O TERMO AGORA
PROTOTIPICALIDADE E FUNCIONALIDADE

Fernanda Costa Demier Rodrigues

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a gramaticalização do termo agora. Acredita-se que este item, cujo uso tradicional vincula-se à categoria de advérbio de tempo, passa a ser usado com outras funções. Esta trajetória evidencia-se, num primeiro momento, com a ampliação da referência temporal do momento presente para momento futuro ou para o passado. Além desse desdobramento temporal, o termo vai abandonando características de sua categoria prototípica básica, aumenta o seu escopo e passa a exercer uma função mais discursiva como conector clausal ou operador discursivo.

Todos estes usos estão presentes não só em textos sincrônicos, mas também diacrônicos. Neste contexto, há indícios para crer que as funções assinaladas na sincronia atual não constituem novos usos, mas sim representam usos já utilizados em sincronias anteriores. Em outras palavras, como já afirmaram Votre at alii (2000) e Ferreira (2000) pesquisando outros itens, há uma estabilidade funcional no uso do item agora.

Logo, parte-se das hipóteses de que:

a-O advérbio temporal agora passa por um processo de gramaticalização que amplia seu uso temporal presente para referências passadas e futuras, assim como passa a ser utilizado de forma mais discursiva. Deste modo, poder-se-ia dizer que agora, cujos traços tradicionais seriam [+referência presente], [+ circunstanciação] e [+mobilidade] adquiriria configurações, de um lado, [+referência passada] ou [+referência futura] e, de outro, a partir do traço [+aumento de escopo] passaria a ser [+conector] ou [+operador discursivo].

b-A gramaticalização do termo agora apresenta um processo de transformações com ocorrências diferenciadas de seu uso canônico presentes em várias sincronias desde o latim, assinalando, assim, uma estabilidade funcional no uso do item.

Corpus

Os corpora desta pesquisa são compostos por obras de quatro sincronias distintas (latim, século XII ao XIV, século XV ao XVI e século XX). A escolha de diferentes sincronias teve como objetivo apresentar a possível trajetória do termo desde seu uso arcaico até suas ocorrências atuais.

Nos corpora diacrônicos observou-se, na sincronia latina, a obra Amphitrvo, de Plauto, por se levar em consideração que, sendo uma peça teatral, esta poderia se aproximar mais da oralidade.

As amostras do português arcaico (século XII ao XIV) foram levantadas em Nunes (1981), que traz obras em prosa e verso do século XII ao XVI. Para a busca de ocorrências no português moderno (séculos XV e XVI) observaram-se, além do autor referido anteriormente, peças de Gil Vicente (Auto da Alma -1508- e Auto da Chamada Mofina Mendez -1534).

Nos corpora sincrônicos, levantaram-se dados do corpus Discurso e Gramática - a língua falada e escrita no Brasil (corpus D&G), composto tanto por textos orais quanto escritos, das seguintes cidades: Rio de Janeiro, Niterói, Rio Grande e Juiz de Fora. Este material tem maior incidência de registros orais do que escritos e também possui informantes com no máximo nível universitário incompleto. Para que se pudesse cobrir a defasagem de textos escritos e orais em norma culta padrão existente no corpus já selecionado, procurou-se analisar, respectivamente, 20 editoriais dos jornais Jornal do Brasil e Folha de São Paulo do período de 15/11/94 a 31/12/94, além de um inquérito do NURC (Norma Urbana Culta do Rio de Janeiro) do tipo D2 - diálogo entre dois informantes.

Gramaticalização de agora

O item agora, originário do latim vulgar, tem, primordialmente, referência temporal. Notam-se, no entanto, indícios de ocorrência de um processo de gramaticalização do termo.

A primeira observação relevante de que o processo ocorre pode ser assinalada na sua própria origem latina. Agora significava neste momento e, nesta estrutura, não se pode deixar de observar a referência dêitica do pronome demonstrativo neste. Logo, o termo já se relacionava a uma função locativa temporal no seu uso latino. Posteriormente, em português, agora remete, principalmente, ao momento presente. Nota-se, também, uma evolução do termo para o campo discursivo. Neste contexto, agora exerce função de conector ou operador discursivo. Confirma-se, com isso, a trajetória básica da gramaticalização: espaço > tempo > discurso.

