ASPECTOS DA GRAMATIZAÇÃO NO BRASIL

Mari Noeli Kiehl Iapechino (UNIGRAN-MS/PUC-SP)

Introdução

Como afirmaram Guimarães & Orlandi (1996: 9), não há como dissociar a história das idéias lingüísticas no Brasil das condições próprias da história brasileira - a história de uma colônia portuguesa que se torna um Estado independente no início do século XIX - e da história de uma língua que, nessa colônia, é marcada por especificidades de uso. Essas especificidades fizeram com que escritores, políticos, filólogos e gramáticos dos séculos XIX e XX abordassem assuntos relativos à língua do Brasil e com que emergissem dessa abordagem muitos registros escritos que ora defendiam uma tendência (lusitana) ora outra (brasileira).

Tarallo (In: Guimarães & Orlandi, 1996:59) destacou que, apesar desta discussão e das diferenças estruturais entre o Português de Portugal e do Brasil, o perfil da gramática brasileira tem sido marcado pela tradição portuguesa o que torna o vácuo entre língua oral e escrita muito mais profundo no Brasil do que em Portugal.

Para Mattoso Câmara (1976), as diferenças na língua padrão entre Portugal e Brasil devem-se à existência de dois sistemas lingüísticos caracterizados por uma evolução própria, apesar dos pontos de confluência social, política e cultural que ligam os dois povos. A dimensão do território brasileiro é apontada pelo autor como um dos elementos responsáveis pela formação e diferenciação dialetal.

Razões históricas, sociais, políticas, culturais, de tradição, todas têm sua importância no tratamento da questão da constituição da língua nacional e, conseqüentemente, do processo de gramatização no Brasil. Importaram neste trabalho, por constituírem o seu corpus de descrição, nas gramáticas de Costa Soares e de Júlio Ribeiro, representativas do segundo período de gramatização brasileira, e de Eduardo Carlos Pereira, publicada no primeiro quartel do século XX, o uso lingüístico e as noções de correto/incorreto.

Dividiu-se o trabalho em duas partes: na primeira, apresentou-se o processo de gramatização no Brasil; na segunda, discorreu-se sobre a Língua Portuguesa do Brasil, destacando-se o período de efervescência das discussões sobre a brasilidade do idioma Português e sobre o uso lingüístico e as noções de correto/incorreto, resgatando-se os fundamentos teóricos de Noreen e Jespersen, para, em seguida, transcrever-se as passagens, sobre esses aspectos, das três gramáticas que constituem o corpus do trabalho.

A escolha das gramáticas - Curso Elementar Theorico-Prático da Grammatica Nacional (Costa Soares), Grammatica Portugueza (Júlio Ribeiro) e Grammatica Expositiva (Eduardo Carlos Pereira) - foi respaldada pela importância que cada uma delas teve a seu tempo: a primeira, por ter sido publicada três anos depois de iniciada, com Alencar e Pinheiro Chagas, a polêmica sobre a brasilidade do Português; a segunda, por ter imprimido uma nova direção aos estudos gramaticais, rompendo com os velhos moldes ditados pela tradição gramatical de Portugal; e a terceira, pela ampla divulgação, principalmente entre alunos secundaristas, tendo sido a gramática de Língua Portuguesa no Brasil que maior número de edições alcançou em toda a história da gramatização do país.

Cunha (1986) afirmou que alguns lingüistas modernos procuraram fundamentar a correção idiomática em fatores mais precisos, mais objetivos em detrimento de uma concepção demolidora do edifício gramatical, pacientemente construído desde a época alexandrina com base na analogia (...). Precursor dessa nova corrente lingüística, Noreen estabeleceu três critérios de correção, tendo preferência pelo critério racional; Jespersen considerou que os critérios de Noreen dividiam a comunidade lingüística em indivíduos particulares e negligenciava o conjunto. Os critérios de correção lingüística determinados por um e outro lingüista europeu foram retomados neste trabalho em um caráter de revisão e de observação quanto à postura assumida pelos autores das gramáticas, de cujos capítulos foram extraídas as passagens que exemplificam a descrição nele proposta.

