O futuro verbal é um tempo ou um modo?

Josete Rocha dos Santos (UniverCidade e UCB)

 

Introdução

Em linhas gerais, o futuro verbal expressa uma ação posterior ao momento da enunciação. Cabe ao futuro do presente o caráter modal de dúvida, incerteza epistêmica, que retrata a possibilidade do evento vir-a-ser (Câmara, 1967: 55-56). Opõe-se ao passado e ao presente, situando-se no âmbito do irrealis. No caso do futuro do presente, a realização do evento é duvidosa porque a condição para a sua realização ainda não aconteceu e não se tem certeza da sua ocorrência.

(1) José Serra prometeu gerar 8 milhões de empregos, e é possível conferir os detalhes de seu projeto no programa de governo. O problema é que, para que isso aconteça, o Brasil deve crescer 4,5% ao ano. E mais: se o país crescer a essa taxa, os tais 8 milhões de empregos serão criados naturalmente, sem necessidade da mão do governo. (Revista Veja, 14 de agosto de 2002)

o futuro do pretérito refere-se a uma condição pertencente a um passado transcorrido e a não-realização dessa condição acarreta a irrealidade do evento.

(2) Anthony Garotinho defendeu um aumento do salário mínimo. Ao explicar os detalhes, no entanto, o candidato do PSB falou em elevar o mínimo de 200 reais para 280 reais. Trata-se de um aumento real de 40% de uma vez. O salário mínimo recebe reajustes anuais. Para chegar a 40%de aumento real, o governo federal levou oito anos. Seria adorável que fosse possível governar assim, e melhor ainda se o salário mínimo pudesse ser 1000 reais. Acontece que cada real a mais no salário mínimo custa 180 milhões de reais por ano à Previdência. Os tais 40% de aumento propostos por Garotinho ampliariam o rombo da Previdência Social de 50 bilhões de reais por ano para algo como 65 bilhões. Ou seja, criariam um buraco adicional nas contas previdenciárias da ordem de 30%. (Revista Veja, 14 de agosto de 2002)

O ponto em comum entre o futuro do presente e o futuro do pretérito é o fato de ambos denotarem eventos futuros dependentes de uma condição, anterior a esses eventos, para se realizarem efetivamente.

Analisamos, tomando como base a nossa dissertação de mestrado[1], o estudo do caráter modal e temporal das formas de futuro do presente:

(1) Futuro Sintético Perifrástico (irei + v) – ir flexionado no futuro com o verbo principal no infinitivo; (2) Futuro sintético (-rei) – forma simples flexionada no futuro; (3) Futuro Perifrástico (ir + v) – forma composta de ir no presente seguido de verbo no infinitivo; Presente (0) – forma simples no português (cf. exemplos 3, 4, 5 e 6)[2].

(3)     Futuro sintético perifrástico (irei + v) - “O mercado parece estar apostando que Ciro é de direita, que se ganhar, irá ficar com o PFL e refazer a aliança clássica com o PMDB.”

(4)     Futuro sintético (-rei) – “O quadro eleitoral era o seguinte na semana passada: a não ser que surja um fato novo, haverá segundo turno, e Lula estará nele. A questão é saber contra quem. A última rodada do Ibope sugere que será contra Ciro Gomes ou José Serra.”

(5)     Futuro Perifrástico (ir + v) – “Aqui na Bahia, vou dar a Ciro uns 3 milhões de votos”, diz o ex-governador Antonio Carlos Magalhães.”

(6) Presente (0) – “Na semana passada, o técnico do penta, Luiz Felipe Scolari, anunciou que vota em Ciro.”

As nuanças entre tempo, modo e modalidade, implícitas no futuro, nos remetem ao impasse formulado por Waugh & Bahloul (s.d.) em um estudo sobre o futuro francês: “o futuro é um tempo ou um modo?” Pretendemos, assim, analisar essas acepções pautando-nos nos conceitos teóricos do Funcionalismo Lingüístico e nos diversos estudiosos.

 


 

Breve abordagem histórica

das formas de futuro do presente

O futuro sintético

Chamamos de futuro sintético o que é exposto pelas gramáticas normativas como futuro do presente, processo indicado como futuro em relação ao momento da fala (cf. exemplos 1 e 4).

