Voz Passiva Sintética
Uma Nova Proposta de Análise

Viviane de Melo Resende
Maria Carmen Aires Gomes

Introdução

As gramáticas normativas postulam a existência de Voz Passiva Sintética (VPS) em língua portuguesa, construção em que o pronome se dito apassivador liga-se a verbo transitivo direto. A norma gramatical classifica o sintagma nominal ou pronominal que segue o verbo, nesse caso, como sujeito da oração. A justificativa que se dá para o postulado é que o pronome se teria função análoga à do verbo auxiliar na voz passiva analítica. Daí chamar-se a construção pronominal de voz passiva sintética.

A postulação sintática traz implicações semânticas: segundo os gramáticos tradicionais, haveria uma equivalência de significado entre as duas vozes verbais ditas passivas. A equivalência das cargas semânticas das duas construções - sintética e analítica - é, entretanto, discutível.

Este trabalho é um recorte dos resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica (CNPq) cujo objetivo foi estudar o problema em sua perspectiva semântica, visando propor uma nova análise para as referidas construções. O corpus da pesquisa compõe-se de casos coletados na editoria Esporte da Folha de S. Paulo dos meses de janeiro a março de 1997. Uma vez catalogados os exemplos, foram analisados sob uma perspectiva semântica. Os pressupostos da Semântica Cognitiva serviram de base para o novo modelo de análise que aqui se apresenta.

A Perspectiva Lingüística

Sabe-se que a discussão dos gramáticos tradicionais acerca da existência de uma VPS em língua portuguesa é inadequada. Na superfície da postulação está a inadequação sintática: a chamada VPS do português não é síntese, pois conta com pelo menos dois vocábulos mórficos. Entretanto, é a inadequação semântica, na profundidade dessa discussão, que gera os principais problemas com relação à VPS.

A primeira questão semântica que se deve levantar é a da ausência de uma noção de passividade nas referidas construções. Outra questão que se observa inadequada nos postulados tradicionais é a suposta equivalência entre as vozes “passivas” sintética e analítica. Finalmente, há a inadequada determinação de que se deve classificar o sintagma posposto ao verbo na referida estrutura como seu sujeito paciente.

Ladeira (1986) aponta que a VPS existente no infectum latino não passou ao português; e a sintética do português, com o pronome se, é "pura invenção dos gramáticos...". Ilustra essa evidência com os exemplos Precisa-se de dinheiro emprestado e Procura-se dinheiro emprestado. No primeiro caso, com o verbo transitivo indireto, admite-se um sujeito indeterminado que precisa de dinheiro emprestado. Esse raciocínio, pelas normas gramaticais, não se aplicaria ao segundo caso, em que se classifica dinheiro emprestado como sujeito da oração. Entretanto, percebe-se claramente que há, também na segunda oração, a presença de um sujeito indeterminado que procura dinheiro emprestado.

Segundo Bagno (2000), a chamada VPS é o melhor entre os exemplos da incoerência da Gramática Tradicional. A discussão acerca da equivalência entre as duas vozes ditas passivas é, para este autor, indevida. Aquilo que a Gramática Tradicional considera desvio à norma - pela discordância com o suposto sujeito paciente da oração - é um recurso de que se utiliza o falante para atingir determinada significação em seu enunciado. Bagno aponta que a flexão do verbo no singular ou no plural é estreitamente dependente do significado que se pretende.

Discussão

Primeira etapa da pesquisa: implicações semânticas

A coleta de exemplos no jornal Folha de S. Paulo dos meses de janeiro a abril de 1997, comprovou a coexistência de estruturas que vão ao encontro da norma e de desvios ao postulado pela gramática. Os exemplos coletados totalizaram 29 casos, distribuídos em 17 ocorrências de norma e 12 ocorrências de desvio.

Observou-se claramente a existência de implicações semânticas na oposição Norma x Desvio. Os casos de desvio estudados traziam sempre noção de indeterminação do sujeito, e a postulação tradicional de equivalência entre as vozes passivas “sintética” e analítica mostrou-se inviável.