O Processo de Gramatização no Brasil

Segundo Guimarães (Op. cit.), o primeiro período que caracterizou uma abordagem histórica dos estudos do português do Brasil estendeu-se de 1500 até a primeira metade do século XIX. Nascentes (1964: 7) afirmou que o Brasil está colocado entre os países sem língua própria, ou seja, desde o seu descobrimento e a sua colonização, a língua introduzida no país é a dos descobridores, dos colonizadores. O tupi, falado por grande número de indígenas, foi suplantado pelo português, mas o português aqui falado pela mistura com o tupi e com os falares dos africanos introduzidos no país e por outros motivos(...), é diferente do falado em Portugal.

O autor destacou que, com a colonização do Brasil, surgiram as primeiras modificações na língua portuguesa, influenciadas pela mescla entre colonos portugueses, índios e africanos (e seus descendentes puros ou mestiços) que determinaram a formação de uma variante, sem deixar de evidenciar as feições particulares impressas pela língua literária e a presença de subdialetos provindos da grande extensão territorial do Brasil e das diferenças de povoamento (além de outras causas não descritas).

Para Guimarães (Op. cit.), além dessas modificações na língua, ocorreram as de caráter político, com a Independência do Brasil; as culturais, com a introdução das idéias românticas, de modelos literários e filosóficos franceses e das orientações científicas alemãs; as sociais, com a libertação dos escravos; e as econômicas, com a mudança nas relações de produção e, conseqüentemente, com a mudança dos investimentos para a região centro-sul do país.

O segundo período, da segunda metade do século XIX até fins dos anos 30 deste século, foi iniciado com debates entre brasileiros e portugueses sobre construções tidas como inadequadas por escritores ou gramáticos portugueses. Em 1870, no pós-escrito à segunda edição de Iracema, Alencar posicionou-se a respeito das opiniões emitidas sobre o seu conhecimento em matéria de gramática, que lhe valeu ora a reputação de inovador ora a pecha de escritor incorreto e descuidado, defendendo o seu comprometimento com a forma, com o estilo, considerado por ele como uma arte plástica superior entre as que se destinam à revelação do belo.

Alencar reconhecia uma profunda transformação do idioma de Portugal no Brasil, mas não a atribuição dada por Chagas aos escritores nessa transformação. Segundo ele, estas mudanças tiveram o seu germe no espírito popular e foram motivadas pelas independências política, territorial e cultural da sociedade brasileira; evocou, para se justificar, as diferenças entre o inglês e o espanhol americano e europeu e as influências sofridas no português do Brasil pela confluência de raças (indígenas, africanas e imigrantes europeus) aqui existente e que denota a individualidade da língua portuguesa empregada no continente americano.

Além dessa e de outras polêmicas sobre a brasilidade de nossa linguagem, publicaram-se várias gramáticas importantes, a partir de 1881, com o propósito de atender, embora não exclusivamente, ao novo programa de português para os exames preparatórios para o ensino secundarista.

O terceiro período estendeu-se do final dos anos 30, com a fundação das Faculdades de Letras, até meados da década de 60, quando a Lingüística tornou-se disciplina obrigatória para os cursos de Letras.

Dentre os documentos importantes desse período, destacaram-se o Acordo Ortográfico (1943), que estabeleceu a atual ortografia do Português do Brasil, e o documento (1946) apresentado ao Ministério da Educação e Saúde por uma comissão composta por professores, escritores e jornalistas (Macedo Soares, Cláudio de Sousa, Souza da Silveira, Gen. Francisco Borges de Oliveira, Júlio Nogueira, Clóvis Monteiro, Pedro Calmon, Azevedo do Amaral, Leonel Franca, Gustavo Capanema, Gilberto Freyre e Affonso D’ E, de Taunay) - Sobre a Língua Nacional - que procurou justificar que a denominação do idioma nacional do Brasil continuasse a ser Língua Portuguesa, valendo-se de um breve retrospecto histórico e de algumas considerações lingüísticas.

Em 1952, foi publicada a História da Língua Portuguesa, de Serafim da Silva Neto, obra que trata a Língua Portuguesa em confronto com a realidade política e cultural no Brasil, enfatizando as condições de implantação do Português no Brasil e a influência do tupi no português popular brasileiro.

