HISTÓRIA SOCIAL DA LINGUAGEM

José Gaspar de Oliveira Nascimento (Univ. de Sorocaba)

INTRODUÇÃO

Embora possa parecer simples, a expressão história social da linguagem implica, na verdade, vários pressupostos que devem ser desenvolvidos. Assim, as pesquisas que envolvem a história da linguagem exigem o concurso de trabalhos sociológicos, históricos e, sem dúvida, lingüísticos. Por essa razão há de se distinguir, inicialmente, lingüística histórica de história da língua.

Para Lyons (1972: 1) a Lingüística se define como o estudo científico da língua. Entenda-se por estudo científico da língua como sendo a investigação dela por meio de observações controladas e verificáveis empiricamente e com referência a uma teoria geral da sua estrutura. A Lingüística, como qualquer outra ciência, constrói sobre o passado; e assim o faz não somente desafiando e refutando doutrinas tradicionais, mas também desenvolvendo-as e reformulando-as.

Para a compreensão dos princípios e hipóteses que regem a Lingüística, o conhecimento da História da Lingüística, que não se confunde com lingüística histórica, pode oferecer sua contribuição. Uma coisa é estudar a história de uma ciência, recuperando suas origens e seu desenvolvimento no tempo - é o que se faz na História da Lingüística. Outra coisa é estudar as mudanças que ocorrem nas línguas humanas à medida que o tempo passa, atividade específica da lingüística histórica.

O interesse de uma história social da linguagem está, entre outras coisas, em constituir uma abordagem necessariamente interdisciplinar. Para tanto um dos contributos relevantes é a sociolingüística. Assim, a entrada dos conceitos e métodos da sociolingüística para o campo habitualmente ocupado pela lingüística tem vantagens mútuas: a sociolingüística procura, e encontra, nos estados passados de uma língua, os dados que podem validar ou invalidar as hipóteses que formulou para explicar uma mudança atualmente em curso; e a lingüística histórica tem a possibilidade, que até aqui lhe escapava, de ver processarem-se perante os seus olhos mudanças análogas àquelas que se deram no passado, e que apenas podia conjecturar.

Por outro lado, a história da língua designa uma disciplina, ou um modo de abordar os fenômenos evolutivos da língua, que tanto pode ser considerada parte integrante da lingüística histórica, como da história propriamente dita. O objeto da história da língua é uma língua em particular, na sua existência definida temporal e espacialmente, o que significa que os fatos lingüísticos devem ser permanentemente correlacionados com fatos históricos, que os condicionaram.

O objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura da história social da linguagem focalizando uma concepção platônica segundo a qual a linguagem conduz a alguma coisa que não ela mesma e, portanto, o discurso pode dizer ou não dizer a verdade.

O corpus é um dos diálogos de Platão: Crátilo.

Justifica-se a escolha de Crátilo, visto que aí está a linguagem posta em questão. Platão examina a adequação do que se diz com a a coisa dita, o que, por si, é um marco fundamental para as reflexões sobre a linguagem. Estabelecendo as bases do raciocínio moderno, os gregos forneceram também os princípios fundamentais segundo os quais a linguagem foi pensada até nossos dias. Afinal, durante muitos séculos, os princípios aperfeiçoados pelos gregos conduziram as teorias e as sistematizações lingüísticas na Europa.

Além dos aspectos especificamente lingüísticos, é mister incluir, neste estudo, outros, tais como sociolingüísticos, históricos e filosóficos. Caracteriza-se aí a multi e a transdisciplinaridade tão comum nos estudos atuais das ciências sociais e, por que não dizer, das chamadas ciências duras (hard sciences).

É verdade que os sociólogos dos anos setenta entendiam que as ciências duras não poderiam ser estudadas socialmente, já que a sociologia e a história trabalhavam com aspectos institucionais da ciência, não com o núcleo do conhecimento. Diziam eles que isso cabia aos filósofos. Shappin (1982), questionando o caso do cientista que se deixa levar por razões não-científicas (ideológicas, por exemplo), é um mau cientista. Já, para Kuhn (1962), as ciências duras não são críticas, são dogmáticas. Questiona-se: a prática científica não é uma prática social? Hoje, os sociólogos consideram que há interferência do social no trabalho científico.

