Uma discussão
acerca dos termos considerados acessórios
pela tradição gramatical

Alex Swander

INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma análise crítica acerca da classificação dos artigos como “termos acessórios”. Pretendemos mostrar que tal terminologia contempla apenas o aspecto sintático. Para tal, nossos apontamentos encontram-se norteados pelo Funcionalismo norte-americano, que é uma Escola lingüística preocupada com o aspecto funcional da língua. Segundo este modelo teórico, a codificação lingüística encontra-se vinculada às funções desempenhadas pelas palavras nas situações de interação. Utilizaremos o Princípio da Iconicidade de Talmy Givón, buscando mostrar a relação que há entre função e forma, posto que para cada construção lingüística, há diferentes possibilidades de significado. Assim sendo, apresentaremos as implicações semânticas que se instauram a partir do uso do artigo definido e da alternância pelo artigo indefinido, bem como em sentenças em que o artigo está ausente.

Partindo da teoria que adotamos, questionaremos o papel que é conferido ao artigo, visto que para alguns autores, sua importância é servir de adereço (acessório). Com o objetivo de fundamentarmos a nossa proposta de análise, apresentaremos algumas definições encontradas sobre termos acessórios na visão tradicional, e aplicaremos o Princípio da Iconicidade às sentenças de nosso interesse de estudo no conto Uma esperança da autora modernista Clarice Lispector.

METODOLOGIA

Corpus

Este trabalho tem como Corpus o conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector.

Tratamento dos dados

O trabalho foi desenvolvido com base no Princípio da Iconicidade do Funcionalismo Lingüístico. Os comentários se concatenarão mediante um levantamento das definições apresentadas por alguns livros didáticos acerca dos termos acessórios. Confrontaremos a visão tradicional do artigo como termo acessório com a abordagem sintático-semântica funcional. Fomentaremos nossa proposta a partir das perspectivas possíveis de significados que encontramos no conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector.

SUPORTE TEÓRICO

Entendamos preliminarmente o que vem a ser o Princípio da Iconicidade; segundo Givón, as formas lingüísticas nascem motivadas iconicamente e a arbitrariedade na codificação lingüística ocorre devido às pressões diacrônicas corrosivas a partir da erosão provocada pelo atrito fonológico, e a mensagem acaba sendo alterada em decorrência da elaboração criativa. Tais pressões provocam ambigüidades quanto ao código (ocorrência de uma forma e várias funções - homonímia e polissemia) e quanto à mensagem (várias formas e uma função - sinonímia). No conto “Uma esperança” de Clarice Lispector veremos que será exatamente o artigo, ora se alternando entre definido e indefinido, ora sendo omitido, que será crucial na instauração da ambigüidade.

O princípio da iconicidade apresenta três subprincípios:

A) O princípio da quantidade:

Sua base cognitiva encontra-se vinculada a áreas de maior esforço e atenção.

Assim, temos:

A-1) Uma parcela maior de informação receberá menor grau de codificação.

A-2) A informação que for menos previsível receberá maior material de codificação.

A-3) A informação que tiver maior relevância também receberá maior material de codificação.

Observemos o seguinte esquema:

SN pleno > pronome > anáfora zero

Exemplo: Eu vi uma esperança entrar pela janela, ela era verdinha, era muito magrinha.

B) O princípio da adjacência:

Quanto à codificação lingüística, quanto mais integrados os conceitos estiverem no âmbito cognitivo, maior será a integração sintática. Tal princípio se concatena a partir do postulado de que uma vez acionado determinado conceito, outros conceitos a ele relacionados são ativados.

C) O princípio da ordenação linear:

segundo o subprincípio acima, cognitivamente, a informação que for mais importante e imprevisível, ou aquela que for menos acessível ocuparão uma posição primordial na cadeia lingüística, visto que o elemento introdutório do fluxo discursivo é o que detém maior atenção e é mormente memorizado.