É de 1941 a primeira edição de Princípios de Lingüística Geral de Mattoso Câmara, revista e ampliada numa edição de 1954; obra que demonstrava a influência de Saussure e de Sapir em sua formação. Com Estrutura da Língua Portuguesa, teve-se a primeira gramática descritiva científica feita no Brasil. Em 1955, de Silveira Bueno, foi publicada a Formação Histórica da Língua Portuguesa, com um estudo sobre a dialetação no Brasil e as influências africanas e indígenas.

A NGB - Nomenclatura Gramatical Brasileira - foi elaborada em 1958 e, dentro da perspectiva da geografia lingüística, nos anos de 1963-65, foi publicado o Atlas prévio dos falares baianos, de Nelson Rossi.

A proposta delineada por Celso Cunha, em 1965, na obra Uma Política do Idioma, não priorizou o discurso em favor da unificação da língua portuguesa, mas a manutenção de uma relativa unidade sua, considerando-se as mudanças por ela incorporadas, no tempo e no espaço, a sua expansão e o seu domínio, bem como a sua situação internacional e a incorporação de idéias lingüísticas, infelizmente nem sempre calcadas em estudos sérios e bem fundamentados, na gramaticografia e na didática da língua nacional.

Cunha (1984:39) aconselhou o revitalizar do ensino da língua portuguesa com resguardo de sua unidade e das pesquisas sobre a realidade lingüística brasileira em consonância com o desenvolvimento material, científico e técnico experimentado pela sociedade nacional; deixou, mais uma vez, evidente a relação língua/cultura - uma e outra verso e reverso de uma só manifestação do espírito.

O quarto e último período teve início em meados dos anos 60 e se estende até hoje. A Lingüística passou a fazer parte dos cursos de graduação em Letras e foram criados cursos de Pós-graduação em Lingüística, na USP, em 1966, e na UNICAMP, em 1971, e, posteriormente, em outras universidades brasileiras.

Nesse período, surgiram inúmeros estudos nas mais diversas áreas: gramaticais, dentro de uma perspectiva estrutural, funcional ou generativa; semânticos; sociolingüísticos; de lingüística histórica; de análise de discurso, de pragmática e outros.

A Língua Portuguesa do Brasil

Datam do século XIX os registros das primeiras manifestações sobre a necessidade de se afirmar a brasilidade de nossa linguagem. A princípio, com abordagens muito mais literárias ou políticas do que lingüísticas, um significativo número de textos de romancistas, poetas, críticos, políticos e outros afloraram, referindo-se ao idioma, dialeto ou língua brasileira, em detrimento de escassos textos de valor científico.

Exemplos desses registros encontram-se em José de Alencar e José Bonifácio. Alencar, primeiro escritor brasileiro a inscrever como dialeto o português falado no Brasil, deixou muitos artigos defendendo a língua que usava e justificando suas criações literárias: “o dialeto brasileiro já se distingue do dialeto português” (apud Pinto, 1978:148) ou Se a língua portuguesa não pode progredir, há de transformar-se para formar a língua brasileira (apud Pinto, 1978:144). José Bonifácio, relacionando língua e política, reivindica o uso de neologismos pelos brasileiros em função da recente independência do país: Ousem pois os futuros engenhos brasileiros, agora que se abre nova época no vasto e nascente império do Brasil à língua portuguesa. (apud Pinto,1978:10).

Muitas polêmicas e discussões sobre a brasilidade de nossa linguagem envolveram Alencar /Nabuco, Carlos de Laet / Camilo Castelo Branco, Araripe Jr. / Carlos de Laet, apesar disso, estudos sistemáticos sobre as diferenças entre o português usado no Brasil e o português usado em Portugal são raros, normalmente encontram-se trabalhos específicos sobre uma das variedades. Exemplos disso podem ser observados em A Língua do Brasil, de Gladstone Chaves de Melo; O Problema da Língua Portuguesa, de Sílvio Elia; Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa do Brasil, de Serafim da Silva Neto, e em outras obras que tratam ora de brasileirismos, ora de lusitanismos.

João Ribeiro (1897, apud Pinto, 1978: 333- 42) definiu brasileirismo como a expressão que damos a toda casta de divergências notadas entre a linguagem portuguesa vernácula e a falada geralmente no Brasil e coloca como prematura a opinião de quem associa tais divergências ao conceito de dialeto.