Se na história social da ciência, a partir de 1930, na Inglaterra, identifica-se uma história externalista, que contempla os fatores externos como influenciadores do fazer cientítico - ideologia e ciência entrecruzam-se -, na história social da linguagem essa dualidade entre externo e interno está presente.

CRÁTILO

A filosofia e a linguagem

O diálogo Crátilo é o texto básico da filosofia helênica sobre a linguagem. Nele encontram-se grandes questões lingüísticas e filosóficas. A filosofia grega inicia-se precisamente com o conhecimento de que a palavra é apenas nome e, por isso, não representa o verdadeiro ser. A questão é a seguinte: qual é a relação entre a palavra e a coisa? Crátilo - o filósofo - procura resolver este problema, mas o diálogo não chega a uma conclusão a respeito da aporia da diferença entre a linguagem e a realidade. Mas esta falta de solução no diálogo Crátilo não é uma deficiência. A ausência de uma resposta explícita decorre das dificuldades naturais que o paradigma racional de Platão encontra ao investigar a realidade empírica.

Hoje, uma das questões básicas é a da linguagem. Ricoeur, em Da Interpretação, assevera que a linguagem é um dos problemas fundamentais da filosofia contemporânea. Habermas poderia dar igual testemunho. Aliás, nos últimos cinqüenta anos diversas vertentes das ciências têm versado sobre a linguagem: a fonologia e as teorias lingüísticas, os problemas da comunicação e a cibernética, as matemáticas modernas e a informática, os computadores e suas linguagens, os problemas de tradução das linguagens e a busca de compatibilidade entre linguagens-máquina, os problemas de memorização e os bancos de dados...

Como se pode observar, a pesquisa da linguagem é multi, inter e transdisciplinar: lingüística, semântica, pragmática, semiótica, histórica, sociolingüística, psicológica, antropológica, etc. A própria filosofia, que se manifesta nos estudos da linguagem em Crátilo, revela múltiplos enfoques: lógico, histórico, lingüístico, ontológico, epistemológico, ético. Na verdade, vivemos um momento de valorização temática da linguagem.

Eis por que o objetivo deste trabalho procura examinar, desde o surgimento da filosofia, este problema e suas conseqüências. Especialmente em Crátilo, na relação nome-conhecimento-coisa.

Não são propriamente respostas que se deve buscar na leitura do diálogo platônico. Quem procura uma resposta às questões de Sócrates e de seus interlocutores não a encontra. O filósofo se põe em condições de igualdade com seus interlocutores, Ele não se considera um mestre (Só sei que nada sei), apenas alguém que ajuda descobrir a verdade que está dentro de cada um.

Crátilo possui uma certa força que o conserva sempre atual. O caráter retórico, dialético e a oralidade fazem parte do debate, da investigação que leva o diálogo à inconclusão e a Sócrates confessar sua ignorância, cujo ensinamento não é doutrinal, mas uma lição de método, segundo Koyré(1984):

Ensina-nos o uso e o valor das definições precisas, de conceitos empregados na discussão e a impossibilidade de os chegarmos a possuir sem proceder, previamente, a uma revisão crítica das noções tradicionais, das concepções ‘vulgares’, recebidas e incorporadas na linguagem.

A leitura de Crátilo exige a participação do leitor à semelhança de uma obra literária, pois o pensamento de Platão só se dá de modo fragmentário: tudo é proposto em estado de pergunta e resposta. Afinal, para Platão, a filosofia não é acessível a todos, embora o diálogo Crátilo, entre os demais, tenha sido escrito para o público leigo.