ANÁLISE

Para darmos prossecução à nossa análise, volvamos a atenção para o significado dicionarizado da palavra acessório:

“Adjetivo; que não é fundamental; junto a uma coisa, sem fazer parte integrante dela; s.m. aquilo que se junta ao objeto principal, ou é dependente deste; complemento, atributo”. (BUENO, 1992: 39)

Acreditamos ser viável um questionamento da terminologia acessório utilizada tradicionalmente para a nomeação de alguns elementos na cadeia lingüística, enfocando, evidentemente, o artigo, nosso objeto de estudo. Até que ponto este termo pode ser considerado não fundamental? È evidente que não estamos aqui discutindo o grau de hierarquização de termos nucleares e satélites. Entretanto, insistimos em dizer que um termo cuja ausência implica em deslocamento do sentido semântico, não pode ser considerado como algo que não é fundamental.

Passemos à varredura das “definições” de termos acessórios apresentadas nos livros didáticos que constituem parte do corpus do nosso trabalho.

“Como o próprio nome indica, termo acessório é aquele que não é fundamental. Sua função é a de acrescentar informações secundárias tanto aos nomes quanto aos verbos.” (TERRA & NICOLA, 2000:41)

A definição apresentada apenas reforça a nossa hipótese quanto ao contraste que há, uma vez confrontada à visão funcionalista. Além disso, essas “informações secundárias” merecem um questionamento, pois como já afirmamos, como pode ser secundária uma informação crucial quanto ao sentido?

“São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA & NICOLA, 2001:115)

É interessante observarmos que os autores nem sequer definiram termos acessórios, o que nos causa um certo estranhamento, pois os mesmos autores em trabalho anteriores traçaram uma definição sobre os termos referidos.

“Os termos acessórios não são imprescindíveis ao entendimento do enunciado. No entanto, acrescenta uma informação nova, determinando e qualificando outros termos.” (FARACO & MOURA, 1999:420)

Para os autores os termos acessórios não são imprescindíveis, isto é, sua ausência é absolutamente contornável, a grosso modo, “não fazem falta”. Insistimos que essa “informação nova”, que determina ou qualifica outros termos, é um fato relevante ao entendimento da sentença.

“Como o próprio nome indica, termo acessório é aquele que não é fundamental. Sua função é a de acrescentar informações secundárias tanto aos nomes quanto aos verbos.” (TERRA & NICOLA, 1995: 29)

Tecer comentários quanto à definição acima é redundante, a mesma definição é apresentada por estes autores em outro trabalho já referido.

“São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA & NICOLA, 1993:155)

São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA, 1987:191)

“Termos acessórios da oração são aqueles cuja função é secundária, podendo ser totalmente dispensáveis ao sentido da oração.” (MESQUITA & MARTOS, 1990:229)

A definição acima apresenta uma grande falha se analisada pela ótica do Funcionalismo. Considerar termos acessórios como “totalmente dispensáveis”, significa dizer que o artigo não é importante numa oração. Julgamos ser necessário revermos tal posição, pois de acordo com o aparato teórico que estamos utilizando, temos diferentes formas discursivas para diferentes funções. Assim, a ausência do artigo, ou a alternância entre definido e indefinido, terão diferentes possibilidades de leitura conforme constataremos no conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector que na seqüência apresentamos:

UMA ESPERANÇA

Clarice Lispector

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.

***

A primeira leitura do conto indica no artigo uma apenas a indefinição que é proposta para a palavra esperança. E assim entraremos no conto impulsionados pela necessidade de recortar a sua significação. É interessante observarmos que, se permutarmos “uma esperança” por “a esperança” ou por “esperança”, nas três frases a ambigüidade se faz presente. A explicação é simples: recordando o princípio da iconicidade, a polissemia é resultado de um processo de erosão provocada pelo atrito fonológico, de sorte que a mensagem acaba sendo alterada em decorrência da elaboração criativa.

Aqui em casa pousou uma esperança.

Em uma esperança a singularidade é plural, mesmo sem fazer uso da conotação, comporta mais de uma possibilidade: um estado de desejo, um inseto e um estado de desejo e um inseto.

Não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre.