Sílvio Romero (1888, apud Pinto, 1978:291-3) justificou o uso do vocábulo dialeto, para a variedade brasileira, partindo do pressuposto de que se os brasileiros constituem uma subdivisão, bem distinta, na família lusitana; são uma nacionalidade nova, (...) e vão formando um povo que se não pode mais confundir com o povo português, (...) nossa língua caminha para tornar-se um dialeto. Romero informou, mediante uma lista de palavras, sobre as modificações lexicológicas que a língua portuguesa tem sofrido na América, passando, em seguida, ao estudo das alterações fonéticas e das alterações sintáticas que a língua portuguesa sofrera, até então, no Brasil - como o uso da preposição a precedendo os infinitivos em Portugal (para exprimir o estado atual ou efeito progressivo e contínuo da ação), quando no Brasil utiliza-se o gerúndio.

Com o movimento literário Modernista, a defesa da língua brasileira passou a ser assumida claramente: Mário de Andrade (1922) afirmando, no seu “Prefácio Interessantíssimo”: escrevo brasileiro; Menotti Del Picchia (1928), na “República dos Estados Unidos do Brasil”: É assim nascente/ ágil, acrobática, sonora, rica e fidalga,/ó minha língua brasileira; Roquete Pinto, nos Ensaios de Antropologia Brasiliana, tratando do seu brasiliano; Monteiro Lobato (1934) defendendo a brasilina, em “Emília no país da gramática”, entre outros.

Em O Problema da Língua Brasileira (1940), Elia teceu argumentos críticos sobre os estudos lingüísticos desenvolvidos até então e sobre alguns estudiosos do problema da língua nacional; tratou, ainda, dos conceitos de linguagem, língua, dialeto, falares, cultura e civilização, dedicando um capítulo aos “fatos lingüísticos” e outros capítulos à Lingüística como ciência, suas vertentes e seus grandes mestres. Dessas explanações é que o autor foi lançando elementos que configuraram a questão central da obra: existe ou não uma língua brasileira?

Segundo Tarallo (Op. cit.: 68), a discussão sobre a essência da língua portuguesa em oposição à modalidade brasileira ainda se faz atual, como no editorial do jornal Folha de São Paulo de 18 de novembro de 1982, em que Helena da Silveira escreve sobre o uso do português d’além -mar. Tal fato pode ser uma indicação da força das novelas na estandardização das duas modalidades, mas em direção oposta, entretanto, da ex-colônia para o ex-império.

Uso lingüístico e noções de correto/incorreto

A desconformidade entre a língua em uso (norma objetiva e implícita) e a língua descrita na gramática normativa (norma prescritiva e explícita), parâmetro do usuário, tem causado questionamentos acerca dos conceitos de correto e incorreto em relação à linguagem.

Enquanto a língua descrita na gramática normativa é disseminada por academias/instituições divulgadoras do bom uso da língua, locutores de prestígio sociolingüístico, dicionários, gramáticas, escolas, imprensa e órgãos da administração pública, o que a caracteriza como prescritiva; a língua em uso, ao contrário, caracteriza-se pela destituição desse aparato por representar a diversidade lingüística e, ainda que seja descrita, jamais será prescritiva.

O trabalho de Otto Jespersen (concepção normativa da língua) sobre os conceitos de correção e incorreção lingüística fundamentou-se em críticas ao trabalho de mesmo tema desenvolvido por Adolf Noreen (concepção funcional da língua) e de dois outros lingüistas dinamarqueses, que, embora críticos de Noreen, aproveitaram em vários aspectos a sua teoria.

Segundo Quadros Leite (1996), Noreen, no estudo da correção, fundamentou-se em três critérios: 1) histórico-literário; 2) histórico-natural; e 3) racional; desconsiderando os dois primeiros. O histórico-literário aponta para a impossibilidade de a língua retroceder a épocas passadas, de acordo com as leis da evolução fonética. A essa idéia, Jespersen acrescentou o desconhecimento das razões que levam os escritores à preferência de um certo período da história da língua em detrimento a outros e o caráter arbitrário das regras gramaticais passíveis de reformulações futuras. No histórico-natural, baseado na teoria evolucionista, século XIX, os conceitos de correção e incorreção são refutados, uma vez que a língua, segundo essa teoria, "é um organismo a desenvolver-se em estado de completa liberdade." (p. 313).

