As tendências de ordenação
dos advérbios bem e mal
um processo de mudança?

Tatiana Reis Fontes Monteiro (UFRJ)

Introdução

O objetivo desse trabalho é elaborar uma análise diacrônica referente à polissemia que caracteriza os usos dos elementos bem e mal, a partir de uma análise realizada em três estágios da evolução histórica da nossa língua: português arcaico, português do século XIX e português atual. Buscamos, também, através da comparação desses três momentos, detectar as tendências de ordenação que caracterizam os usos desses elementos com valor de advérbios qualitativos, e apurar se houve ou não mudança no tempo, procurando explicações para o fenômeno observado.

Utilizamos as hipóteses descritas em Martelotta, Barbosa e Leitão (2001). Uma delas propõe que a posição pré-verbal - sobretudo entre o sujeito e o verbo - era disponível a todo o tipo de advérbio até o século XVIII, contrariando a tendência que vigora do século XIX em diante. Outra está associada ao princípio da iconicidade, ou, mais especificamente, o subprincípio da proximidade (Givón, 1990 e Ungerer e Schmid, 1999). Segundo essa hipótese, elementos que possuem relação semântica mais estreita tendem a ser colocados mais próximos na sentença. É o caso dos advérbios qualitativos, que, modificando a ação verbal, tendem a ocorrer próximos ao verbo.

Tendo como base o subprincípio da proximidade, classificamos as ocorrências registradas de acordo com a posição do advérbio em relação ao verbo e a ocorrência ou não de algum elemento entre eles. Tendo em vista esses critérios, enumeramos abaixo as possibilidades de colocação de bem e mal, sempre que possível apresentando exemplos:

Verbo / Advérbio

(1) "nõ lhe sabe bem o mel do ceeo..." (Bíblia Medieval Portuguesa)

(2) "...negligencia dos homees spirituaaes em guardar mal os livros que conteem..." (Orto do Esposo)

Advérbio / Verbo

(3) " ...aquelle que bem esina e mal uiue, parece que juta o bem co o mal e mestura a luz co as treuas..." (Orto do Esposo, p. 116)

(4) "... não poupa sacrificios para bem cumprir seos deveres..." (Diario de Minas no. 414. Ouro Preto, 23/02/1875)

Verbo / X / Advérbio

(5) “... çarrou a porta da camara muy bem...” (Bíblia Medieval Portuguesa)

Advérbio / X / Verbo

(Não foram encontradas ocorrências)

Achamos importante registrar aqui algumas informações relevantes sobre essas posições:

a) Consideramos X qualquer elemento lingüístico que tenha ocorrido entre os advérbios e o seu escopo verbal. Não consideramos como X advérbios que se referem a bem e mal, como, por exemplo, muito no sintagma muito bem/ mal, e os clíticos, que, por sua natureza, ocorrem obrigatoriamente mais perto do verbo;

b) Também não consideramos importante para a análise dessas posições a presença de preposições, conjunções e pronomes relativos. Portanto, cláusulas principais e subordinadas (iniciadas por conectivo) foram distribuídas indistintamente pelas posições acima enumeradas.

Os usos dos elementos bem e mal

Estamos focalizando, neste trabalho, os usos de bem e mal que desempenham função de advérbio qualitativo, assim como os usos que se desenvolveram desses valores adverbiais por processo de gramaticalização: aqueles que desempenham função de operador argumentativo.

Os usos com valor de advérbio qualitativo

Sob a denominação de advérbio qualitativo, consideramos as palavras que se juntam a verbos, para exprimir a circunstância de modo. Vejamos exemplos:

(6) "... aí você arruma um empreguinho aqui... aí você começa a ganhar bem... aí você pára e fala assim “não..." (Corpus D & G).

(7) “... a faculdade está sem dinheiro para manter a instituição... os professores estão recebendo mal... ganhando mal... eh::... tem muito centro acadêmicos que estão fechando...” (Corpus D & G).

Os advérbios, embora tenham como principal função a caracterização dos processos verbais, são também empregados em relação a adjetivos e a outros advérbios, como modificadores do sentido expresso por eles:

(8) "O lugar que eu mais gosto de ficar é na minha casa de praia, porque lá eu levo a minha prima, e de manhã, eu e a minha prima acordamos de manhã bem cedo e vamos para a praia..." (Corpus D & G).