A dubiedade de esperança provoca a explicação de uma recusa, que embora formulada categoricamente, não conseguirá eximir o acontecimento da ambigüidade própria da linguagem. É nesse contexto que julgamos absolutamente viável um questionamento acerca da visão tradicional em que o artigo é considerado um termo sem muita importância. Ora, no trecho “Não a clássica”, o artigo desempenha uma função de elemento anafórico, isto é, sua presença resgata o sentido da sentença a partir de uma referência à palavra esperança, que se encontra anterior na cadeia lingüística.

Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Como no trecho anterior, novamente o artigo como elemento anafórico: “Mas a outra”. No trecho “o inseto” , o artigo define o substantivo inseto. Vejamos o deslocamento da leitura semântica se permutarmos por “um inseto”; neste caso, a palavra esperança passa a ter menor valor conceitual.

Houve um grito abafado de um dos meus filhos

A presença do artigo indefinido instaura a possibilidade de uma leitura em que a marca do inesperado assume papel de relevo. Se alterarmos para “Houve o grito abafado” , haverá uma maior função enfática, isto é, a carga semântica de grito assume nova configuração.

Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira!

A ambigüidade em torno da palavra esperança se desfaz por um processo de referenciação catafórica, isto é, pelo resgate do sentido a partir do contexto que se segue. Assim, o sentido mais previsível para a palavra esperança é tratar-se de um inseto.

Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso.

Aqui, o artigo definido -as- tem função crucial; sua ausência implicaria em outra leitura semântica, ou seja, não seriam as duas esperanças (inseto e sentimento), mas dois insetos de nome esperança, ou até mesmo duas esperanças no sentido conotativo, isto é, duas vontades, dois desejos.

Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede.

Notemos que aqui a palavra esperança aparece sem nenhum artigo, o que reforça uma leitura ambígua acerca da sua significação.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

Neste fragmento, a presença do artigo reforça a dimensão perceptual da cadeia lingüística. A ausência deles representaria, do ponto de vista funcionalista, menor grau de transitividade (no presente trabalho não discutiremos tal propriedade funcional da linguagem, mas apenas para efeito didático, entendamos que o termo referido, diferentemente da acepção que recebe na visão tradicional, encontra-se vinculado não somente ao aspecto sintático, mas também à dimensão perceptual dos fatos, de sorte que quanto mais determinantes existirem numa sentença, maior será a transitividade).

- Ela é burrinha, comentou o menino.

Se retirarmos o artigo, estaremos instaurando uma incoerência, até porque a função do artigo no presente fragmento é a de determinante do substantivo “menino.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

Observemos que em procurando outro caminho , não temos o artigo. Se alterarmos a sentença para: Procurando o outro caminho , desta feita não se trata de qualquer caminho, mas de um caminho bem definido e conhecido.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha.

Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha.

A correção do artigo (uma / a), nos leva de volta ao título do conto. Se UMA ESPERANÇA indicava simultaneamente singularidade e indefinição, o artigo definido restringe e particulariza, retira a eventualidade para substituí-la pela determinação. “A” aranha aqui é o lugar do antagonismo e da fatalidade. Em outras palavras, do ponto de vista funcional a alteração que se verifica ilustra efetivamente a motivação icônica da linguagem, posto que formas diferentes de construção implicam em formas diferentes de significação.

Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la.

A aranha é igualada ao menino e ao adulto, no seu desejo - duplo - da esperança. Temos a ambigüidade na palavra esperança, fortalecida pela ausência do artigo. Assim, é viável interpretarmos a sentença de maneira a entendermos que a aranha queria comer o inseto, ou a aranha tinha esperança de comer o inseto.

Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança.

Meu outro filho, que estava vendo televisão ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo

É evidente que no trecho acima a palavra esperança assume um papel notoriamente polissêmico, sendo inteiramente possível interpretarmos “a esperança” como sendo o inseto, ou o sentimento. Entretanto, convém ressaltarmos que, do ponto de vista icônico, há uma forte motivação icônica quanto à previsibilidade acerca do sentido da palavra esperança, quando esta se encontra determinada pelo artigo. Acaso estivesse ela introduzida por um artigo indefinido, tal previsibilidade diminuiria.

CONCLUSÃO

Como foi visto ao longo desse trabalho, o lexema mais importante dá título ao conto: “Esperança”. Este lexema é ora empregado em sentido denotativo como “inseto verde”, ora em sentido conotativo como “o sentimento que nos permite viver”.