Assim, a indeterminação do sujeito nos casos de desvio à norma foi comprovada. Para ilustrar, foi selecionado um dos casos:

Em “...enquanto o Palmeiras arde numa daquelas fogueiras da vaidade que se julgava extintas...”, tem-se o verbo transitivo direto julgar com sujeito indeterminado pelo se índice de indeterminação do sujeito. O verbo fica no singular. Indeterminando o sujeito, o autor chama atenção para o julgamento: Julgava-se extintas aquelas fogueiras da vaidade - alguém ou todos as julgavam extintas - e enfatiza a presença de um sujeito responsável por esse julgamento e indeterminado na sentença.

Observa-se que a norma representaria uma alteração significativa com relação ao desvio. O falante, para atingir com maior eficácia a significação pretendida, opta pelo desvio gramatical - ainda que de forma inconsciente.

A inviabilidade da postulação de equivalência semântica entre as duas vozes ditas passivas do português também foi observada. Entre os casos estudados, selecionou-se uma ocorrência enfática na ilustração desse fato:

Em “Pesquisa de um instituto na Itália descobriu que, nas tardes e nas noites com transmissão de futebol pela TV, se esvaziam, pela ordem: os estádios, as pizzarias, os restaurantes, as sorveterias e as igrejas”, tem-se um caso de Voz Reflexiva Metafórica, com a ativação dos elementos “estádios”, “pizzarias”, “restaurantes”, “sorveterias” e “igrejas”, e conseqüente exclusão dos atores sociais.

A prescrição de equivalência não procede, pois a construção analítica - estádios, pizzarias, restaurantes, sorveterias e igrejas são esvaziados - pressupõe a existência de um agente responsável pelo esvaziamento dos estabelecimentos, ao contrário da construção dita “sintética”, que os exclui por supressão, em um processo de ativação. Claro está, ainda, não ser a significação expressa pela voz passiva analítica a pretendida pelo jornalista, uma vez que o tal agente, pressuposto nessa construção, não existe no processo descrito pela oração: ora, não há um agente que retire os consumidores dos estabelecimentos, esvaziando-os; são os próprios consumidores que deixam de ir.

Essa primeira etapa da pesquisa foi fértil em comprovar a existência de implicações semânticas na oposição Desvio x Norma e em refutar a postulação de equivalência entre a VPS e a voz passiva analítica.

Segunda etapa da pesquisa: papéis semânticos e metáfora

A segunda etapa dos trabalhos teve como pressupostos teóricos os papéis semânticos, especialmente os papéis de agente e paciente, e a metáfora segundo a teoria congnitivista. Essas teorias serão brevemente explicitadas.

Os papéis semânticos

Papéis semânticos são as relações de significado expressas pelas funções sintáticas em si. Dentre os diversos papéis semânticos, aqueles que apresentam real interesse a esta pesquisa são os de agente e paciente. Papel semântico de agente é aquele desempenhado pela entidade que provoca a ação denotada pelo verbo, e papel semântico de paciente é aquele que expressa a entidade diretamente afetada pala ação. Em orações reflexivas, o elemento agente comporta-se ao mesmo tempo como paciente.

A partir dos papéis semânticos, Perini (2000) postula a teoria que batizou de “Semântica dos Três Verbos”, tomando como exemplo os verbos quebrar, matar e comer. Esses verbos apresentam comportamentos semânticos distintos, embora sejam verbos transitivos diretos - assim como todos os verbos dos casos estudados neste trabalho.

Em sua discussão, o lingüista investiga alguns traços semânticos dos verbos em questão: quebrar exige a presença do paciente (“A vidraça quebrou”); matar exige um agente (“Onça mata”) ou um instrumento (“Faca mata”); comer exige um agente (“Maria comeu”). Dos três tipos de verbos levantados pelo autor, são interessantes a esta pesquisa os do tipo quebrar e do tipo comer, que exigem, respectivamente, paciente e agente.

A análise sistemática dos verbos presentes nos exemplos colhidos revelou que todos os casos de desvio ocorrem com verbos do tipo comer, e a maior parte dos casos de norma ocorre com verbos do tipo quebrar.