Câmara (1956: 25) afirma: “o impulso lingüístico que criou um futuro gramatical, não foi o de situar o processo como posterior ao momento em que se fala, mas o de assinalar uma atitude do falante em relação a um processo posterior ao momento da enunciação”.

A forma de futuro deriva do latim vulgar a partir das formas compactas do verbo latino habere, no presente do indicativo seguida de verbo principal no infinitivo (cf. habeo + cantare > cantare habeo > cantare hei > chanterai, que deu origem ao futuro sintético contemporâneo -cantarei (Câmara 1986: 121) ). O verbo habere foi usado, inicialmente, como modal deôntico (laudare habeo), “hei de louvar” = “devo louvar”) para, a partir daí, tanto em português quanto em outras línguas românicas ser usado como morfema temporal (louvar -ei). Através da trajetória da gramaticalização, por volta do século XII, a perífrase foi compactada, à medida que passava a indicar um sentido de futuridade. No século XV, a forma era de uso coloquial para expressar predição, sendo admitida dentro do discurso formal e literário nos séculos XVI e XVII (Fleischman 1982: 82).

As formas de futuro fixaram-se no latim a partir do século III a.C.. Apresentavam três tipos, todos morficamente secundários. Foram essas formas com um valor temporal de futuro ambíguo resultado de uma gramaticalização, que acrescentaram à dicotomia passado-presente a noção temporal de futuro. Característica importante da evolução da língua foi o abandono definitivo dessas formas de futuro no latim vulgar. Dentre os vários motivos apresentados por Câmara (1956: 30), a melhor explicação para o fato é a de que na língua coloquial não havia espaço, pelo menos inicialmente, para as formas de futuro inteiramente temporais. Não haveria no latim vulgar as condições para o uso de formas exclusivamente futuras “propiciantes à intelectualização da categoria temporal”, exclusivas da língua culta. Era sempre influenciado por gradações modais.

A característica modal acarretava um futuro dubitativo, volitivo, desiderativo, hipotético. na língua clássica havia uma forma perifrástica no particípio do futuro emurus com o presente do auxiliar esse indicando intenção ou ação iminente. No latim imperial[3], essa forma foi vastamente usada ao lado de locuções do infinitivo com o presente de habere, uelle (em latim vulgar volere), posse (em latim vulgar potere), debere, uadere, ire, venire. Algumas dessas formas consolidaram-se no uso cotidiano. Em princípio, sempre com nítidas intenções modais. Fixou-se o uso do auxiliar debere no sardo e o presente de volere, cliticamante reduzido (voi), fixou-se no romeno.

A locução com o presente de habere, agora seguida do infinitivo, foi a construção preferida pelas línguas românicas. Inicialmente, era um futuro de intenção ou volitivo. Essefuturo puro românico surge no uso literário, sobrepondo-se ao uso do presente para expressão do futuro, no século IV.

A partir daí, consolidou-se com a aglutinação do auxiliar ao infinitivo, um futuro românico flexional: port. cantarei, esp. cantaré, fr. chanterai, it. canteró.

Segundo Câmara (1956: 32), a primeira evidência da forma aglutinada ocorre na prosa de Fredegário. Observa-se um sentido imperativo. Eis a narrativa. O rei dos Partos, vencido na guerra, negava-se a entregar a cidade. Justiniano responde-lhe incisivamente, usando o futuro clássico: “Daras[4]”. Segundo o cronista, daí adviria o nome Daras para a localidade em que se passou a cena.

A evolução que origina o futuro românico é, portanto, apenas mórfica. Ocupou o lugar do futuro latino clássico, ao ser usado nos mesmos contextos em que o futuro latino era usado.

 


 

O futuro perifrástico

A primeira construção perifrástica, surgida no latim clássico, era formada pela combinação do futuro no particípio ativo em -urus acompanhada das formas de sum: facturus sum, eram, ero, etc. O sentido mais comumente atribuído a essa construção era de iminência. Além disso, investigadores percebiam em certos exemplos um sentido de intencionalidade e/ou destino (Fleischman, 1982: 35). Juret (1926, apud Fleischman 1982: 35) rejeita categoricamente um sentido de iminência, preferindo simplesmente atribuir à construção um sentido de posteridade. Da mesma forma, Damourette & Pichon (1936: 288, apud Fleischman 1982: 35) atribuíram sua própria categoria de posteridade. No entanto, admitiam um tom de iminência. Para todos esses sentidos, seriam acrescentados sentidos de propósito e futuridade.