Para Quadros Leite (op.cit.), Noreen determinou que o critério racional é o que melhor define correção lingüística e Jespersen registrou que é o uso que decide o que é ou não correto e, após tecer críticas à teoria de Noreen, concluiu que a norma lingüística permite a compreensão entre falantes e ouvintes.

Quadros Leite apresenta uma lista, elaborada por Jespersen, de sete critérios de correção que interferem nas respostas às questões sobre a correção da linguagem:

1. o critério de autoridade - as dúvidas quanto à correção/incorreção seriam resolvidas pelo Ministério de Educação, ou Academias, ou pelos dicionários e gramáticas. Contra esse critério há o fato da mutabilidade da língua e cada geração deve saber o que deve dizer.

2. o critério geográfico - os lingüistas afirmam sem cessar que não há dialetos melhores ou piores que outros. No entanto, há sempre a dúvida quanto a esse ponto, pois não é incomum expressões corretas em relação ao dialeto de origem, mas incorretas em relação ao dialeto culto.

3. o critério literário - por esse critério, o correto seria o que está nos melhores escritores de épocas passadas da língua. Há, porém, problemas quanto à eleição de tais escritores.

4. o critério aristocrático - é a linguagem das classes superiores a que deve ser tomada como modelo de correção, a que deve ser imitada por toda a gente. Quanto a esse ponto, há também problemas, pois é difícil definir o que seja 'linguagem das classes superiores'.

5. o critério democrático - todos os indivíduos da comunidade lingüística são igualmente bons e, portanto, o correto é o que é, estatisticamente, mais usado. No entanto, o uso geral deve receber a contribuição de especialistas, na perseguição do aperfeiçoamento da língua.

6. o critério lógico - ponto de vista do pensamento que julga a correção de uma expressão tendo em conta sua conformidade com as leis universais do pensar. Contra esse critério há o fato da não coincidência entre língua e pensamento lógico, pois uma expressão pode estar lingüisticamente correta e logicamente incorreta.

7. o critério estético - a linguagem correta, segundo esse critério é linguagem bela. A objeção aqui diz respeito ao fato de a beleza da linguagem não estar relacionada com a correção.

Com a revisão desses critérios, de acordo com Quadros Leite, Jespersen definiu como correção lingüística o que é exigido pela comunidade lingüística a que se pertence e a incorreção é o que difere do que é exigido por essa mesma comunidade.

Uso lingüístico e noções de correto/incorreto

em Vicente R. da Costa Soares, Júlio Ribeiro

e Eduardo Carlos Pereira

O Curso Elementar Theorico-Pratico da Grammatica Nacional, de Vicente R. da Costa Soares, publicado em 1868, teve por objetivos, segundo o autor, coordenar mediante método mais simples e fácil as regras gramaticais, amenizar o trabalho dos professores e conceder aos estudantes a possibilidade de uma melhor aprendizagem, o que evidenciou, portanto, o caráter essencialmente didático desta gramática.

A gramática de Costa Soares contém quatro partes que tratam da Lexicologia, com dez capítulos sobre as classes gramaticais; da Ortologia ou Sintaxe, com três capítulos: da divisão do discurso, da sintaxe natural e da sintaxe figurada; da Lexicografia, com quatro capítulos versando sobre a divisão lexicográfica, a ortografia natural, a ortografia figurada e a do discurso; e da Prosódia, com um único capítulo sobre pronunciação.

De acordo com a temática deste trabalho, apresentam-se trechos transcritos do Curso Elementar Theorico-Prático da Grammatica Nacional que evidenciam o uso lingüístico e as noções de correto/incorreto:

Uso lingüístico

93. Todas as palavras da nossa lingua tanto no singular como no plural acabam sempre nas letras - a, e, i, o, u, y, l, m, n, r, s, z; porque as que não seguem esta regra consideram-se peregrinas ou não nacionalisadas. (p.42)

(1) Alguns grammaticos pretendem conhecer os generos pelo artigo mas, como diz Soares Barbosa na sua grammatica philosophica, isto é uma regra illusoria que só póde servir a quem lê mas não a quem fala ou escreve...

