A oração reduzida de particípio
em latim e português: o ablativo absoluto

Janaina Vogel Canete (UFF)
Márcia Figueiredo de Assis
(UFF)
Lívia Lindóia Paes Barreto
(UFRJ e UFF)

Introdução

Neste trabalho, teremos como objeto de estudo da oração reduzida de particípio (presente e passado) com enfoque no ablativo absoluto, sempre tentando estabelecer um elo entre o latim e o português, no que tange a função sintática na oração.

Muitos afirmam que o latim é uma língua morta. Se pensarmos sob o aspecto de uma língua imutável no tempo e no espaço, então, de fato, o latim não existe mais. Indo mais longe, se a condição para a existência de uma língua consiste na estabilidade de sua estrutura, conclui-se que nenhuma língua tem condições de existir, já que sendo inerente ao homem- ser eternamente mutável - encontra-se em um permanente processo de mudanças.

Partindo de conceituações propostas por Ernout, Said Ali, Celso Cunha e Ernesto Faria, direcionaremos nosso estudo para a verificação da permanência ou modificações na sintaxe da oração reduzida de particípio do latim até o português na tentativa de mostrar que o latim não está morto, ele apenas se modificou nas diversas regiões onde era falado resultando, assim, nas línguas latinas.

A origem do latim

Em seu primeiro momento, o latim era o simples falar de um povo que habitava a região do Lácio, situada ao centro da Itália. Devido a sua privilegiada localização de confluência entre vários povos, passou a exercer sobre estes grande influência. De uma conquista à outra, o inexpressivo Lácio tornou-se um dos maiores impérios do mundo. Destarte, uma nova visão da realidade se irradiou e se concretizou através da língua latina.

Como os demais idiomas, o latim sofreu um longo processo de elaboração até se tornar a língua erudita usada pelos escritores latinos do período de Cícero e Augusto. Através de estudos realizados no século XIX pelo filólogo alemão Franz Bopp, afirma-se que o latim, assim como muitas línguas asiáticas e européias pertence ao grupo das línguas ditas indo-européias. O indo-europeu teria dado origem a diversas línguas que com o tempo modificaram-se, porém conservaram semelhanças não só lexicais, mas também morfológicas. Sabendo que termos que se referem a relações de parentesco são um dos mais significativos para a lingüística comparada, usamos, como exemplo, as palavras “pai” e “mãe”, ambas com raízes indo-européia:

Línguas provenientes diretamente do Indo-europeu
Sânscrito: pitar/matar Grego:pater/meter Latim: pater/mater

Línguas latinas
Espanhol: padre/madre Italiano: padre/madre
Português: pai/mãe Francês: pére/mére

Línguas germânicas
Inglês: father/ mother Alemão: vater/mutter

Segundo Ernesto Faria, (in: Gramática da Língua Latina p. 17), “...não tendo permanecido do indo-europeu nenhum documento escrito, nenhuma inscrição, deve-se observar que o indo-europeu como idioma propriamente dito não existiu. O que há é um sistema de correspondências entre as chamadas línguas indo-européias. São essas correspondências, portanto, que sugerem a preexistência de uma unidade comum que se convencionou chamar de indo-europeu”.

Dessa forma, pode se supor a existência de tribos cujos dialetos possuiam alguma relação entre si e que, além disso, tinham características sócio-culturais em comum como: a prática da agricultura, a criação de bovinos e carneiros e o nomadismo pastoril. Pelos mesmos motivos que ocasionaram na disseminação do latim pelos diversos lugares onde havia o domínio romano, o indo-europeu também se ramificou e assumiu diferentes formas em cada região por onde as tribos passaram e/ou se estabeleceram.

Observando o mapa elaborado por pesquisadores da área de estudos clássicos da Universidade Federal do Paraná, é possível obtermos uma ilustrada idéia de como isso ocorreu.

As formas nominais do verbo

As Formas nominais do verbo são aquelas que por sua natureza morfológica se aproximam do nome, uma vez que se flexionam em número, caso e algumas vezes em gênero, tendo, assim, o valor aproximado de um substantivo ou adjetivo. Dentro da sintaxe latina, exercem um importante papel. São elas: o infinitivo, o particípio, o gerúndio, o gerundivo e o supino. Como o nosso objeto de estudo é a construção de ablativo absoluto, restringir-nos-emos aos particípios.

O Particípio

Assim como o infinitivo e o gerundivo, os particípios são formas verbais que funcionam como adjetivo, e possuem as categorias de gênero e número, concordando sempre com o substantivo. Como parte do verbo, o particípio possui tempos, voz e regência, sintática.

São três as formações essenciais do particípio latino:

Particípio presente -nt/ (-ns) Segue a 3a declinação
Particípio passado -to (-tus) Como os adjetivos de 1a.cls
Particípio futuro -urus,-ura,-urum Como os adjetivos de 1a.cls

Nosso enfoque se centralizará no particípio presente e passado, pois que o particípio futuro está ligado a outro campo sintático.

É importante observar que o particípio presente só tem a forma ativa e o particípio passado, semanticamente, pertence à voz passiva, sendo o principal elemento de sua estrutura frasal. Todavia, ambos funcionam, sintaticamente, como adjetivo ou como orações reduzidas. Na passagem para o português, houve uma redução e permaneceu apenas um tipo de particípio, ele tem origem no particípio passado latino e é utilizado com a finalidade de exprimir o estado resultante de uma ação acabada. Em certos casos, se flexiona em número e em gênero, uma continuação do latim. Vejamos exemplos em que os particípios funcionam como adjetivos em latim e português:

Infelix fatis exterrita Dido mortem orat. (Verg., En.,IV)

Aterrorizada pelos destinos, a infeliz Dido pede a morte.