Cumpre assinalar que esta função do advérbio foi muito produtiva nos corpora analisados. Entretanto, não estamos focalizando, neste trabalho, os usos referentes a adjetivos ou a outros advérbios. Como os dados indicam que só houve mudança em relação à colocação desses advérbios como modificadores do verbo, centramos nossa análise nestes casos.

Os usos com valor de operador argumentativo

Um dos fatores que dificulta a classificação dos elementos lingüísticos advém do fato de a linguagem não ser exatamente de natureza lógica. As realizações do discurso escapam ao que chamamos esquemas lógicos de classificação.

Ao falar, o usuário da língua recategoriza itens, levando-os, algumas vezes, a assumir valores não previstos no elenco de classes de palavras tradicionalmente indicado pelas gramáticas. Tais expressões são carregadas de significação e emotividade, acrescentando, ao enunciado, dados informativos ligados à opinião, aos sentimentos do emissor da mensagem, ou simplesmente denotando a hesitação envolvida no dinâmico processo de elaboração do discurso, nem sempre se integrando, contudo, à estrutura sintática da oração. Se estas expressões forem eliminadas, porém, a comunicação se esvazia de informações associativas às marcas enunciativas do falante em seu ato de fala e o seu significado geral se altera.

Esses elementos típicos do discurso, os quais chamamos aqui de operadores argumentativos, são usados pelo falante como estratégias de valoração de seu discurso e estão diretamente associadas ao grau de argumentação que se quer dar ao enunciado.

Vejamos exemplos:

(9) "... o juiz eh... pediu para quem que eu que/ queria ficar... com meu pai ou com minha mãe... aí eu falei assim “com a minha mãe...” aí ele falou assim... aí o juiz falou assim “então você vai ficar com ela... você vai passar um dia com seus pais... e depois com suas mães/ sua mãe...” aí eu falei assim “tá bom...” aí eu falei assim “mas eu não vou ficar com ele não... né?” eu/ aí ele falou assim... aí o juiz “não...” eu falei assim “então tá... obrigada...” aí eu... aí eu peguei... aí... quando eu saí... ele querendo/ aí ele bem... foi pro outro corredor... eh... pegou... puxou o braço da minha mãe... eh deu um soco no... no olho da minha mãe... eu peguei eu jo/ peguei/ eu fui/ (ele some) aí minha mãe mandou eu correr... eu saí correndo... aí... depois chegou o guarda... o guarda pegou... e botou ele... ele... botou ele perto do juiz pra ele falar tudo... que ele fez com a minha mãe... " (Corpus D & G)

O elemento bem, nesse contexto, enfatiza a situação expressa pelo verbo, criando uma idéia de contra-expectativa, no sentido de que a atitude do pai naquela situação era inesperada e até mesmo inaceitável. Martelotta e Alcântara (1998) caracterizaram esse uso como marcador de veracidade, uma vez que está mais voltado para as expectativas do ouvinte em relação ao que está sendo falado, do que para a estrutura sintática interna da cláusula.

(10) "Um conhecido meu foi jantar na casa da noiva, era o primeiro jantar com a família toda reunida, foi servido bife, sendo que o Ricardo não gostava muito de carne e ainda por cima o bife estava duro, que mal dava para partir." (Corpus D&G)

Para Silva e Silva (2001), em casos como este, o advérbio mal perde seu valor original qualitativo (=de modo ruim) em função do valor de restrição/negação (= sequer, quase não), de caráter argumentativo.

Resultados

A fim de atingir os objetivos propostos, coletamos amostras das três fases da língua analisadas, observando cada dado isoladamente, e, a partir do levantamento de um considerável número de ocorrências, comparamos as amostras obtidas, com o intuito de apurar tendências gerais que atuam sobre os elementos estudados, nas diferentes sincronias.

Como corpora utilizamos os textos arcaicos Bíblia Medieval Portuguesa, organizado por Serafim da Silva Neto, Livro das Aves, orientado e dirigido por Nelson Rossi e O Orto do Esposo, de Maler (1956), comparando, mesmo que de forma indireta, a performance desses elementos nas diversas fases do português. Para o século XIX, foi utilizado o corpus do PHPB.

Nossa análise, apesar de ter respaldo quantitativo, é de caráter mais qualitativo, uma vez que os dados referentes ao nosso foco de análise - os advérbios bem e mal que apresentam como escopo o verbo - ocorreram pouco nos corpora analisados. A grande maioria das ocorrências desses itens constitui casos de substantivo e de advérbios referentes a adjetivos e a particípios.