Póde-se dizer que o uso da lingua viva ensina tudo isto, mas o mesmo uso ensina todo o mais e concluir-se-há que são escusadas as grammaticas. (p.51)

Noções de correto/incorreto

Tinha-mos ganhado Ormuz, e era nosso Ormuz, e de quem é Ormuz? Mascate; e de quem é Mascate?; Cochim? E de quem é Cochim? Ceilão? Malaca; e de quem é Malaca? Cujas são tantas conquistas no Oriente? Cujas as armadas que navegam e, cobrem aqueles mares? Cujos os portos que se enriquecem com os commercios e tributos, que o Indo e o Ganges pagavam no Tejo? (1) (A.Vieira)

(1) Este trecho errado serve para mostrar aos estudantes o mau emprego do relativo. (p 35)

Registra-se que a gramática de Costa Soares lançou-se a público no período caracterizado pela polêmica entre portugueses e brasileiros sobre a questão da língua nacional, daí algumas raras passagens nas quais se destacaram pontos de proximidade ou de afastamento entre a língua portuguesa falada e escrita em Portugal e no Brasil:

As palavras da nossa língua nacional, que consistem nas mesmas palavras da lingua portugueza de que usamos, são as que se acham formadas conforme a indole desta lingua, e que, desde largo tempo, existem sanccionadas pelo uso geral que delas fazem os brasileiros e portuguezes; (...) (p.12)

Tomam os idiotismos nomes particulares, segundo a lingua d'onde são naturaes; porisso chamam-se brasileirismos as phrases da lingua dos indigenas, primeiros habitantes deste nosso paiz; luzitanismos ás construções peculiares da lingua potugueza;(...) (p.12)

Ainda desse segundo período é a gramática de Júlio Ribeiro (1881), que se opôs às gramáticas portuguesas e buscou uma outra influência teórica: Becker, na Alemanha, e Mason e Whitney, na Inglaterra, distante, portanto, da influência direta de Portugal.

A Grammatica Portugueza de Julio Ribeiro contém duas partes que tratam da Lexeologia e Syntaxe, divididas em "livros". A Lexeologia constitui-se dos livros: livro primeiro - aborda a fonética, prosódia e a ortografia; e livro segundo - trata dos elementos mórficos das palavras, das classes gramaticais e da etimologia. A Syntaxe apresenta o livro primeiro, sintaxe léxica; o livro segundo, sintaxe lógica; o livro terceiro, regras de sintaxe; e o livro quarto, aditamentos e anexos.

Destacam-se nessa gramática os seguintes trechos representativos da temática proposta:

Uso lingüístico

A maioria dos Brazileiros assim pronuncia: em Portugal diz-se - cidadé - mosárabé - montés é vallés, dando á voz terminal um som abafado, muito distincto de i. (p.31)

No portuguez do seculo XV e XVI, e ainda hoje na linguagem popular, encontra-se o substantivo homem usado como pronome indefinido. (p. 66)

Muitas palavras latinas, ao passarem para as linhas romanicas, tomaram duas fórmas, uma popular, outra erudita. A fórma popular, producto fatal da evolução que transforma as linguas, tem sempre um cunho verdadeiramente nacional em cada idioma: a fórma erudita, introduzida pelos escriptores versados em latinidade classica, apesar de acceita e naturalizada, conserva quasi sempre seu ar extrangeirado. (p. 189)

Cumpre notar que, principalmente no Brasil, vai-se estabelecendo o uso de construir as sentenças interrogativas em ordem directa, deixando-se o seu sentido de pergunta a cargo sómente da inflexão da vóz, ex.: Tu queres vir almoçar commigo? (p. 253)

Noções de correto/incorreto

Em Portuguez, bem como na pluralidade das linguas modernas, quantidade e accento tonico confundem-se e só é considerada verdadeiramente longa a syllaba predominante (1). Soares Barbosa (2), apreciando erradamente o mechanismo phonetico das linguas modernas,tenta em vão combater esta doutrina, que já era corrente entre os grammaticos do seculo passado (3). (p.14)

Os grammaticos chamam irregularidades todas as modificações dos themas e das terminações verbaes que elles não conseguiram fazer entrar em um ou outro de seus inflexiveis paradigma. O methodo racional, que ve na lingua um organismo e não o producto do capricho ou do acaso, não poderia admitir como anomalias as mais usadas fórmas verbaes; aquellas fórmas que constituem, por assim dizer, a propria essencia do discurso. O methodo racional procura razão dessas pretensas irregularidades e explica-as pelas leis da euphonia, cujo papel tão consideravel foi na formação das linguas romanicas. (p. 135/136)