Neste exemplo, podemos notar o valor do particípio tanto no campo morfolólgico quanto no semântico. Vemos que ele (exterrita) concorda com o substantivo Dido em gênero, caso e número. Além disso, o particípio aparece como conseqüência da ação provocada pelos destinos(os agentes), visto que a noção de paciente de uma ação - Dido - é bastante clara.

Amata nobis quantum amabitur nulla. (Catulo,O Cancioneiro de Lésbia, VII, 5)

Amada por nós como nenhuma outra será amada.

Mais uma vez, vemos a idéia de passividade do sujeito através do particípio “amada” e também pelo agente da ação (nobis = por nós) em ablativo. É possível constatar a idéia de comparação introduzida por “quantum” levando o verbo para a voz passiva expressa diretamente pela forma verbal “amabitur”. A diferença que podemos registrar é o abrandamento da consoante dental surda através do fenômeno da sonorização.

Perturbada pela umidade cheirosa, deitou-se...

(Clarisse Lispector, Laços de Família. 25a ed. p.139)

Nota-se que o particípio passado foi mantido no português, com o mesmo aspecto e com o mesmo valor que possuía no latim.

***

Ao contrário do particípio passado, o particípio presente trás em si o aspecto de uma ação que está em processo, ou seja, uma ação inacabada. Sintaticamente possui tanto um valor de adjetivo quanto o de uma oração subordinada adjetiva e morfologicamente, segue a 3ª declinação:

Cum suis uiuat ualeatque moechis,

Quos simul complexa tenet trecentos,

Nullum amans uere, sed identidem omnium

Ilia rumpens;

Vltimi flos, praetereunte postquam

Tactus aratro

(Catulo, Cancioneiro de Lésbia, XI)

Que ela viva e passe muito bem com seus amantes,

Os quais, trezentos, abraça ao mesmo tempo,

A nenhum amando de verdade, mas sem parar

Rompendo os rins de todos;

A flor, depois de tocada

Pelo arado que passava

Neste exemplo, encontramos três particípios, com funções distintas, onde os dois primeiros, como adjetivos, têm a função de adjunto adnominal do sujeito e o terceiro integra uma oração reduzida de particípio.

É possível encontrarmos o particípio presente declinado em outros casos, não estando preso apenas ao caso nominativo:

“...sed mulier cupido quod dicit amanti

In uento et rapida scribere oportet aqua.

(Catulo, Cancioneiro de Lésbia, LXX)

...mas o que a mulher diz ao amante apaixonado,

Convém escrever no vento e na rápida água.

É importante ressaltar que, na passagem para o português, embora, aparentemente tenha desaparecido, ele passa para o gerúndio ( em virtude de sua idéia de ação contínua) ou então permanece em diversos nomes de agentes, por exemplo: comandante (do verbo comandeo), gerente ( do verbo gero). Em alguns casos, tornou-se um adjetivo: comovente (do verbo comoveo), eloqüente (do verbo eloquor).

Ablativo Absoluto

Até o presente momento, constatamos determinadas funções que os particípios podem exercer em diversas situações dentro de uma sentença. Contudo, atestaremos seu uso em uma construção típica da língua latina: o ablativo absoluto. Essa oração é constituída basicamente de sujeito em ablativo e de um particípio presente ou passado também em ablativo. Tal oração é uma oração adverbial reduzida de partícipio. Veremos explícita, na maior parte da vezes, a idéia de tempo:

His rebus cognitis, Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit

(Cés., B.Gal., VII, 29, 1)

Conhecidas estas coisas, César motivou os animos dos Gauleses com palavras.

Cognito a Caesaris aduentu, Ariovistus legatos ad eum mittit.”

(Cés.,B.Gal.,I, 42, 1)

Sabida a chegada de César, Ariovisto enviou-lhe legados.

Interim puer Alexandrinus...luscinias coepit imitari clamante Trimalchione subinde: “Muta”

(Petr., O Satíricon)

Nesse meio-tempo, um escravo alexandrino começou a imitar os rouxinóis enquanto Trimalcião clamando: “Muta”

Haec dicente eo gallus gallinaceus cantauit.”

(Petr., O Satíricon)

Dizendo estas coisas, um galo cantou naquele lugar.

Tendo dito estas coisas, um galo cantou naquele lugar.

Conclusão

A partir desse trabalho, vimos que a língua portuguesa carrega em sua estrutura construções que nada mais são do que uma continuação de construções latinas que nos passam despercebidas. Muitos alunos de ensino fundamental e ensino médio encontram dificuldades no aprendizado do português no que diz respeito à função sintática, classe gramatical, concordância nominal e verbal. Conclui-se, portanto, ser importante a difusão do latim nos cursos de letras, pois como podemos ver, fatos gramaticais do português contemporâneo podem ser explicados através da língua latina. Desse modo, o aluno tem a possibilidade de perceber a razão de determinados fatos lingüísticos, que a princípio lhe parecem de grande dificuldade, ao serem explicados de forma científica.

Bibliografia

ALI SAID,M. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro: UNB, 2001.

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 6a.ed. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1976.

ERNOUT, A.,Thomas, F. Syntaxe latine. 2ª ed. Paris: C. Klincksieck, 1953. (Nouvelle Collection a l`Usage des Classes; 38)

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino português. 6a ed. rev. de Ruth Junqueira de Faria. Rio de Janeiro: FAE, 1985.

------. Gramática da língua latina. 2a ed. rev. de Ruth Junqueira de Faria. Brasília: FAE, 1995.

HAUY, Amini. História da lingua portuguesa I. São Paulo: Ática, 1989.