Dentre os 17 casos de norma coletados, 13 ocorrem com verbos do tipo quebrar - caracterizados pela exigência de um paciente -, são esses os casos de Voz Reflexiva Metafórica (VMR). Os outros quatro, que ocorrem com verbos do tipo comer, são casos de Voz Ativa com Sujeito Indeterminado (VASI).

A VRM somente acontece em casos com verbos que exigem paciente; com verbos que exigem agente, o que se observa é a indeterminação do sujeito. Assim, pode-se dizer que os casos estão em distribuição complementar semanticamente condicionada pelos tipos de verbo.

Os pressupostos da Semântica Cognitiva

A Semântica Cognitiva baseia-se no pressuposto de que há estruturas pré-lingüísticas chamadas esquemas imagéticos que dependem da experiência corpórea do indivíduo no mundo. O conhecimento humano, inclusive o lingüístico, baseia-se nessa experiência, da qual advêm os conceitos abstratos. Oliveira (2000) aponta que o eixo central da teoria cognitivista é compreender o significado como natural e experiencial, construindo-se a partir de nossas interações com o meio.

Nossas ações no mundo nos permitem apreender esquemas imagéticos espaciais que dão significado às nossas expressões lingüísticas. Esses esquemas são organizações sinestésicas diretamente apreendidas que carregam uma memória de movimentação ou experiência. Os principais esquemas imagéticos discutidos na Semântica Cognitiva são o CAMINHO (relacionado a nossa experiência com deslocamentos no espaço), o RECIPIENTE (relacionado à noção corpórea de “dentro-fora”) e o BALANÇO (relacionado ao jogo de forças).

Mas nem todos os nossos conceitos resultam de esquemas imagéticos. Há domínios da experiência cuja conceitualização depende de mecanismos de abstração. Esses mecanismos são a Metáfora e a Metonímia, processos cognitivos através dos quais estendemos nossos esquemas e categorias para além das nossas experiências físicas.

A metáfora tem um sentido especial na Semântica Cognitiva, pois esta se ancora na tese de que nosso falar, pensar e agir cotidianos são metafóricos. A metáfora preexiste à expressão lingüística, pois está relacionada com a compreensão do próprio pensamento. Sob o ponto de vista cognitivo, a metáfora é a compreensão de um domínio da experiência em termos de outro mais concreto. Assim, um domínio-fonte é mapeado para um domínio-alvo, e a metáfora define-se como esse mapeamento.

Evidente está que a metáfora conceitual estudada na Semântica Cognitiva não seria tradicionalmente classificada como tal. Na Lingüística Estrutural, a metáfora é um recurso retórico de enriquecimento, conceito que muito difere daquele que aqui se está discutindo.

A essência da metáfora é compreender um tipo de conceito em termos de outro, o que não iguala os conceitos, trata-se de uma estruturação parcial com base na linguagem. O conceito é metaforicamente estruturado no pensamento e conseqüentemente na linguagem. Logo, a metáfora não nasce na linguagem, ela reflete-se na linguagem porque existe em nosso sistema conceitual.

Lakoff & Johnson (1980) definem três grandes grupos de metáfora: a metáfora estrutural, a orientacional e a ontológica.

Na metáfora estrutural, conceitos são estruturados metaforicamente em termos de outros, como em “TEMPO É DINHEIRO”. A partir dessa metáfora, construímos orações como “você está gastando meu tempo”.

Na metáfora orientacional, conceitos recebem uma orientação espacial não-arbitrária, pois é baseada na nossa experiência física e cultural. Muitos dos nossos conceitos fundamentais são organizados em termos de metáforas espaciais. Exemplo disso são estruturas como Hoje estou me sentindo para baixo ou Pertenço a uma classe inferior/superior. Os mapeamentos dos esquemas imagéticos CAMINHO e BALANÇO são metáforas orientacionais. No primeiro caso, mapeia-se para o espaço um domínio diverso (como o estado emocional: João foi de mal a pior, ou o tempo: O feriado vai de segunda a quinta). No segundo, o esquema refere-se ao balanço corporal e pode ser mapeado, por exemplo, para um balanço de forças (como em Travou-se uma disputa entre a direita e a esquerda nas eleições).