Notou-se que, no tratamento dado por Júlio Ribeiro às questões do uso, seja por escritores, seja pelo povo, se privilegiam as diferenças de pronúncia, de empregos morfológico e sintático das palavras do Português de Portugal e do Brasil:

Querem os grammaticos Portuguezes que ex neste caso valha eiz e que exacto, eximir, etc., se leiam eizacto,eizimir, etc. (p. 48)

Os portuguezes pronunciam em final como o diphthongo ãe: vem dahi a rima, tão extranha aos ouvidos brazileiros, de mãe com ninguem, tambem, etc. (p.53)

Em Portugal usa-se o artigo antes dos nomes de parentesco e de relações sociaes, ainda mesmo dirigindo-se á pessôa que fala ao interlocutor (...).

Na Provincia de S.Paulo, especialmente na zona do oeste, há um uso extranhissimo e absolutamente contrário a este: supprime-se o artigo e o adjectivo possessivo com os nomes pae e mãe, ainda mesmo falando-se em ausencia, ex.: Mãe não quer que eu case. - Pae deu-me hoje um cavallo.(p. 240).(grifos nossos)

A Grammatica Expositiva de Eduardo Carlos Pereira buscou a mescla entre o elemento histórico da língua e o elemento lógico na expressão do pensamento e as razões de existência das regras atuais da gramática expositiva na gramática histórica, respaldando suas teorias gramaticais em Diez, Darmesteter, Mason, Brachet, além de gramáticos portugueses e brasileiros.

Abonando a exemplificação das regras gramaticais enfocadas em autoridades clássicas de reputação incontestada, e de preferência os escritores modernos, o autor (Op.cit.:04) justificou sua escolha afirmando: Dada a evolução da lingua, não se póde provar, em boa logica, a vernaculidade actual de uma expressão qualquer com a auctoridade de um classico antigo. Além desse enfoque, Pereira (Op.cit.:05) utilizou-se, por sugestão do programa oficial de português, de provérbios, máximas e sentenças morais, visando à fixação das regras; ao enriquecimento do espírito do público alvo de seu trabalho - a mocidade; e à influência dos princípios morais, com o intuito último de aguçar o intelecto e formar o caráter.

Eduardo Carlos Pereira procurou sistematizar os fatos da língua em classes subordinadas a normas, ligando essas classes em suas relações naturais, e os fatos sintáticos em três processos fundamentais de concordância, regência e ordem, abordados funcional e semanticamente.

Os trechos transcritos nos próximos parágrafos revelam a posição do autor quanto às questões pertinentes ao uso lingüístico e às noções de correto/incorreto:

Uso lingüístico

É este o systema geralmente em uso. Sendo elle uma combinação, nota-se uma grande variedade na orthographia de nossos bons escriptores, acostando-se uns mais rigorosamente á etymologia, e deixando-se outros mais largamente influenciar pela simplificação phonetica (...) (p. 34)

Obs. A razão da repugnancia destas classes ao plural está na propria natureza dos objectos por ellas significados. Indicando ellas uma só substancia em massa, difficilmente póde o espirito applicar-lhes a noção de pluralidade, istoé, a somma das partes que constituem o todo. Todavia, o uso tem largamente sanccionado alguns pluraes dos nomes dessas classes (...) (p. 71)

De accordo com o uso popular, aliás apoiado na auctoridade de muitos classicos, recuam alguns a tonica, e pronunciam: águo, águas, deságua, deságuam (...) (p. 108)

Numerosas excepções em bons escriptores mostram que esta regra assignala apenas uma tendencia, que ao ouvido educado compete determinar em cada caso. O mesmo se poderá dizer quanto aos outros determinativos - adjectivos e pronomes (p. 253) (próclise - com pronomes indefinidos)

Noções de correto/incorreto

Erro vulgar é dizer-se: Fazei elles sentar, deixae elles vir, ouvi elles dizer, vi elles cahir. (p. 198)