Crátilo: estrutura

A obra Crátilo tem o nome do primeiro mestre de Platão. Segundo Aristóteles, Platão foi provavelmente discípulo de Crátilo, um radical seguidor de Heráclito, tão radical que exagerava e adulterava o heraclitismo. Se para Heráclito era impossível entrar duas vezes num mesmo rio, para Crátilo isso não se podia fazer sequer uma vez. Aliás, Crátilo acabou persuadindo-se de que não devia dizer nada e, por isso, contentava-se em mover o dedo. Do silêncio de Crátilo e do seu sentido filosófico encontram-se, como prova, no diálogo de Platão que tem o seu nome. Até Crátilo pouco fala, apenas um quinto do diálogo; no restante, fazem-no falar. Contudo, é este Crátilo o interlocutor de Sócrates, o que, por essa razão, dá nome ao diálogo, que trata sobre a justeza dos nomes e não sobre essa figura histórica a respeito da qual pouco se sabe.

Crátilo parece ter vindo a lume depois de Eutidemos e estar próximo a Parmênides e Teeteto, outros diálogos de Platão. Assim, provavelmente, foi escrito entre os anos 380 e 367 a. C.

Pode ser dividido em duas partes:

a) a primeira, a mais longa, é a conversação entre Sócrates e Hermógenes;

b) a segunda, entre Sócrates e Crátilo.

As conclusões da primeira parte são revistas na segunda, pois, o diálogo, conduzido especialmente por Sócrates, gira em torno da correção ou da exatidão dos nomes; nesse sentido, sem caráter conclusivo, são expostas duas teses:

a) a convencionalista, defendida por Hermógenes, que apresenta a justeza ou correção dos nomes como sendo uma mera convenção e acordo;

b) a naturalista, defendida por Crátilo, que admite haver uma correção dos nomes por natureza atribuídos a cada um dos seres.

A obra começa de imediato com Hermógenes expondo a Sócrates, com a permissão de Crátilo, as duas posições sobre a natureza do nome - nomoV / fusiV - e, ainda na primeira parte, apresenta uma longa exposição etimológica ligada a alguns problemas da filosofia de Platão. Exposição interessante, pois pode ser de interesse histórico em relação ao desenvolvimento da fonética, da semântica e da sociolingüística. Hermógenes conclui pelo convencionalismo na existência dos nomes.

A dificuldade, porém, continua na segunda parte, em que Crátilo defende seu ponto de vista naturalista. Os nomes parecem possuir, contrariamente à opinião de Hermógenes, uma certa justeza natural, e também, contra Crátilo, parece que nem todos os nomes são exatos por natureza. Eles podem ser inexatos, e o uso e a convenção podem ter uma parte importante na sua formação.

Se Crátilo nada conclui, qual o objetivo de Platão?

Se a obra for levada em conta dentro do conjunto das obras de Platão, poder-se-á obter uma resposta. As questões sobre o convencionalismo ou naturalismo do nome - nomoV / fusiV - têm , sem dúvida, importância didática e servem para apontar a existência de diversos adversários de Platão. Hermógenes é um filósofo jovem e pouco conhecido, por isso, é pouco provável que Platão deseje criticá-lo. Por outro lado, a tese de Crátilo não é aceita nas conclusões do diálogo. Também não são aceitos os ensinamentos de Heráclito e de Demócrito. E, finalmente, a tese do homem-medida de todas as coisas, de Protágoras, é diversas vezes refutada.

Fica a questão: o diálogo trata de um problema de linguagem ou de conhecimento? É possível que a exposição da teoria da justeza dos nomes seja um elemento de apoio dialético à conhecida Teoria das Formas, observável no estudo etimológico do diálogo ao mostrar que não é o nome que deve ser interrogado, mas as próprias coisas. Ora, é a partir das coisas que nasce o conhecimento, e não pode existir conhecimento quando tudo está em contínua mudança. O conhecimento exige permanência.

Conclui-se que Crátilo é um diálogo aberto (atinge diversos objetivos) e é também um diálogo coerente com o sistema geral da filosofia de Platão: pode procurar nele um esboço de uma filosofia da linguagem e uma parte de uma filosofia, na qual a linguagem é um elemento filosófico ao lado de outros.

A verdade em crátilo

A dialética está sempre presente na filosofia de Platão. Sua argumentação não segue os padrões da lógica formal criada por Aristóteles, que investiga a força ou sentido de certas palavras, sempre a partir de modelos de proposições ou enunciados. No diálogo de Platão percebe-se uma força argumentativa, uma preocupação com a verdade que o distingue dos sofistas. A dialética do perguntar e do responder defende-se de raciocínios falsos, dos sofismas, prestando atenção não só às palavras, mas principalmente ao problema ou à realidade em debate. Para Platão, o verdadeiro e o falso têm como critério a correspondência do enunciados e dos nomes com as coisas.