O elemento “bem”

Os textos analisados nos três estágios da língua apresentaram um total de 329 ocorrências de bem com função adverbial e argumentativa: 109 no português arcaico, 57 no português do século XIX e 163 no português atual. Não estamos analisando os casos em que o advérbio se liga a outros advérbios, particípios ou adjetivos por estes casos terem apresentado estabilidade, no que diz respeito a sua colocação na sentença: ocorreram, invariavelmente, antes do seu escopo.

Quadro geral das posições apuradas

Posições Português Arcaico Português século XIX Português Atual
S Bem V 6 (5,5%) 3 (7%) 1 (0,9%)
Bem V 47 (43,1%) 22 (51,2%) 1 (0,9%)
V Bem 49 (45%) 17 (39,5%) 95 (89,7%)
V S Bem 2 (1,8%) - 4 (3,8%)
V X Bem 5 (4,6%) 1 (2,3%) 5 (4,7%)
Total 109 43 106

Tabela 1: Distribuição dos usos de bem pelas posições apuradas

De acordo com a proposta de Martelotta, Barbosa e Leitão (2001), era esperado, no português arcaico, que a estrutura Bem / Verbo ocorresse mais freqüentemente do que a estrutura Verbo / Bem. Entretanto, os dados apurados revelam certa equivalência quantitativa entre as duas posições. Também era esperado que, no português do século XIX, encontrássemos menor freqüência da estrutura Bem / Verbo, o que não ocorreu, já que, nesta fase, 51,2% dos casos ocorreram em posição Bem / Verbo, enquanto que, na fase arcaica, ocorreram 43,1%. Esses resultados aparentemente contrariam a hipótese de que partimos, entretanto, eles se referem aos usos de bem como advérbio e operador argumentativo. Como veremos adiante, muitos dos casos de Bem / Verbo, tanto no português arcaico quanto no século XIX, constituem casos em que o elemento em estudo contrai função argumentativa.

É interessante registrar a presença de ocorrência do elemento bem entre o sujeito e o verbo (S / Bem / V). Entre as 6 ocorrências de bem nesta posição, 3 funcionam como advérbio qualitativo, o que não ocorre no século XIX e na fase atual, cuja única ocorrência apresenta função argumentativa, como veremos a seguir. Isso aponta para uma maior tendência na fase arcaica para a ocorrência desse advérbio nessa posição.

No português atual, os dados apurados mostraram-se favoráveis à nossa proposta, já que a posição com o advérbio anteposto, com escopo verbo, demonstra estar quase indisponível. Nesta fase, o elemento bem apresentou uma grande quantidade de usos argumentativos, ou seja, não propriamente integrados à estrutura sintática da oração, mas à estrutura argumentativa do discurso.

É bom acrescentar que esses resultados se referem a um levantamento preliminar feito no corpus Discurso & Gramática, que apresenta textos escritos e também orais. É provável que o fato de terem sido observados textos orais tenha influenciado os resultados.

Se levarmos em conta que os usos catalogados de bem ora desempenharam função de advérbio, ora de operador argumentativo, teremos resultados diferentes dos já apurados até agora. Vejamos uma análise diferenciada desses dois usos de bem.

O elemento bem e suas funções

Analisaremos nesta seção a distribuição da posição do elemento bem, de acordo com a função desempenhada por ele.

 

 

 

  Português Arcaico Português Séc XIX Português Atual
Funções advérbio operador Advérbio operador advérbio Operador
S Bem V 3 (4,4%) 3 (7,3%) - 3 (12,5%) - 1 (11,1%)
Bem V 13 (19,1%) 34 (82,9%) 6 (31,6%) 16 (66,7%) - 1 (11,1%)
V Bem 45 (66,2%) 4 (9,8%) 12 (63,1%) 5 (20,8%) 88 (90,7%) 7 (77,8%)
V X Bem 7 (10,3%) - 1 (5,3%) - 9 (9,3%) -
Total 68 (100%) 41 (100%) 19 (100%) 24 (100%) 97 (100%) 9 (100%)

Tabela 2: Distribuição das funções adverbial e argumentativa de bem

No que se refere à estrutura Bem / Verbo, no português arcaico, 82,9% dos casos aparecem com o elemento bem assumindo função de operador argumentativo, enquanto que em apenas 19,1% ele aparece com sua função adverbial prototípica. O português do século XIX reafirma a tendência de antepor o elemento bem ao desempenhar função argumentativa - 66,7% dos dados referentes a esse uso estão na posição Bem / Verbo. Com a análise desses dados podemos concluir que o elemento bem na posição pré-verbal parece estar propenso a assumir função argumentativa.