Fleischman (1982: 83) afirma que, nas línguas modernas, o futuro perifrástico está marcando seqüências temporais, ao invés do domínio exclusivo das formas sintéticas. A perífrase formada com ir surgiu no Espanhol, Francês e Português a partir dos séculos XIII e XIV. Na língua inglesa, o primeiro registro do uso desta forma data, provavelmente, do ano de 1482. Nas línguas românicas, a construção passou a ser generalizada na fala coloquial durante o século XV e foi admitida em conversações polidas e discursos literários nos séculos XVI e XVII. E, como podemos perceber, desde então, seu uso tem aumentado.

É interessante notar que por volta de 1928, Henri Bauche (apud Fleischman, 1982: 82) postulava que o futuro sintético seria suplantado pelas construções analíticas.

Atualmente, um número significativo de pesquisadores defendem a idéia de que na fala espontânea do Inglês Americano e dos dialetos românicos isto é tomado como um fato comprovado. Futuros em línguas crioulas são universalmente analíticos e um número de Crioulos de base inglesa ou francesa têm seu futuro derivado da partícula prospectiva a partir do verbo ir.

Um estudo recente do francês falado no Canadá (Poplack & Turpin, 1999: 7) aponta que a expressão verbal aller + infinitivo era usada acompanhada pelo advérbio de tempo, através do qual se sustenta o sentido de futuridade, geralmente com a idéia de proximidade. Através da gramaticalização, a expressão verbal começou a conter em si mesma a noção de futuridade. Logo, sentenças expressando um sentido sem ambigüidade começaram a aparecer isoladas de advérbios temporais.

Câmara (1956) afirma que dentre os tipos de locuções verbais, “destaca-se uma em que a significação temporal é primordial: aquela que se constrói com o auxiliar ir (vou falar, vou chegar etc).”

Segundo o autor, o futuro perifrástico se diferencia do presente pelo fato de não ser umfuturo absoluto”, isto é, um processo posterior ao momento da fala. Constitui-se, assim, em umfuturo relativo”, processo cursivo iniciado a partir do momento da fala. Há ainda a intenção modal do sujeito. É uma construção freqüente no português coloquial enquanto se nota o desuso gradual da forma sintética. Essa evolução semântica das locuções com ir no sentido de futuro amplo para marcar um fato posterior ao momento da enunciação, repete, segundo Câmara, o ciclo ocorrido na fase românica, quando ocorreu a substituição do futuro tradicional latino por locuções semelhantes.

Em suma, o futuro perifrástico abarca dois significados diferenciadores em relação ao presente: a) um significado modal, denotativo da intenção do sujeito; b) e o próprio sentido do verbo ir, que pressupõe um movimento físico.

 

O presente

Durante o Império Romano, era comum empregar-se o presente do indicativo com o sentido de futuro. A substituição fazia-se presente em todo tipo de texto. Em Cícero, o presente foi empregado em cláusulas condicionais (Grandgent, 1963: 99).

 

Distinção entre tempo, modo e modalidade

Nesta seção, discutiremos a diferença entre tempo, modo e modalidade seguindo a proposta funcionalista givoniana ao considerar o julgamento do falante acerca do conteúdo proposicional.

 

A categoria de tempo

Nas gramáticas tradicionais, há uma ambigüidade entre tempo (tense), uma categoria gramatical, e tempo (time), uma entidade fundamentalmente experiencial. Essa ambigüidade teve como conseqüência a prática de denominar tenses (tempo verbal) de acordo com a seqüência de tempo (time) linear: passado, presente e futuro. No entanto, diferenciando tense e time, dizemos que tense é uma categoria gramatical e time, uma construção mental. Tense geralmente expressa não o fluir do tempo e nem a sua segmentação, mas simplesmente a seqüência de eventos – anterioridade, simultaneidade, posterioridade (Fleischman, 1982: 8).

Lyons (1995: 314) define tempo (tense) como a categoria resultante da gramaticalização da referência dêitica temporal. Tempo, ao contrário de aspecto, é uma categoria referencial e mais especificamente dêitica. Essa é a mesma opinião de Fleischman (1982: 29) para quem “O conceito dinâmico de tempo é dêitico: não é estático[5].”