Isso vale para a leitura de Crátilo. Após a colocação das teses de Crátilo e Hermógenes sobre a justeza ou correção dos nomes, e tendo se iniciado o diálogo entre Sócrates e Hermógenes, o que chama a atenção do leitor é o tipo de argumentação de Sócrates, que mostra que há um discurso verdadeiro - logoV alhqhV - que diz as coisas como são, e um falso - yeudhV - que diz como as coisas não são. A questão é dupla: primeiro, a verdade ou a mentira é uma relação entre a linguagem e a coisa; segundo, a proposição para ser verdadeira precisa ser verdadeira no todo e nas partes. Isto significa que discurso verdadeiro é igual a nome verdadeiro, e falso a nome falso. Assim, a verdade é o nome, e a falsidade é o não-nome, isto é, o som sem significação.

Outro argumento de Sócrates refere-se à essência fixa que as coisas possuem, independente do sujeito. Ela é por natureza - fusiV . Isso vale também para os atos. Platão descobre que dizer é um ato, mas não vê no ato de fala as possibilidades que Austin, Chomsky e outros filósofos e lingüistas atuais chamam a atenção.

O ato de dizer tem a finalidade intrínseca de dizer as coisas. A função do dizer consiste em atribuir a cada coisa sua natureza. Nomear as coisas é possível graças ao instrumento que é o nome e à ação de nomear, de usar este instrumento. A finalidade do dizer (ou nomear) consiste no ensinar e no distinguir a essência das coisas.

Em Crátilo, a argumentação de Sócrates parte do seguinte: há proposições verdadeiras e falsas e as proposições são compostas de nomes. Assim, as partes de uma proposição verdadeira devem ser verdadeiras.

A seguir, Sócrates desloca a questão da verdade e da mentira relacionada à proposição para o exame da função da linguagem. O objetivo do nome é ser instrumento do falante para um determinado fim Ao formador de nomes - nomoqethV , o nomoteta, o legislador - cabe configurá-los com sílabas e letras, com sons, naturalmente adequados à coisa que nomeia. Ao dialético, porém, compete distinguir julgar se uma linguagem está bem ou não. Mas, qual a função da linguagem? É a de simplesmente nomear esta ou aquela entidade ou uma maneira de nomear coisas diferentes? Platão esclarece ao dizer que um nome é correto quando quem o atribui expressa a relação entre a natureza da coisa e a forma do nome em letras e sílabas. Não importam as sílabas e as letras usadas desde que a propriedade do objeto seja reproduzida.

Assim sendo, a questão da verdade da exatidão do nome torna-se o problema da verdade, do conhecimento e do significado da linguagem. É nesta última que Platão procura o meio eficaz e verdadeiro para dizer a essência das coisas.

O sujeito da linguagem

Em relação ao problema da justeza, da correção dos nomes, a tese de Crátilo parece predominar no diálogo, diálogo que surpreendentemente se ocupa do início até o fim com a questão da linguagem. Na primeira parte Sócrates defende a tese de Crátilo contra a tese convencionalista de Hermógenes. Na segunda parte Sócrates solicita a Crátilo que a defenda.

Crátilo é uma das peças da filosofia de Platão, um de seus momentos. Os problemas nele colocados tendem a ser esclarecidos em outras obras de Platão: Sofista, Parmênides, Teeteto, pois o fato de reduzir a linguagem à questão do nome, e mais exatamente, o logoV, o enunciado, o discurso, à simples frase, e esta ao nome, e o nome à sílaba, e a sílaba à letra, prejudica a argumentação e a análise do problema. É por isso que o estudo completo da questão da linguagem, em Platão, exige a leitura de outros diálogos. Crátilo, porém, é um momento privilegiado.