Quer o Sr. G. Bellegarde, em seus Vocabulos e Locuções da Lingua Portugueza, que seja incorrecto dar accusativo ao verbo chamar, na accepção de appellidar, dizendo-se chamei-o sabio, em vez de chamei-lhe sabio. Esta ultima regencia é, de facto, mais commum entre os classicos. Da outra, todavia, encontramos tambem exemplos (...) Não se deve, pois, tachar de incorecta essa regencia, que, embora não seja tão vulgarizada, melhor se conforma aliás, com o caracter transitivo do verbo, revelado em sua fórma passiva (...) (p. 206)

Seria incorrecto dizer-se: ‘Elle é infenso e incapaz de amizade’ - ‘Conheço e gósto deste livro’ - ‘Ella lhe obedece e ama’. Dir-se-á: ‘Elle é infenso á amizade e della incapaz’ - ‘Conheço este livro e gósto delle’ - ‘Ella lhe obedece e o ama’.(p. 238)

É, portanto, incorrecto o seguinte exemplo de Filinto Elysio, e muitos outros do mesmo auctor, por não satisfazerem as condições acima:’Tracta-se da batalha contra Philippe cuja nós perdemos’. Deveria ser - a qual nós perdemos.(p. 307)

No trabalho deste autor fica mais evidente a preocupação com o atendimento às exigências dos programas oficiais dos cursos secundários do que com o estudo efetivo dos recursos oferecidos pela língua.

Considerações Finais

Considerando-se que o comportamento social está regulado por normas que devem ser obedecidas se aquilo que se almeja é a correção, pode-se estender essa idéia para a linguagem, muito embora nela as normas, geralmente, sejam mais complexas e mais coercitivas. É por isso que se busca um conceito mais preciso de correção em cada idioma e que os lingüistas atuais vêm tentando estabelecer critérios que possibilitem a descrição de variedades cultas, quer na forma falada quer na escrita. É também por isso que Noreen e Jespersen nortearam, com os critérios por eles estabelecidos, a descrição do corpus deste trabalho.

No Curso Elementar Theórico-Pratico da Grammatica Nacional, de Costa Soares, observadas as passagens transcritas, constatou-se que, quanto ao uso lingüístico, a predominância é de regras fonético-ortográficas (regras que relacionam pronúncia e ortografia) e de regras de composição e construção, especialmente morfológicas; e, quanto às noções de correto/incorreto, o gramático apoiou-se nos critérios de autoridade, literário, aristocrático e lógico.

Na Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro, embora se perceba, quanto ao uso lingüístico, a presença de regras fonético-ortográficas e de mudança (envolvem propriedades de diferentes partes das orações, de modo que elas se misturem, se combinem, se distribuam, condicionando as formas de composição), sobressaíram-se as regras de composição e construção - semânticas, morfossintáticas e morfológicas, com ênfase nestas. Quanto às noções de correto/incorreto, o autor utilizou-se dos critérios literário, aristocrático e, notadamente, o de autoridade, refutando, muitas vezes, pareceres normativos e descritivos, de outros gramáticos brasileiros e portugueses, pautados, segundo Ribeiro, em erros, em confusões de uso e em divergências.

Eduardo Carlos Pereira, em sua Grammatica Expositiva, abordando o uso lingüístico, tratou das regras fonético-ortográficas e das regras de composição e construção (na composição, consideram-se as partes que estruturam os elementos e o modo de composição; a composição volta-se para a morfologia, enquanto a construção, para a formação das orações); sobre as noções de correto/incorreto, Pereira fundamentou todo o seu trabalho de exemplificação das regras normativas e descritivas no critério de autoridade. Essa autoridade alicerçou-se em autores clássicos, modernos à época, de origem portuguesa o que, sem dúvida, no período de gramatização brasileira em que esta obra se inseriu, caracterizado pela questão da brasilidade do Português, deve ter causado estranhamento.

A transcrição de passagens que evidenciaram o uso lingüístico e as noções de correto/incorreto nas três gramáticas permitiram a observação de que, apesar de serem todas gramáticas descritivas/ normativas, de cunho filosófico, Costa Soares preocupou-se com o modelo de correção determinado pelas classes sociais "superiores"; Julio Ribeiro, com o que a comunidade lingüística convencionou como estatisticamente mais usado, muito embora, a este uso geral tenha sido acrescido o aval de outros estudiosos e de literatos; e Eduardo Carlos Pereira, com o discurso autorizado pelos clássicos modernos, quer lingüísticos quer literários.

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