Outro ponto a ressaltar é o emprego dos determinantes de “esperança”: se é um artigo indefinido (uma), pode ser lido como qualquer esperança e aí o lexema passa a ser polissêmico. Se esperança tem como determinante o artigo definido (a), o seu significado não é mais “o de qualquer esperança”. Em outros termos, é como se fosse “esta” ou “aquela” esperança determinada e com sentido expressivo. Se ocorre supressão de determinantes, “esperança” ganha um campo significativo bem maior, porque a supressão de determinantes implica na possibilidade de mais de uma leitura, instalando a ambigüidade. É importante acrescentarmos que a ambigüidade muitas vezes se faz presente mesmo em sentenças em que o artigo é definido. A explicação mais coerente é que, segundo a visão do Funcionalismo lingüístico, a transferência significativa entre as palavras se faz por intermédio do princípio da iconicidade. Assim, diacronicamente, a tendência é que ocorra um desgaste fonológico que confluirá para a existência das ambigüidades. Acreditamos que diante da abordagem funcionalista, é preciso ter um certo cuidado com relação às palavras. Não podemos ser taxativos em definições metalingüísticas que concebem a língua como um sistema arbitrário, fechado e acabado. É imperativo que a entendamos como um sistema adaptativo em que várias intenções funcionais representam várias formas expressivas.

BIBLIOGRAFIA

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LAPA, R. Estilística da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1959.

MAIA, J. D. Língua literatura e redação. 2ª ed. 3º volume. São Paulo: Ática, 1990.

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MESQUITA, M. & MARTOS, C. R. Gramática pedagógica. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

NEVES, M.H.de M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

TERRA, E. Curso prático de gramática. 4ª ed. São Paulo: Scipione, 1987.

TERRA, E. & DE NICOLA, J. Gramática & literatura para o 2º grau. 2ª ed. São Paulo: Scipione, 1993.

------. Curso prático de língua, literatura & redação. Volume III, 2ª ed. São Paulo: Scipione, 1995.

------. Coleção novos tempos. 1ª ed. 2ª impressão. São Paulo: Scipione, 2000.

------. Gramática, literatura & redação para o Ensino Médio. 1ª ed. 4ª impressão. São Paulo: Scipione, 2001.

VILARES GANCHO, Cândida. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, [s/d.], 72 p.

VOGT, CARLOS. O intervalo semântico. São Paulo: Ática, [s/d.], 288 p.

VOTRE, S. et alii (orgs.). Marcação e iconicidade na gramaticalização de construções complexas. In: Gragoatá - revista do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. n.5, 2º semestre de 1998.

Uma discussão

acerca dos termos considerados acessórios

pela tradição gramatical

Alex Swander

INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma análise crítica acerca da classificação dos artigos como “termos acessórios”. Pretendemos mostrar que tal terminologia contempla apenas o aspecto sintático. Para tal, nossos apontamentos encontram-se norteados pelo Funcionalismo norte-americano, que é uma Escola lingüística preocupada com o aspecto funcional da língua. Segundo este modelo teórico, a codificação lingüística encontra-se vinculada às funções desempenhadas pelas palavras nas situações de interação. Utilizaremos o Princípio da Iconicidade de Talmy Givón, buscando mostrar a relação que há entre função e forma, posto que para cada construção lingüística, há diferentes possibilidades de significado. Assim sendo, apresentaremos as implicações semânticas que se instauram a partir do uso do artigo definido e da alternância pelo artigo indefinido, bem como em sentenças em que o artigo está ausente.

Partindo da teoria que adotamos, questionaremos o papel que é conferido ao artigo, visto que para alguns autores, sua importância é servir de adereço (acessório). Com o objetivo de fundamentarmos a nossa proposta de análise, apresentaremos algumas definições encontradas sobre termos acessórios na visão tradicional, e aplicaremos o Princípio da Iconicidade às sentenças de nosso interesse de estudo no conto Uma esperança da autora modernista Clarice Lispector.

METODOLOGIA

Corpus

Este trabalho tem como Corpus o conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector.