Assim como a orientação espacial nos leva a metáforas orientacionais, nossa experiência física com objetos - em especial nosso corpo - nos fornece a base para uma variedade de metáforas ontológicas: maneiras de entender eventos, atividades, emoções, idéias como entidades e substâncias. Entender nossa experiência em termos de objetos e substâncias físicas nos permite identificá-la como entidades às quais podemos nos referir, categorizar, agrupar.

Os autores classificam a Personificação como o tipo mais óbvio de metáfora ontológica. Trata-se da compreensão de experiências com entidades não-humanas em termos das motivações, características e atividades humanas. Assim, em sentenças como O texto disse temos uma metáfora : o texto, pela lógica formal não poderia ser agente de dizer, mas pela lógica da subjetividade, assume esse papel. Sentenças como O vidro quebrou-se são igualmente metáforas, com a ressalva de que o mesmo elemento assume metaforicamente os papéis de agente e paciente, em uma reflexividade.

A metáfora é um modo de concepção de uma entidade em termos de outra; a metonímia difere da metáfora pois nos permite usar uma entidade para nos referirmos a outra, em uma função de referência. Mas não se trata de uma mera função referencial, há também a função de promover compreensão. Dependendo da entidade utilizada para estabelecer referência, estabelecem-se diferentes relações de sentido, a partir de características particulares. Por exemplo, em Há boas cabeças na universidade, a entidade cabeças não funciona apenas como referência, implica também na compreensão de pessoas inteligentes por cabeças, a partir da relação culturalmente estabelecida entre inteligência/cabeça.

Conceitos metonímicos, assim como conceitos metafóricos, não são questão de poética ou de retórica: são parte constituinte do nosso pensamento e ação cotidianos, permitindo-nos conceitualizar uma entidade em suas relações com outra.

A análise das metáforas conceituais

Os pressupostos explicitados envolvendo metáforas e metonímias conceituais são utilizados na análise de dois exemplos referentes à hipótese da VRM:

· “O que importa é o título. Se vencermos, todas as portas se abrirão...”

Metáfora Estrutural: A VITÓRIA É UMA PORTA ABERTA è o conceito vitória é estruturado metaforicamente em termos de porta (“Se vencermos, todas as portas se abrirão”)

Metáfora Orientacional: “...todas as portas se abrirão...” è mapeamento do esquema imagético CAMINHO (representação do abstrato pelo concreto - representação espacial)

Metáfora Orientacional: “Se vencermos...” è mapeamento do esquema imagético BALANÇO (do domínio espacial - balanço corporal - para o domínio abstrato: entre a vitória e a derrota)

Metonímia Conceitual: “as portas” è as oportunidades > “as portas”

A utilização da expressão “Se vencermos” pressupõe a existência de agentes responsáveis pela vitória ou pela derrota, logo, esses agentes seriam também responsáveis por abrir as portas das oportunidades. Mas na estrutura “...todas as portas se abrirão”, os atores sociais são excluídos, isentados dessa responsabilidade pela ativação de “portas”, elemento que se torna agente e paciente em uma reflexividade metafórica.

Observe-se que na expressão análoga As oportunidades virão a mesma operação de ativação ocorre com o termo oportunidades: é ativado em uma reflexividade metafórica, assim como em “...todas as portas se abrirão.”

A metonímia conceitual permite a referência da entidade abstrata pela concreta (oportunidades > “portas”), mas não é mera questão de referência: tem também função de promover a compreensão. Somente compreendemos essa metonímia porque temos em nosso sistema conceitual a metáfora estrutural A VITÓRIA É UMA PORTA ABERTA, o que comprova o caráter cultural e conceitual dos processos metafóricos.

· “Assim, sobrepõem-se sempre os interesses políticos, nunca os empresariais.”

Metáfora Ontológica: conceituação metafórica do evento em termos de objeto.

Metáfora Orientacional: Os interesses políticos estão posicionados acima dos empresariais è os conceitos recebem uma orientação espacial concreta que os posiciona como superior ou inferior.