Já na estrutura Verbo / Bem o elemento parece tender a aparecer assumindo a função prototípica de advérbio, tendência que se evidencia no português arcaico e que se reafirma nas duas outras fases analisadas.

No português atual, como já dissemos anteriormente, identificamos também uma outra tendência para esse elemento, mais associada ao processo de elaboração do ato de fala, do que propriamente à estrutura sintática da oração.

No que se refere à função adverbial do elemento bem, os dados da tabela 2 indicam que o português arcaico parece já apresentar tendência a sua posposição, mas que não deixa de disponibilizar a posição pré-verbal, o que favorece a proposta desenvolvida por Martelotta, Barbosa e Leitão (2001).

Pudemos perceber, também, que, com o progredir do tempo, a posição pós-verbal se firmou como sendo a posição na qual há mais probabilidade de ocorrer casos do advérbio bem com seu valor prototípico, chegando até a praticamente não mais ocorrer, no século XX, em posição pré-verbal.

As estruturas Advérbio / Verbo catalogadas freqüentemente apresentam sujeito não explícito (oculto, indeterminado ou expresso por pronome relativo), mas que pode ser recuperado pelo contexto em que se encontra, ou, em menor grau de freqüência, se apresentam em estruturas do tipo Advérbio / Verbo / Sujeito.

O elemento mal

A análise demonstrou que, ao longo do tempo, no que se refere à polissemia que caracteriza os usos do mal, esse elemento apresenta uma forte tendência de manter basicamente os mesmos valores em ambos estágios analisados. Entretanto, os dados analisados sugerem o surgimento de novos valores gramaticalizados a partir do século XIX. Trata-se dos usos de mal com valor negação/restrição e com valor de conjunção temporal.

Como exemplo de valor de negação/restrição apresentamos o exemplo (10), aqui repetido como (11):

(11) "Um conhecido meu foi jantar na casa da noiva, era o primeiro jantar com a família toda reunida, foi servido bife, sendo que o Ricardo não gostava muito de carne e ainda por cima o bife estava duro, que mal dava para partir." (Corpus D&G)

Como foi dito anteriormente, em casos como este, o advérbio mal perde seu valor original qualitativo (=de modo ruim) em função do valor de restrição/negação (= sequer, quase não), de caráter argumentativo.

As gradações da idéia expressa por esse elemento dependem do contexto em que ele está inserido. Em alguns casos, o valor de restrição pode se efetivar, por pressão do contexto, em uma negação propriamente dita. Silva e Silva nos fornece o seguinte exemplo:

(12) “Lá vai Paula toda feliz com o namorado. Mal sabe ela que ele dá em cima de todo mundo.” (SILVA E SILVA, 2002: 40)

No exemplo (12), pode-se perceber um sentido mais negativo atribuído ao contexto pelo elemento mal, uma vez que o próprio contexto se incumbe de pressionar a interpretação de que “Paula” efetivamente desconhece que “o namorado dá em cima de todo mundo”.

Silva e Silva (2002) não encontrou, no português arcaico, usos de mal com valor de conjunção temporal. O primeiro uso registrado pela autora foi retirado de uma peça popular, do século XIX, do corpus PHPB-Rio:

(13) Viva, viva o Senhor Cabo,

Que em sossego nos deixou,

Mal que vio o ar toldado,

Com os cachimbos abalou. /sic/

(Peça Popular, dos Textos Literários, século XIX, PHPB-Rio)

Também não encontramos nos nossos corpora esse uso de mal que, entretanto, não é incomum no português atual. Eis um exemplo inventado:

(14) Mal saiu de casa começou a chover.

Esses resultados apontam para o fato de que há aspectos do uso de mal que, por algum motivo, não mudam, permanecendo estáveis ao longo do tempo desde o latim. Esses aspectos, pelo menos aparentemente, estão relacionados à polissemia do elemento, ou seja, às tendências que esse elemento apresenta de estender seus usos para englobar um conjunto determinado de funções, através de processos metafóricos ou metonímicos. Entretanto, o fato de não terem sido encontrados os usos mais gramaticalizados em textos arcaicos pode ser um indício de que esses usos surgiram na nossa língua em épocas posteriores, o que aponta para uma mudança ao longo do tempo.