Para Mira Mateus et alii (1983: 45), “tempo é a localização do estado de coisas descrito relativamente ao momento da enunciação.” Mais especificamente:

A categoria lingüística de tempo exprime a ordenação do espaço de tempo que contém o estado de coisas descrito por uma predicação relativamente ao espaço em que ocorre a enunciação da mesma, está gramaticalizada nos tempos verbais e exprime-se igualmente através de expressões de valor de adverbiais temporais e de conectores frásicos de valor temporal. (...) No português, os tempos naturais são o presente, o passado e o futuro, definidos, respectivamente, pela relação de simultaneidade, anterioridade e posterioridade em relação ao momento da enunciação. (Mira Mateus et alii, 1993: 104)

No Proto-Indo-Europeu, tempo não era uma categoria gramatical. A referência ao tempo da ação era representada por elementos adverbiais ou nominais. As formas verbais associadas a esses elementos eram aspectuais (cf. Fleischman, 1982: 32).

Segundo Câmara (1985: 128), a categoria de futuro surge, posteriormente, “pela necessidade da expressão temporal; concretizam-no certas necessidades modais.” Por isso, o futuro começa como modo. (Câmara, 1957: 223).

Como vimos, os estudiosos se dividem quanto ao tempo futuro: é basicamente temporal ou modal? (Lyons, 1995: 319). No português, esse debate tem um ponto convergente. Todos concordam que a referência ao futuro, em contraste com a referência ao passado e ao presente, é geralmente, se não sempre, matizada com a expressão de incerteza ou expectativa (op. cit). Essas são consideradas atitudes modais freqüentemente expressas pela categoria de modo. Assim, a distinção entre temporalidade e modalidade, assim como a distinção entre tempo e modo, não é sempre claramente descrita nas línguas em geral, especialmente quando se trata do tempo futuro (Lyons, 1995: 320). O português não é exceção.

 

A categoria de modo

A categoria gramatical de modo é identificada nas diversas línguas do mundo. O latim reconhece um sistema de modo subjuntivo, indicativo e imperativo igualmente reconhecido pelo grego clássico subjuntivo, optativo. O inglês apresenta um sistema de verbos modais – will, can, may, must.

A origem greco-latina legou ao português um sistema de modo verbal acoplado à modalidade. A gramática tradicional distingue uma categoria flexional de modo, atribuindo noções distintas para o subjuntivo e para o indicativo, não usando o termo modalidade para referir-se às atitudes do indivíduo acerca do que fala.

Modo é, por definição, a categoria resultante da gramaticalização da modalidade epistêmica, deôntica ou de qualquer outro tipo (Lyons, 1995: 332). Há muitas línguas no mundo que têm vários modos não-indicativos para tipos diferentes de modalidade epistêmica, mas não possuem um modo indicativo: isto é, tradicionalmente considerado pelos lingüistas e lógicos como o modo semanticamente neutro ou não-marcado.

O paradigma de modo, comum a línguas românicas como o português, o francês e o espanhol, associa esta categoria ao sistema flexional do verbo. Da mesma forma, a modalidade, ou assumindo os termos da gramática normativa, a atitude do indivíduo, está ligada ao sistema gramatical de modo verbal.

Diversos estudiosos propõem a separação entre modo e modalidade:

(...) eles (subjuntivo, indicativo e imperativo) expressam certas atitudes da mente do falante em relação ao conteúdo da sentença, embora em alguns casos a escolha do modo seja determinada não pela atitude do falante real, mas pela própria cláusula e sua relação com o nexo principal da qual é dependente. Ainda é muito importante que falemos de ‘modo apenas se a atitude da mente é mostrada na forma do verbo: modo é uma categoria sintática, não uma categoria nocional.[6] (Jespersen, 1924: 313, apud Palmer, 1986, 9-10)

(...) modo é uma categoria gramatical que é encontrada em algumas, mas não em todas as línguas. Não pode ser identificada com a modalidade ou força locucionária...[7] (Lyons, 1977: 848)

(...) um é gramatical (modo), o outro nocional ou semântico (modalidade)... (Palmer, 1986: 7).[8]

(...) modalidade é um domínio conceptual, e modo é sua expressão flexional.[9] (Bybee et alii, 1994: 181)

 

Definição de modalidade

Desde Aristóteles, muitos estudiosos vêm procurando definir e classificar os tipos de modalidade. Até uma certa época, os interesses ficaram restritos basicamente ao âmbito das modalidades aléticas (do grego “alético” = “verdadeiro”), denominadas também lógicas ou aristotélicas: aquelas que dizem respeito às relações entre o locutor e o universo de referência. Em outras palavras, pautam-se na descrição da relação entre verdade e falsidade das proposições, apresentando uma gradação da proposição aleticamente necessária à aleticamente possível.