Tratamento dos dados

O trabalho foi desenvolvido com base no Princípio da Iconicidade do Funcionalismo Lingüístico. Os comentários se concatenarão mediante um levantamento das definições apresentadas por alguns livros didáticos acerca dos termos acessórios. Confrontaremos a visão tradicional do artigo como termo acessório com a abordagem sintático-semântica funcional. Fomentaremos nossa proposta a partir das perspectivas possíveis de significados que encontramos no conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector.

SUPORTE TEÓRICO

Entendamos preliminarmente o que vem a ser o Princípio da Iconicidade; segundo Givón, as formas lingüísticas nascem motivadas iconicamente e a arbitrariedade na codificação lingüística ocorre devido às pressões diacrônicas corrosivas a partir da erosão provocada pelo atrito fonológico, e a mensagem acaba sendo alterada em decorrência da elaboração criativa. Tais pressões provocam ambigüidades quanto ao código (ocorrência de uma forma e várias funções - homonímia e polissemia) e quanto à mensagem (várias formas e uma função - sinonímia). No conto “Uma esperança” de Clarice Lispector veremos que será exatamente o artigo, ora se alternando entre definido e indefinido, ora sendo omitido, que será crucial na instauração da ambigüidade.

O princípio da iconicidade apresenta três subprincípios:

A) O princípio da quantidade:

Sua base cognitiva encontra-se vinculada a áreas de maior esforço e atenção.

Assim, temos:

A-1) Uma parcela maior de informação receberá menor grau de codificação.

A-2) A informação que for menos previsível receberá maior material de codificação.

A-3) A informação que tiver maior relevância também receberá maior material de codificação.

Observemos o seguinte esquema:

SN pleno > pronome > anáfora zero

Exemplo: Eu vi uma esperança entrar pela janela, ela era verdinha, era muito magrinha.

B) O princípio da adjacência:

Quanto à codificação lingüística, quanto mais integrados os conceitos estiverem no âmbito cognitivo, maior será a integração sintática. Tal princípio se concatena a partir do postulado de que uma vez acionado determinado conceito, outros conceitos a ele relacionados são ativados.

C) O princípio da ordenação linear:

segundo o subprincípio acima, cognitivamente, a informação que for mais importante e imprevisível, ou aquela que for menos acessível ocuparão uma posição primordial na cadeia lingüística, visto que o elemento introdutório do fluxo discursivo é o que detém maior atenção e é mormente memorizado.

ANÁLISE

Para darmos prossecução à nossa análise, volvamos a atenção para o significado dicionarizado da palavra acessório:

“Adjetivo; que não é fundamental; junto a uma coisa, sem fazer parte integrante dela; s.m. aquilo que se junta ao objeto principal, ou é dependente deste; complemento, atributo”. (BUENO, 1992: 39)

Acreditamos ser viável um questionamento da terminologia acessório utilizada tradicionalmente para a nomeação de alguns elementos na cadeia lingüística, enfocando, evidentemente, o artigo, nosso objeto de estudo. Até que ponto este termo pode ser considerado não fundamental? È evidente que não estamos aqui discutindo o grau de hierarquização de termos nucleares e satélites. Entretanto, insistimos em dizer que um termo cuja ausência implica em deslocamento do sentido semântico, não pode ser considerado como algo que não é fundamental.

Passemos à varredura das “definições” de termos acessórios apresentadas nos livros didáticos que constituem parte do corpus do nosso trabalho.

“Como o próprio nome indica, termo acessório é aquele que não é fundamental. Sua função é a de acrescentar informações secundárias tanto aos nomes quanto aos verbos.” (TERRA & NICOLA, 2000:41)

A definição apresentada apenas reforça a nossa hipótese quanto ao contraste que há, uma vez confrontada à visão funcionalista. Além disso, essas “informações secundárias” merecem um questionamento, pois como já afirmamos, como pode ser secundária uma informação crucial quanto ao sentido?

“São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA & NICOLA, 2001:115)

É interessante observarmos que os autores nem sequer definiram termos acessórios, o que nos causa um certo estranhamento, pois os mesmos autores em trabalho anteriores traçaram uma definição sobre os termos referidos.