Metáfora Orientacional: “...sobrepõem-se...” è mapeamento do esquema imagético CAMINHO (representação do abstrato pelo concreto - representação espacial).

Metáfora Orientacional: “...sempre os interesses políticos (...) nunca os empresariais.” è mapeamento do esquema imagético BALANÇO ( balanço de forças antagônicas)

Metonímia Conceitual: “...sobrepõem-se (...) os interesses políticos...” è pessoas que defendem determinados interesses (os sobrepõem a outros) > os próprios interesses (sobrepõem-se).

Na estrutura há metáforas orientacionais e ontológicas, além do processo metonímico. As metáforas orientacionais posicionam as entidades abstratas no espaço físico, como entidades concretas. Assim, os “interesses políticos” são orientados na sentença como superiores, e os “empresariais” como inferiores. O mapeamento do esquema imagético CAMINHO observa-se do domínio espaço para a abstração: o mapeamento de uma movimentação física concreta para entidades abstratas. Ainda como metáfora orientacional, tem-se o mapeamento do esquema imagético BALANÇO, aqui caracterizado como balanço de forças entre os “interesses” antagônicos.

A metáfora ontológica de conceituação metafórica é percebida na estrutura acima, pois o evento descrito é conceituado em termos de objeto; e a partir dessa conceituação, aceitamos como possível uma sobreposição dos interesses, assim como objetos podem ser organizados no espaço.

Através da metonímia conceitual - pessoas que defendem determinados interesses (os sobrepõem a outros) > os próprios interesses (sobrepõem-se) - há a ativação de “os interesses políticos” com a conseqüente exclusão dos atores sociais envolvidos nessa sobreposição de interesses. A ativação de “os interesses políticos” pelo processo metonímico acarreta em uma estrutura de VRM.

A representação dos atores sociais em casos de VRM

O lingüista Leeuwen (1997) desenvolveu amplo estudo sobre as representações dos atores sociais no discurso, e suas conclusões serviram de base para a discussão acerca de tais representações nos casos de VRM do corpus desta pesquisa. Segundo a teoria proposta pelo lingüista, a agência sociológica nem sempre é representada pela agência lingüística, pois não há uma co-referência exata entre as categorias sociológicas e lingüísticas. A língua pode, portanto, representar ações sociais impessoalmente, através de transferências de significado metafóricas e/ou metonímicas, como foi demonstrado na análise das metáforas conceituais.

Leeuwen (op.cit.) propõe um sistema de categorias através das quais se representam os atores sociais no discurso. Ele afirma que “as representações excluem atores sociais para servir os seus interesses em relação a quem se dirigem.” (op.cit.:180). Há dois tipos de exclusão dos atores sociais em representações: a supressão e a colocação em segundo plano. Este último caso ocorre quando os atores sociais excluídos são recuperáveis algures no texto, sendo possível a inferência pelo leitor. Já a supressão ocorre quando não há qualquer referência aos atores sociais na representação. A supressão não deixa, pois, marcas na representação, excluindo tanto os atores quanto suas atividades.

Os atores sociais podem também ser impersonalizados, representados por outros meios, como os substantivos abstratos ou os substantivos concretos cujo significado não inclui a característica semântica “humana”. O principal efeito da impersonalização - assim como da supressão - é encobrir a identidade e/ou o papel dos atores sociais; encobrindo-lhes por conseqüência a responsabilidade na atividade descrita, através da indeterminação ou da transferência da agência. Segundo Leeuwen (1997), a agência tem importância clássica na Análise Crítica do Discurso, pois a partir da análise da agência na representação dos atores sociais pode-se definir em que contextos eles são representados como agentes e pacientes.

O corpus desta pesquisa compõe-se de enunciados isolados, entretanto tentar-se-á aplicar a teoria discursiva de Leeuwen em dois casos aqui caracterizados como de VRM. O objetivo da análise que segue é procurar definir como se dá, nesses casos, a inclusão, exclusão ou impersonalização dos atores sociais.

· “O que importa é o título. Se vencermos, todas as portas se abrirão...”

® Em “O que importa é o título” tem-se exclusão dos atores sociais por supressão, a partir do apagamento dos beneficiários - importa a quem?