Mais recentemente, diversas propostas têm surgido. Basicamente, tem se considerado dois tipos principais de modalidade: a epistêmica e a deôntica (cf. Lyons, 1977; Palmer, 1985; Givón, 1995).

Palmer (1986: 18) define modalidade como a gramaticalização das atitudes subjetivas e opiniões do falante. A modalidade epistêmica está ligada ao conhecimento, crença, ou opinião, enquanto a modalidade deôntica está ligada à necessidade ou possibilidade de atos performativos pelo agente moralmente responsável.

Para Mira Mateus et alii (1983: 46) “a indicação do universo de referência relativamente ao qual uma predicação é válida, e a indicação do modo como o locutor encara a ocorrência do estado de coisas descrito são expressas através da categoria modalidade.” Acrescenta que a modalidade em português pode ser expressa pelo modo do verbo: indicativo, conjuntivo (subjuntivo), imperativo. Fávero (1999: 43), classifica as modalidades como: a) alética – referente ao eixo da existência; b) deôntica – referente ao eixo de conduta, ao que se deve fazer; c) epistêmica – referente ao eixo da crença, ao conhecimento de umestado de coisas”. Resumindo a posição das autoras acima, afirma: “a modalidade é a atitude assumida pelo locutor diante do enunciado por ele produzido.”

De acordo com Givón (1995: 112), há dois tipos de modalidades conforme a atitude do falante:

(a) atitudes epistêmicas: verdade, crença, probabilidade, certeza, evidência;

(b) atitudes avaliativas: desejo, preferência, intenção, habilidade, obrigação, manipulação. [10]

Dentre as modalidades epistêmicas da lógica clássica, a gramática tradicional herdou a oposição realis/irrealis, ou seja, oposição entre eventos fatuais (reais)/não fatuais (irreais). Assim, opõe-se modo indicativo referente a eventos reais, realizados ou certos de serem realizados - ao subjuntivo eventos não-realizados, irreais.

Passado e presente estão no âmbito da modalidade realis por assinalarem um evento de ocorrência fixado em algum tempo determinado, tenha este evento ocorrido ou esteja acontecendo no momento do ato de fala. Em oposição ao passado e ao presente, o futuro, valor temporal dos fatos ainda não vivenciados, situa-se no âmbito do irrealis, a categoria de modalidade que retrata a possibilidade de o evento vir-a-ser. Atribui-se ao futuro do presente o caráter modal de dúvida (Câmara, 1967: 55-56).

 

A natureza do futuro verbal

A distinção de base funcional entre a pressuposição realis/irrealis pauta-se no julgamento feito pelo indivíduo sobre a realidade. Os eventos, as ações e os estados são classificados por um grande número de línguas naturais como ocorridos ou em andamento opondo-se aos não-realizados, ou seja, irreais (Comrie, 1985; Bybee, 1994; Givón, 1995). É esta distinção conceptual indicadora de uma distinção temporal entre passado e presente (realis) de um lado e futuro (irrealis) de outro.

Na concepção de Câmara (1985: 128), a concepção de futuro está mais associada ao desejo, à dúvida, à imposição da vontade, funcionando rigorosamente na categoria de modo. Em estudo anterior, o autor afirma que o valor de irrealidade é conferido à forma de futuro do pretérito através do contexto (Câmara 1956: 55/59). Na verdade, esse não é um valor inerente a este tempo verbal, mas um valor modal que normalmente lhe é atribuído. Conforme mencionado anteriormente, por analogia, o caráter modal de dúvida, como uma irrealidade em perspectiva, é atribuído ao futuro do presente.

