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles remotos anos. Não lhe chamo a atenção para os padres e sacristãos, nem para o sermão, nem para os olhos das moças, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente: limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção, (M. de Assis, Contos consagrados, p. 59).

Note-se que a marca de primeira pessoa e a referência temporal ao presente representam a instância do discurso a descrever-se no trecho acima. Os verbos: chamo, falo e limito identificam o locutor do texto, que toma para si o que é dito por meio da pessoa EU, este fato expressa no momento do evento descrito um ato de enunciação.

Ao proceder desta forma, ele aponta seu interlocutor, convocando-o para participar daquele acontecimento - a celebração religiosa na qual se ressalta a figura de Mestre Romão, músico regente da orquestra. Pode-se reconhecer esse interlocutor por marcas como os pronomes lhe e lhes em: “Não lhe chamo a atenção para os padres e sacristãos” e “limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca”; aqui o locutor parece falar diretamente ao interlocutor, dando-lhe instruções; os pronomes fazem referência ao leitor ou leitores possíveis do texto. Além disso, pelo uso de interrogações indiretas em: “Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles remotos anos”, nas quais o autor utilizou o verbo sabem e a locução verbal podem imaginar com a função principal de indicar que o sujeito está com a palavra, dirigindo-a ao seu ouvinte a fim de proporcionar a ele informações e, mais ainda, compartilhar suas impressões daquele acontecimento passado.

Quando o sujeito da enunciação designa-se como EU e convoca a segunda pessoa TU a integrar o discurso, há a instauração das noções de tempo e espaço que os situa. No momento em que locutor e interlocutor são demarcados no texto, o espaço e o tempo referentes a eles são distintos do tempo e espaço referentes aos fatos narrados. As expressões que constituem indicadores de tempo/espaço, como em: “está em 1813 na Igreja do Carmo”, “daquelas boas festas antigas” - aqui, apesar de um objeto direto do verbo, o adjetivo antigas possui um valor temporal, “daqueles remotos anos” e “nesse tempo”, remetem ao tempo e ao espaço da narrativa a qual o locutor pretende relatar sobre Mestre Romão. São o tempo passado e o espaço do lá, contrastando com as marcas referentes ao sujeito: os situacionais aqui/agora do sujeito, ou seja, a partir de tal localização é feita a identificação de um fato da história contada, especialmente pelos usos demonstrativos aqueles, aquelas e esse, empregados em formas combinadas de preposição.

Isso porque, considerado por Benveniste como a não-pessoa, o ELE surge como o elemento da história, ou seja, pertence ao acontecimento que o locutor se presta a narrar, estruturando-se fora da relação de subjetividade e, portanto, exterior à enunciação. É o que exemplifica o trecho:

Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas... Esta era a causa única de tristeza de Mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo... a causa da melancolia de Mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. (p.60)

Nesse fragmento, percebe-se pelo uso dos verbos no passado e em terceira pessoa que o narrador procurou relatar o estado de espírito do músico, alcançando um efeito de sentido objetivo e próximo à realidade dentro do enunciado.

Um outro estudioso a muito contribuir para os estudos lingüístico-pragmáticos foi Bakhtin. Este desenvolveu uma teoria bastante interessante a respeito de dois conceitos: polifonia e dialogismo.

Essas noções vão aquém aos ensinamentos de Benveniste, por considerar que o OUTRO (a não-pessoa; o ELE) também participa na construção do sujeito do discurso, antes concebido com ser único, na medida em que espelha uma formação cultural recebida por meio do discurso de outros indivíduos em interações, ou seja, reflete ideologias.

Assim, encontram-se nesse texto machadiano características polifônicas e dialógicas que revelam a natureza heterogênea do discurso.

A polifonia se realiza nas várias vozes presentes na constituição do dos sujeitos latentes no discurso do referido conto. Convém exemplificar num trecho do texto essas diferentes vozes; o fragmento relata o momento de angústia vivido pelo personagem Mestre Romão ao passar a noite às claras, devido à sua doença, e se vê condenado à morte:

Está acabado, pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras: - Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! Justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado.Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse, qualquer cousa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra. (p. 62)

Analisando-se o exemplo, é possível distinguir três vozes a construir o texto: a voz representada por Mestre Romão - “Está acabado/ Em músicas/ - rematar a obra agora, fosse como fosse, qualquer cousa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra”; há a voz do médico - “Isto não é nada, é preciso não pensar em músicas...”; e, por fim, a voz do locutor que narra o fato -

pensava ele/ justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o conto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia.

Essas distintas vozes são assinaladas por marcas lingüísticas como o uso dos travessões que, no texto, informam a fala dos personagens (Mestre Romão e o médico), do ponto de exclamação em “Em músicas!” a indicar a emoção do personagem e as reticências empregadas ao final da fala do médico, sugerindo a interrupção do seu pensamento com a intenção de fazer insinuações quanto aos esforços do mestre a compor, apesar de sua condição física debilitada.