“Os termos acessórios não são imprescindíveis ao entendimento do enunciado. No entanto, acrescenta uma informação nova, determinando e qualificando outros termos.” (FARACO & MOURA, 1999:420)

Para os autores os termos acessórios não são imprescindíveis, isto é, sua ausência é absolutamente contornável, a grosso modo, “não fazem falta”. Insistimos que essa “informação nova”, que determina ou qualifica outros termos, é um fato relevante ao entendimento da sentença.

“Como o próprio nome indica, termo acessório é aquele que não é fundamental. Sua função é a de acrescentar informações secundárias tanto aos nomes quanto aos verbos.” (TERRA & NICOLA, 1995: 29)

Tecer comentários quanto à definição acima é redundante, a mesma definição é apresentada por estes autores em outro trabalho já referido.

“São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA & NICOLA, 1993:155)

São três os termos acessórios da oração: o adjunto adnominal, o adjunto adverbial e o aposto.” (TERRA, 1987:191)

“Termos acessórios da oração são aqueles cuja função é secundária, podendo ser totalmente dispensáveis ao sentido da oração.” (MESQUITA & MARTOS, 1990:229)

A definição acima apresenta uma grande falha se analisada pela ótica do Funcionalismo. Considerar termos acessórios como “totalmente dispensáveis”, significa dizer que o artigo não é importante numa oração. Julgamos ser necessário revermos tal posição, pois de acordo com o aparato teórico que estamos utilizando, temos diferentes formas discursivas para diferentes funções. Assim, a ausência do artigo, ou a alternância entre definido e indefinido, terão diferentes possibilidades de leitura conforme constataremos no conto “Uma esperança” da autora modernista Clarice Lispector que na seqüência apresentamos:

UMA ESPERANÇA

Clarice Lispector

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.

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A primeira leitura do conto indica no artigo uma apenas a indefinição que é proposta para a palavra esperança. E assim entraremos no conto impulsionados pela necessidade de recortar a sua significação. É interessante observarmos que, se permutarmos “uma esperança” por “a esperança” ou por “esperança”, nas três frases a ambigüidade se faz presente. A explicação é simples: recordando o princípio da iconicidade, a polissemia é resultado de um processo de erosão provocada pelo atrito fonológico, de sorte que a mensagem acaba sendo alterada em decorrência da elaboração criativa.

Aqui em casa pousou uma esperança.

Em uma esperança a singularidade é plural, mesmo sem fazer uso da conotação, comporta mais de uma possibilidade: um estado de desejo, um inseto e um estado de desejo e um inseto.

Não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre.

A dubiedade de esperança provoca a explicação de uma recusa, que embora formulada categoricamente, não conseguirá eximir o acontecimento da ambigüidade própria da linguagem. É nesse contexto que julgamos absolutamente viável um questionamento acerca da visão tradicional em que o artigo é considerado um termo sem muita importância. Ora, no trecho “Não a clássica”, o artigo desempenha uma função de elemento anafórico, isto é, sua presença resgata o sentido da sentença a partir de uma referência à palavra esperança, que se encontra anterior na cadeia lingüística.

Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Como no trecho anterior, novamente o artigo como elemento anafórico: “Mas a outra”. No trecho “o inseto” , o artigo define o substantivo inseto. Vejamos o deslocamento da leitura semântica se permutarmos por “um inseto”; neste caso, a palavra esperança passa a ter menor valor conceitual.

Houve um grito abafado de um dos meus filhos

A presença do artigo indefinido instaura a possibilidade de uma leitura em que a marca do inesperado assume papel de relevo. Se alterarmos para “Houve o grito abafado” , haverá uma maior função enfática, isto é, a carga semântica de grito assume nova configuração.

Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira!

A ambigüidade em torno da palavra esperança se desfaz por um processo de referenciação catafórica, isto é, pelo resgate do sentido a partir do contexto que se segue. Assim, o sentido mais previsível para a palavra esperança é tratar-se de um inseto.

Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso.

Aqui, o artigo definido -as- tem função crucial; sua ausência implicaria em outra leitura semântica, ou seja, não seriam as duas esperanças (inseto e sentimento), mas dois insetos de nome esperança, ou até mesmo duas esperanças no sentido conotativo, isto é, duas vontades, dois desejos.

Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede.

Notemos que aqui a palavra esperança aparece sem nenhum artigo, o que reforça uma leitura ambígua acerca da sua significação.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

Neste fragmento, a presença do artigo reforça a dimensão perceptual da cadeia lingüística. A ausência deles representaria, do ponto de vista funcionalista, menor grau de transitividade (no presente trabalho não discutiremos tal propriedade funcional da linguagem, mas apenas para efeito didático, entendamos que o termo referido, diferentemente da acepção que recebe na visão tradicional, encontra-se vinculado não somente ao aspecto sintático, mas também à dimensão perceptual dos fatos, de sorte que quanto mais determinantes existirem numa sentença, maior será a transitividade).

- Ela é burrinha, comentou o menino.

Se retirarmos o artigo, estaremos instaurando uma incoerência, até porque a função do artigo no presente fragmento é a de determinante do substantivo “menino.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

Observemos que em procurando outro caminho , não temos o artigo. Se alterarmos a sentença para: Procurando o outro caminho , desta feita não se trata de qualquer caminho, mas de um caminho bem definido e conhecido.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha.

Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha.

A correção do artigo (uma / a), nos leva de volta ao título do conto. Se UMA ESPERANÇA indicava simultaneamente singularidade e indefinição, o artigo definido restringe e particulariza, retira a eventualidade para substituí-la pela determinação. “A” aranha aqui é o lugar do antagonismo e da fatalidade. Em outras palavras, do ponto de vista funcional a alteração que se verifica ilustra efetivamente a motivação icônica da linguagem, posto que formas diferentes de construção implicam em formas diferentes de significação.

Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la.

A aranha é igualada ao menino e ao adulto, no seu desejo - duplo - da esperança. Temos a ambigüidade na palavra esperança, fortalecida pela ausência do artigo. Assim, é viável interpretarmos a sentença de maneira a entendermos que a aranha queria comer o inseto, ou a aranha tinha esperança de comer o inseto.

Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança.

Meu outro filho, que estava vendo televisão ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo

É evidente que no trecho acima a palavra esperança assume um papel notoriamente polissêmico, sendo inteiramente possível interpretarmos “a esperança” como sendo o inseto, ou o sentimento. Entretanto, convém ressaltarmos que, do ponto de vista icônico, há uma forte motivação icônica quanto à previsibilidade acerca do sentido da palavra esperança, quando esta se encontra determinada pelo artigo. Acaso estivesse ela introduzida por um artigo indefinido, tal previsibilidade diminuiria.

CONCLUSÃO

Como foi visto ao longo desse trabalho, o lexema mais importante dá título ao conto: “Esperança”. Este lexema é ora empregado em sentido denotativo como “inseto verde”, ora em sentido conotativo como “o sentimento que nos permite viver”.

Outro ponto a ressaltar é o emprego dos determinantes de “esperança”: se é um artigo indefinido (uma), pode ser lido como qualquer esperança e aí o lexema passa a ser polissêmico. Se esperança tem como determinante o artigo definido (a), o seu significado não é mais “o de qualquer esperança”. Em outros termos, é como se fosse “esta” ou “aquela” esperança determinada e com sentido expressivo. Se ocorre supressão de determinantes, “esperança” ganha um campo significativo bem maior, porque a supressão de determinantes implica na possibilidade de mais de uma leitura, instalando a ambigüidade. É importante acrescentarmos que a ambigüidade muitas vezes se faz presente mesmo em sentenças em que o artigo é definido. A explicação mais coerente é que, segundo a visão do Funcionalismo lingüístico, a transferência significativa entre as palavras se faz por intermédio do princípio da iconicidade. Assim, diacronicamente, a tendência é que ocorra um desgaste fonológico que confluirá para a existência das ambigüidades. Acreditamos que diante da abordagem funcionalista, é preciso ter um certo cuidado com relação às palavras. Não podemos ser taxativos em definições metalingüísticas que concebem a língua como um sistema arbitrário, fechado e acabado. É imperativo que a entendamos como um sistema adaptativo em que várias intenções funcionais representam várias formas expressivas.

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