No que se refere à questão da ordenação do elemento mal, a análise não nega a validade das propostas de Martelotta, Barbosa & Leitão (2001), já que demonstrou a existência de ocorrências de mal em posições pré-verbais, o que aponta para uma possibilidade de colocação desse elemento na cláusula mais livre, no português arcaico, do que verificada em outras sincronias da língua portuguesa.

A perda dessa liberdade de ordenação é percebida, nos dados, a partir do século XIX, época em que, provavelmente, surgiram outros usos gramaticalizados do advérbio mal: conjunção temporal e restrição / negação. Nessa fase da língua portuguesa, a posição pré-verbal, até então disponível ao advérbio analisado, passa a ser específica para esses novos valores, tornando-se, desse modo, indisponível para o uso de mal com valor qualitativo.

Com relação à segunda proposta de Martelotta, Barbosa e Leitão (2001), que diz respeito ao subprincípio da proximidade, relacionado à hipótese da iconicidade (Givón: 1990 e Ungerer & Schimid:1999), constatamos, também, a sua validade, já que, praticamente em todos os casos observados, mal aparece ao lado do verbo. Só foi encontrada uma ocorrência desse item separado do verbo por algum elemento lingüístico (verbo / x / mal) e nenhuma (mal / x / verbo).

Conclusão

Este trabalho se propôs a estudar o comportamento dos itens lingüísticos bem e mal: suas funções e, sobretudo, a maneira como tendem a ser colocados na cláusula, quando assumem função de advérbios qualitativos modificadores de verbos. Procuramos perceber tendências de usos assumidos por bem e mal, do português arcaico ao português do século XIX, buscando verificar o que há de estabilidade ou regularidade e o que há de mudança.

O elemento bem parece cumprir duas tendências de mudança: uma estaria relacionada ao processo de gramaticalização modo > texto (Martelotta: 1994), que leva o advérbio a assumir valor de operador argumentativo; a outra estaria associada à especialização da posição pós-verbal aos usos com valor de advérbio. Contudo, as duas tendências parecem estar associadas, pois o fato de o uso como operador tender às posições pré-verbais parece levar os usos como advérbios qualitativos a ocupar as posições pós-verbais.

No que se refere à questão da ordenação dos advérbios bem e mal, a análise corrobora com a proposta de Martelotta, Barbosa & Leitão (2001), já que demonstrou a existência, no português arcaico, de ocorrências desses advérbios entre o sujeito e o verbo, o que aponta para uma possibilidade de colocação desse elemento na cláusula mais livre, no português arcaico, do que a verificada em outras sincronias da língua portuguesa.

Segundo Martins Sequeira (1943: 197-8), a tendência do português arcaico é realmente ser mais livre do que o português atual na escolha do lugar que atribui a cada elemento da frase. O que justifica a ocorrência, embora única no corpus do qual dispomos, de estruturas em que o advérbio se encontra em posição distante do verbo a que se refere:

(15) “... se vós fezestes dereitamente com Gedeon, e com seus filhos, faça-vos Deus dereitamente, e bem...” (Bíblia Medieval Portuguesa) - (estrutura: verbo / x / Advérbio)

Com a análise dos dados, verificamos que, no percurso da fase arcaica para o século XX, há indícios de que os advérbios começam a assumir posições de acordo com a sua função, ou seja, a posição pré-verbal, que no português arcaico poderia ser preenchida pelo elemento lingüístico assumindo tanto sua função prototípica, quanto sua função mais argumentativa, parece estar sendo disponibilizada apenas para a função mais ligada ao discurso.

A maior freqüência de estruturas do tipo advérbio V e V advérbio reforça a hipótese do sub-princípio da proximidade (princípio da iconicidade) de que elementos que têm ligação semântica mais estreita tendem a aparecer mais próximos na sentença.

Em relação à função dos itens lingüísticos em estudo, a análise demonstrou que há uma forte tendência à estabilidade no que diz respeito a sua polissemia. Ou seja, nos estágios enfocados neste trabalho, português arcaico, português do século XIX e português do século XX, os elementos apareceram assumindo as mesmas funções: prefixo, substantivo, adjetivo, advérbio. No que diz respeito à função de caráter mais discursivo assumida pelos elementos estudados, o item bem já apresenta, desde o português arcaico, uma tendência que vai se confirmando em estágios posteriores; já com advérbio mal, como ressalva Silva e Silva (2002), os valores gramaticalizados, como os de conjunção temporal e de mal com valor de restrição/negação, e parecem ter surgido na língua portuguesa por volta do século XIX.

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