® Em “se vencermos” tem-se inclusão dos atores sociais, representados a partir de uma categorização: os atores são representados em termos de identidades partilhadas (nós). Tal categorização agrupa os atores em uma diferenciação, criando-se oposição entre nós e eles - se nós vencermos, eles perderão, e vice-versa.

® Em “todas as portas se abrirão” tem-se exclusão dos atores sociais por supressão; e conseqüente ativação de “portas” em metáfora cultural e espacial, como foi demonstrado.

· “Assim, sobrepõem-se sempre os interesses políticos, nunca os empresariais.”

® Em “interesses políticos (...) [interesses] empresariais” tem-se exclusão por supressão, a partir da utilização de adjetivos: interesses políticos > interesses dos políticos; interesses empresariais > interesses dos empresários.

® Em “sobrepõem-se sempre os interesses políticos, nunca os empresariais” tem-se ativação metafórica de “interesses políticos”, assim como de “[interesses] empresariais”, em conseqüência da exclusão supracitada, formando uma estrutura de VRM.

Conclusões

A partir deste estudo apresenta-se uma nova proposta para a descrição das estruturas tradicionalmente chamadas “passivas sintéticas”. Não havendo síntese nem passividade nessas construções, sua denominação constitui um equívoco.

Propõem-se duas diferentes análises para a classificação das estruturas. Essas classificações aliam a sintaxe à semântica, o que se acredita ser uma solução para se resolverem as incongruências da Gramática Tradicional.

A primeira classificação - já discutida entre os lingüistas - é que a chamada VPS é, em determinadas situações, caso de indeterminação do sujeito (VASI). Isso acontece quando o verbo da estrutura exige agente. Para essas orações, analisa-se o sintagma nominal posposto ao verbo como seu objeto direto, e o sujeito como indeterminado.

A segunda classificação - uma nova proposta - trata a chamada VPS como Voz Reflexiva Metafórica, em determinados casos, que estão em distribuição complementar aos casos da primeira classificação. A Voz Reflexiva Metafórica acontece quando o verbo da estrutura exige paciente. Nesses casos, analisa-se o sintagma nominal como sujeito e objeto simultaneamente, numa reflexividade que somente pode ser construída graças à lógica de subjetividade própria aos processos metafóricos, a partir do mapeamento entre diferentes domínios do conhecimento cognitivo dos falantes.

Deste modo, percebe-se que sob uma perspectiva semântica a chamada VPS não existe. Ela cede lugar ora à Indeterminação do Sujeito, ora à Voz Reflexiva Metafórica. Estas duas estruturas estão em distribuição complementar semanticamente condicionada pelos tipos semânticos de verbos. Ambas as construções são casos de voz ativa: a passividade em português somente se constrói pela forma analítica.

O estudo da representação dos atores sociais nos enunciados de Voz Reflexiva Metafórica não estava entre os propósitos iniciais desta pesquisa, entretanto, as hipóteses levantadas e analisadas no decorrer deste trabalho levaram a essa proposta teórico-metodológica. O objetivo do estudo de tais representações foi privilegiar uma abordagem crítica e discursiva que não poderia ser negligenciada, pois a descoberta da ativação de elementos “não humanos” nos enunciados apontava para a exclusão dos atores sociais nas representações, com a conseqüente redistribuição de atividades e papéis sociais - servindo aos propósitos e interesses dos produtores de tais enunciados com relação a seus leitores e ao tratamento dado à informação.

Referências Bibliográficas

BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

LADEIRA, J.D. Pronome se índice de indeterminação do sujeito ou se sujeito? - um tema para discussão. Revista de Letras. Fortaleza: UFC, 1986.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago and London : University of Chicago Press, 1980.

LEEUWEN, T.V. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E.R.Análise crítica do discurso - uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa : Editorial Caminho, 1997.

OLIVEIRA, R.P. Metáfora: uma breve aproximação. In: LEFFA,V.J.(compilador) TELA (textos em lingüística aplicada) [CDROM]. Londrina: Educat, 2000.

PERINI, M.A. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 2000.