Na verdade, tem-se na delimitação das três vozes nesse terceiro exemplo, os tradicionalmente chamados discursos direto, indireto e indireto livre. Não houve a presença de três sujeitos falantes “reais”, mas um mesmo sujeito falante se faz locutor do texto, divide a responsabilidade da fala citada com outros dois locutores no discurso direto, criando uma espécie de encenação ou simulação no interior da fala.

Segundo Fiorin, o discurso direto resultou numa debreagem interna, pois o narrador deu voz a dois actantes do enunciado - o médico e Mestre Romão; com isso criou um efeito de realidade. Ocorrendo duas instâncias enunciativas, ou seja, dois níveis do EU, exemplificado em: “- Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...” e “Em músicas!”. Cada qual com suas marcas lingüísticas particulares: o uso do pronome demonstrativo isto, sendo referência implícita a forma EU; e o advérbio agora que delimita a instância temporal extensiva a, também, EU. No exemplo, chega-se a concluir que estes dois EUs são diversos, visto que provocam a coexistência de dois sistemas de enunciação independentes com indicadores dêiticos próprios (isto; agora).

Já no trecho:

O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. (p.62)

O narrador emprega outro método, em vez de citar o discurso alheio, ele próprio comunica o que Mestre Romão ordena a um empregado; esse procedimento lingüístico ocorre de maneira indireta, subordinando o discurso citado (a ordem dada pelo personagem) ao discurso citante (as palavras do narrador).

Existe, então, apenas uma situação enunciativa: a do discurso citante; o discurso citado perdeu a sua independência, ou seja, eliminaram-se aquelas marcas lingüísticas - imperativos, exclamações - que caracterizariam a sua subjetividade. É por isso que desapareceram os instauradores do discurso EU e TU, que nesse exemplo, foram transformados em não-pessoas, cujas referências espaço-temporais somente situam-se no plano do enunciado com o propósito de produzir um efeito de objetividade na construção de sentido no texto. Tal mecanismo denomina-se debreagem enunciva.

Uma terceira forma de expressão presente no conto é o discurso indireto livre, e este não demarca com exatidão os limites entre as vozes latentes no texto. Vejamos:

-Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! Nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. (p. 62)

Observe-se que a frase nominal “Impossível! Nenhuma inspiração.” Exterioriza o estado emocional do personagem Romão, em suas tentativas de terminar o canto esponsalício. A segunda frase apresenta o discurso citante do narrador. Examinando a voz do personagem: a interjeição e o sintagma nominal feitos vão traduzir um desabafo do personagem sem a menor intenção informativa. No entanto, a segunda frase, cujos verbos estão no passado e em terceira pessoa, procede a um comentário sobre o que acontecera ao Mestre.

Logo, essa mescla de discurso direto e indireto engendra uma genuína polifonia.

Como já foi dito anteriormente, o autor, com o objetivo de criar representações no conto “Cantiga de Esponsais”, explora diversos efeitos de sentido para alcançar uma maior ou menor subjetividade, utilizando mecanismos como a debreagem enunciativa (interna) e a debreagem enunciva; a fim de instalar no discurso ora actante/espaço/tempo do enunciado ancorados na terceira pessoa, ora actante/espaço/tempo da enunciação ancorados na primeira e segunda pessoa.

Do mesmo modo, como é fato comum o sujeito do discurso assumir a primeira pessoa quando estiver com a palavra, especialmente ao emitir ordens, desejos ou expressar sentimentos; e utilizar a terceira pessoa ao emitir informações objetivas e impessoais, buscando não se comprometer. Existe a possibilidade de este sujeito neutralizar essa oposição de pessoa e empregar a terceira pessoa como referência a si mesmo

Diz-se nesse caso que se deu uma embreagem actancial, “neutralização na categoria de pessoa... eu/ele em benefício do segundo membro do par” (FIORIN, As astúcias da enunciação, p. 48), a expressar diferentes significações no texto. Veja:

“- Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um Mestre Romão...” (p. 62)

Aqui, no exemplo, a fala do personagem indica a sua expectativa de conseguir concluir a sua peça musical tão desejada para deixá-la como um legado à sociedade, sendo reconhecido não só como músico, mas também como compositor. Mestre Romão fala de si em terceira pessoa, tal efeito produziu um distanciamento a ressaltar o seu papel social como músico aplaudido nas celebrações religiosas, sobrepujando seus conflitos interiores e a sua individualidade, por vezes presentes nos comentários do narrador. Para isso, a primeira pessoa foi substituída por um nome próprio e as reticências permitiriam a entrada do leitor a imaginar uma outra história.

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado. Contos consagrados. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC, 1988.

BENVENISTE, Emile. Problemas de lingüística geral. Trad. Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989.

DUCROT, Oswald. Princípios de semântica lingüística: dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix, 1977.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2001.