Outra característica da trajetória é o uso do item de forma cada vez mais abstrata e mais fixa na língua. Ocorrendo com função discursiva, o termo perde algumas restrições de sua categoria-fundante como, por exemplo, a possibilidade de movimentação no enunciado. Com isso, passa a ocorrer na posição mais freqüente dos conectivos, ou seja, servindo de elo entre as idéias apresentadas no contexto em que está inserido.

Pode-se notar, também, que, nesta trajetória, há um aumento de escopo. O nosso objeto de estudo, possui sua referência limitada, geralmente, ao verbo. Com o seu uso como conector, por exemplo, o seu escopo é aumentado, abarcando uma fatia maior do enunciado em que está inserido.

Outro ponto relevante, neste tópico, é o fato de que foram buscados, no levantamento e na análise de dados, os termos ora e agora. Esta opção foi feita por conta da própria evolução do termo nunc:

Nunc   ac hora > agora hora > ora, hora

Nunc deu origem a ac hora e hora e, posteriormente, a agora, ora e hora. Pelo fato de hora com h ter seu uso muito restrito à referência temporal, em contraste a agora e ora, que apresentam usos mais variados, deu-se preferência a estes últimos para a análise do corpus. Neste contexto, observou-se, ainda, que ora foi muito mais constante nas ocorrências diacrônicas e agora nas sincrônicas. Acredita-se que ora seja mais discursivo e agora mais temporal no português arcaico. No português atual, contrariamente, agora estaria sendo usado mais discursivamente e estaria tomando o antigo lugar de ora.

Análise de dados

Quando o agora prototípico perde seu traço [+referência presente], o item pode adquirir o traço [+referência passada] ou [+referência futura]. Em ambos os usos não há a total desvinculação com o momento da fala. É a partir deste que os outros traços se estabelecem, pois o agora funciona como um ponto referencial que possibilita o surgimento de outros usos.

Deve-se assinalar, então, que os dois pontos - passado e futuro - são identificados em relação ao momento em que o falante está inserido, pois se nota que são eventos próximos à situação de fala. Não se pode deixar de atentar, também, para a referência temporal que o verbo propicia ao contexto, haja vista que, sendo agora, canonicamente, um advérbio, acompanha preferencialmente o verbo. Logo, se este pode ter sua referência temporal diferenciada (presente, passado ou futuro), aquele terá, conseqüentemente, funcionalidade variada conforme a forma verbal presente no enunciado. Neste tópico, apesar da perda do traço [+referência presente] e da aquisição do traço [+referência passada] ou [+referência futura], os traços [+mobilidade] e [+circunstanciação] permanecem. Os seguintes exemplos podem ser levantados com o traço de [+referência passada]:

a)Nunc hoc me orare a irobis iussit Iuppiter (= Agora Júpiter me ordenou que pedisse a vocês isto. Amphitrvo / Sincronia latina).

b)... o MAC está em cima... embaixo tem... um... um::/umas cavernas... que eu gosto de ficar olhando... embaixo do museu... depois você desce... continu/ eh:: agora a prefeitura... gramou... fez um::jardim legal ali...(oral/DL/ Ensino superior/ D&G Niterói/ Sincronia do século XX)

Em relação ao traço [+referência futura] podemos exemplificar:

a)Ó Alma bem aconselhada,

que dais o seu cujo é,

o da terra a terra,

agora ireis despejada

pela estrada

porque vencestes com fé

forte guerra.

(Auto da Alma, Gil Vicente/Sincronia do século XV ao XVI)

b)ele não gostava de mim... tanto é que ele pediu para namorar com minha irmã... que não ia adiantar eu ficar :: chorando( ) aí passou... (daí) até hoje minha irmã está namorando com ele... já são/ vai fazer um ano agora dia treze... de abril... né? (NEP/8ª série do Ensino Fundamental/ D&G Niterói/ Sincronia do século XX)

Dada a variedade de tratamento fornecido pelos autores citados acerca do conceito e das funções de operador argumentativo, operador discursivo, marcador conversacional e conectivo, propõe-se, nesta pesquisa, que, ao deixar de ser circunstanciador, o termo agora pode migrar para duas classes: a dos conectores, formando um grupo de recursos voltados para a conexão de idéias no enunciado que, equivalendo-se às tradicionais conjunções, exercem, como estas, função adversativa, aditiva e/ou conclusiva; ou a dos operadores discursivos, numa função mais pragmática, voltada para a construção textual-interativa.