Lyons (1977: 677) analisa o futuro como sendo diferente do passado sob o ponto de vista da nossa experiência. No futuro, não se pode negar algo tão categoricamente como se pode no passado. As expressões de futuro são menos definidas, pois expressam apenas uma possibilidade. O vir-a-ser está ligado ao possível e mais associado a asserções modalizantes. Para Corôa (1985: 55), o futuro expressa um pensamento que vai do possível para a certeza. O falante, durante a enunciação, avalia o evento pautando-se na necessidade, probabilidade, possibilidade ou impossibilidade da ocorrência da ação. No entanto, mesmo que haja certeza subjetiva da ocorrência do evento, sua realização somente se dá após cumprir-se o tempo da referência.

Comentando o caráter necessariamente especulativo do futuro em relação ao passado e ao presente, Comrie (1985: 43) aponta o fato de que as predições feitas podem ser mudadas ou simplesmente não acontecer dependendo do desenrolar dos fatos. Para o autor, o uso de formas distintas de referência ao presente e ao futuro não seria imposto pelo sistema de tempo da língua, mas preferencialmente pelo seu sistema modal. A referência ao tempo futuro deriva diacronicamente de expressões modais, tal como ocorre com a expressão desiderativa em Inglês will.

O modo realis refere-se a situações verdadeiramente fatuais. O modo irrealis é usado para situações hipotéticas, incluindo generalizações indutivas, além de predições sobre o futuro. A referência ao tempo futuro é apenas uma das interpretações possíveis para o irrealis, e não motivo para presumir que seja significativamente mais importante se comparada a qualquer outra interpretação desta forma (cf. Comrie, 1985: 45). Comrie sugere: o futuro deve ser tratado como modo e não como um tempo verbal. Mateus et alii (1983) consideram também que a categoria lingüística de tempo futuro reserva sempre um valor modal.

Para Givón (1995: 116), o futuro se opõe ao passado e ao presente. Passado e presente estão no âmbito da modalidade realis. Assinalam um evento de ocorrência garantida em algum tempo específico, tenha este evento transcorrido ou esteja transcorrendo no momento da fala. O futuro, valor temporal dos fatos ainda não experienciados, está no âmbito do irrealis, a categoria de modalidade que retrata a possibilidade de um evento vir-a-ser. Sugere ainda: “o traço comum aos sub-modos epistêmico e deôntico do irrealis é o de incerteza epistêmica”.

A modalidade epistêmica de irrealis deriva da baixa certeza ou baixa probalidade e, portanto, envolve um significado de incerteza epistêmica. A modalidade deôntica de irrealis possui um significado inerente de futuridade. Portanto, também de incerteza epistêmica. Givón afirma: “o futuro é um tempo claramente irrealis[11] (Givón, 1984: 285) e “o futuro é por definição um modo irrealis[12]” (Givón, 1993: 172). A mesma opinião tem Fleischman (1982: 14) ao dizer: “a categoria temporal de futuro está relacionada ao irrealis.”

Bybee et alii (1994: 280) inserem o futuro, por relacionar-se à intenção e à predição, no âmbito da modalidade epistêmica. Acrescentando dizem: “O futuro é menos uma categoria temporal e mais uma categoria modal com importantes implicações temporais.”

Em estudo sobre o futuro no francês falado no Canadá, Poplack & Turpin (1999: 3) também o associam à modalidade, por ser a expressão da atitude subjetiva do falante em relação a fatos ainda não ocorridos.

 

Análise dos exemplos

Como vimos, modo é, por definição, a categoria resultante da modalidade epistêmica, deôntica ou de qualquer outro tipo. A modalidade, ou seja, a atitude do indivíduo, está ligada ao sistema gramatical de modo verbal no português.

Os exemplos 3-6 referem-se às formas de futuro do presente. Codificam o conhecimento, a crença do falante sobre o conteúdo das proposições enunciadas e observa-se o grau de comprometimento do falante com a verdade da proposição. Essas são as atitudes epistêmicas, segundo Givón (1995: 112). A forma de futuro sintético tende a codificar conteúdos modais e o presente, como codifica a assertividade, será a forma preferida para enunciar proposições futuras como verdadeiras. Os exemplos 1, 3 e 4 expressam a certeza da realização do fato, desde que a condição necessária para essa realização se cumpra.

um falante comprometido com as informações veiculadas. O falante imprime ao enunciado um teor de verdade (Givón, 1995: 114), a fim de evidenciar marcadamente a sua crença na realização do evento.