Em relação aos conectores utilizados para o estabelecimento de relações lógico-semânticas do enunciado, podem ser identificados os seguintes tipos, assim nomeados no âmbito deste trabalho:

conectores de seqüencialização - marcam tanto a seqüência do discurso quanto a adição de fatos que propiciam a continuidade do texto;

a) Pegue um prato e vidro, e deixe separado. Agora, pegue uma panela com água (1 copo), e ferve e assim de fervido jogue o conteúdo, e vai mexendo até dissolver. Depois de dissolvido, jogue mais 1 copo de água gelada e depois é só botar na geladeira. Mas antes disso, você deixe um pouco fora da geladeira para esfriar um pouco. Porque não é muito bom deixar coisas muito quente na geladeira. Porque ela trabalha mais. Já está pronta a gelatina! (D&G Rio de Janeiro/RP/escrito/4ªsérie do Ensino Fundamental).

conectores de contrajunção - ligam idéias, segmentos ou estruturas que se de certa forma se opõem;

b) Pois que ia uymos os exemplos do mal, aprendamos agora os louuores do bem... (Crestomatia Arcaica/escrito/ séc.XV)

conectores de causalidade - dão um fecho à idéia desenvolvida pelo falante, apresentando uma conclusão ou conseqüência para o discurso apresentado.

c) Nunc de Alcmena ut rem teneatis rectius (Agora (=assim) para que sabeis a situação de Alcmena) (latim/Amphitrvo)

No que diz respeito aos operadores discursivos, estes assinalam relações textuais- discursivas nos enunciados, propiciando a reorinetação do discurso em funções variadas:

iniciar o desenvolvimento de um tópico novo, quer seja após um comentário inicial, quer na troca de um tópico por outro;

a) Andréa... agora... eh::... o último::/ a última coisa que eu vou te pedir... é que você me dê a opi/ a sua opinião sobre um assunto que te chame atenção... a gente tinha conversado antes... e:: você já deve ter pensado... mais ou menos sobre o que você vai falar... você me dá a sua opinião sobre isso... (D&G Juiz de Fora/oral)

substituir um tópico maior por um menor (sub-tópico), ou vice-versa;

b)...quanto à... à política... não tenho/ não tem como explicar eh... a vida está... tudo caro... né? pra mim... pro Brasil sair... dessa crise... acho que... sabe? só:: só milagre... agora... esse presidente Itamar Franco... sabe? está fazendo alguma coisa... né? agora... política... acho que... sabe? todos eles... sinceramente... são uma cambada de ladrões... que adoram... sabe? pegar dinheiro... dos outros sabe eh:: fazer... sacanagem... fazer troço assim...(D&G Rio de Janeiro/ oral/ Ensino Médio)

focalizar um tópico do enunciado apresentando um ponto de vista.

c) é raro você ... encontrar eh ...menino que queira ouvir conselho ...que ouça conselho do pai ...que atenda o pai ... até / nem / no ... no bom sentido de ... de não fazer alguma coisa ...de fazer ou / NAda ... não há ... não há ... não há jeito de ... de fazer ... de fazer nada ... agora ... se isso é bom ou ruim ... não sei ... (Nurc)

Outro ponto de relevância em relação às categorias propostas para a análise é o fato de que estas não constituem grupos fechados e sim prototípicos. Trata-se de uma característica importante, pois há exemplos, no corpus, que podem transitar em mais de uma categoria. Logo, o paradigma apresentado possui pontos de interseção que possibilitam uma maior flexibilidade na análise das ocorrências.

Conclusões

O presente trabalho apresentou indícios para crer que o tradicional advérbio de tempo agora passa por um processo de gramaticalização, no qual caminha da gramática para o discurso e representa um ciclo contínuo de transformações.

Com a sua origem dêitica espacial na estrutura nunc (“neste momento”), seu uso posterior como advérbio de tempo e sua utilização atual como marcador discursivo, observa-se a evolução espaço > tempo > discurso do termo.

Durante o percurso, não se pode deixar de notar a polissemia de funções de agora. Desde seu uso como referente temporal do momento presente, que se amplia com usos indicadores do tempo passado e futuro, até o seu papel mais discursivo substituindo conjunções tradicionais como mas, então e porque. Da mesma forma, é imprescindível observar, na passagem de uma categoria para outra, a perda das restrições de uso que a sua categoria-fundante lhe imprimia.

Além disso, comprova-se a hipótese de que há uma estabilidade funcional do termo, pois, apesar da alteração da forma, os sentidos permanecem.

Poder-se-ia, por fim, estabelecer a seguinte grade de prototipicidade de agora:

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