O futuro perifrástico (IR+V) expressa uma atitude mais avaliativa por parte do falante. Apresenta uma nuança de proximidade, intenção, manipulação para que a eventualidade se realize. O falante, ao usar a perífrase, está mais envolvido com a enunciação, denuncia uma visão subjetiva do evento (cf. exemplo 5).

Quanto á forma de presente, Câmara (1991: 199) retrata o uso geral e fundamental do presente no português. Exprime: a) um fato permanente; b) um fato que ocorre habitualmente; c) em seu uso atemporal como modo, o presente exprime a certeza em oposição ao futuro do presente. O presente pode ser usado para referir-se a fatos futuros. Em seu uso atemporal, como modo, o presente é a forma escolhida pelo falante, dentre as quatro formas, para exprimir um grau maior de certeza quanto à realização do evento futuro. De acordo com Poplack & Turpin (1999:3), o falante usa o presente quando o evento futuro é determinado ou planejado (cf. exemplo 6).

 

Considerações finais

Constatamos uma linha tênue entre tempo, modo e modalidade nas formas de futuro do presente.

Os gramáticos definem o futuro do presente como o tempo que expressa um fato posterior ao momento da fala (cf. Said Ali (1969); Celso Cunha & Lindley Cintra (1985); Bechara (1978, 1999); Faraco & Moura (1999); Pasquale & Ulisses (1999)). No entanto, ao lermos os exemplos descritos por esses autores, notamos a imbricação entre as categorias de tempo e modo. Cunha & Cintra (1985: 446) apresentam exemplos do futuro expressando incerteza, probabilidade, dúvida, polidez, desejo, súplica e ordem, enfim, atitudes do falante em relação ao evento modalidade. Há apenas um exemplo no qual o futuro do presente expressa fatos certos e posteriores ao momento da fala.

Por outro lado, estudos lingüísticos têm mostrado como o futuro expressa a postura do falante em relação aos fatos enunciados, mais do que eventos posteriores ao momento da fala, ao deixar evidente a sua crença ou dúvida na concretização do evento. Devido a esse caráter ambíguo expresso pelo futuro do presente e suas formas, concordamos com Givón (1993: 172): “o futuro é, por definição, um modo irrealis”. Portanto, deveria estar associado ao modo subjuntivo nas gramáticas normativas.

 

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[1] A dissertação foi defendida em novembro de 2000, na UFRJ, sobre “A variação entre as formas de futuro do presente no português formal e informal falado no Rio de Janeiro.”

[2] Os exemplos 3-6 foram retirados da Revista Veja (no 28 – 17/ 07/ 02).

[3] Assim, Satiricon – “habituri sumus munus excellente (sic)” – teremos uma dádiva excelente (T – XVI, 32).

[4] Oppraesso rege Persarum, cum vinctum tenerit, in cathedram quasi horifice sedere iussit quaerens ei civitatis et provincias rei publice restituendas; factisque, pactionis vinculum firmarit. Et ille respondebat: “Non dabo”. Iustinianus dicebat: “Daras”.

[5] The dynamic concept of time is deitic: the static is not.” (Fleischman, 1982: 29)

[6] ...they (subjunctive, indicative and imperative) express certain attitudes of mind of the speaker towards the contents of the sentence, though in some cases the choice of mood is determined not by the attitude of the actual speaker, but by the character of the clause itself and its relation to the main nexus on which it is dependent. Further, it is very imprtant that we speak of ‘mood’only if the attitude of mind is shown in the form of the verb: mood thus is a syntatic, not a notional category (Jespersen, 1924: 313, apud Palmer, 1986: 9-10).

[7] ...mood is a grammatical category that is to be found in some, but not all, languages. It cannot be identified with either modality or illocutionary force... (Lyons, 1977: 848)

[8] ...the one being grammatical (mood), the other notional or semantic (modality)... (Palmer, 1986: 7)

[9] ...modality is the conceptual domain, and mood is its inflectional expression (Bybee et alii, 1994: 181)

 

[10] By ‘attitude’ we mean primarily two main types of judgemente, perspective or attitudes concerning the information packe in the clause:

(a)      Epistemic attitudes:

Truth, belief, probability, certainty, evidence

(b)      Valuative attitudes:

Desiderability, preference, intent, ability, obligation, manipulation. (Givón, 1995: 112)

[11] “... the future is a clear irrealis tense”. (Givón, 1984: 285)

[12] “... the future is by definition na irrealis mode.” (Givón, 1993a, 172)