Crátilo e Hermógenes têm uma posição clara sobre a justeza natural e sobre o acordo e convenção dos nomes. Mas qual é a posição de Platão? No início do diálogo, Sócrates esclarece o objetivo da discussão, que consiste em saber a verdade sobre a exatidão dos nomes. Para Platão, esta verdade, através de Sócrates, não tem um objetivo meramente gramatical ou lingüístico. A tese de Platão visa à articulação entre a linguagem e o conhecimento: a linguagem é modalidade de formação ou articulação do próprio conhecimento. A propósito, NEVES (1987: 54) completa:

O conhecimento é, assim, anterior e superior à imagem e ao lógos, que é a expressão lingüística dessa imagem. O denominar é posterior ao conhecer, pois há uma maneira de conhecer as coisas sem os nomes, por meio das próprias coisas e da relação entre elas. A linguagem já supõe a existência das coisas, de uma essência inteligível e imutável, verdadeira e sempre idêntica a si mesma. (...) As palavras são apenas sinais que representam as idéias e as coisas.

Na primeira parte do diálogo, contra a afirmação de Hermógenes de que o nome justo é aquele que se atribui a cada coisa, distinguem-se dois aspectos: a) a relação entre a justeza do nome e a natureza da coisa; b) o sujeito que atribui o nome.

Dê-se atenção ao segundo aspecto. Segundo Hermógenes, o nome que atribui a cada coisa é o nome de cada coisa. E, conforme ele, tanto os indivíduos - eu e tu - como os cidadãos podem atribuir nome. O aspecto fundamental do problema está na figura do nomoteta ou legislador. Tal figura simbólica vem associada à do dialético, do gramático ou filósofo, aquele que sabe perguntar e responder e cumpre o papel de juiz em relação à atividade do legislador. É necessário dizer se os nomes são exatos ou não, se são verdadeiros ou falsos.

O dialético interpreta e dirige o legislador em relação ao uso dos nomes, ao uso da linguagem. O nomear do legislador consiste em formar com sons e letras o nome por natureza apropriado, desde que siga a exigência de uma mesma forma.

Enfim, a descoberta de que a linguagem tem um sujeito, um legislador e um dialético, permite deslocar a questão da convenção para o contexto da linguagem. Embora Platão não tenha tido consciência de que a linguagem, contextualmente, pode ter uma multiplicidade de usos, a leitura de Crátilo pode ser feita nesta perspectiva.

Abordagem etimológica em crátilo

No estudo das etimologias, em Crátilo, observa-se uma certa ordem. Inicia-se com nomes homéricos, depois os nomes divinos e, por último, os nomes primitivos. Curioso: com as etimologias, tanto se defende a tese naturalista de Crátilo, como também se mostra a impossibilidade de explicar a origem dos nomes primitivos.

Platão descobre que os nomes sofrem mudanças com o passar do tempo. Sob o ponto de vista lingüístico-semântico, essas mudanças oferecem algumas curiosidades. Aparecem, por exemplo, embrionariamente, preocupações fonéticas, como a distinção entre a letra e o som. Os sons são, em Crátilo, o material com o qual o nomoteta (= o legislador) institui os nomes. Os sons variam de cultura para cultura, embora predomine sempre a idéia de que existe uma língua correta. No diálogo, Sócrates procura estudar as letras, a começar pelas vogais, para depois classificar por espécies as que carecem de som e ruído e as que, não sendo vogais, mudas também não são. Essa confusão socrática (= platônica) entre som e letra corresponde à distinção entre vogais e consoantes. Sem dúvida, esta abordagem sobre fonética é surpreendentemente positiva.

Ainda, nesses exercícios etimológicos, Crátilo oferece algumas noções de sociolingüística, quando o texto menciona as diferenças sociais e regionais relativamente à variação lingüística.

Outro aspecto interessante é a diferença de fala do homem e da mulher. Para Platão, as mulheres conservam com maior justeza a antiga linguagem - são, lingüisticamente, conservadoras. Tal registro não passou despercebido por aqueles que estudam as origens dos estudos gramaticais e lingüísticos. Cícero, por exemplo, em De Oratore III, 12, dizia que melhor do que os homens, as mulheres guardam o acento antigo, porque elas variam pouco de conversação e se mantêm fiéis ao que aprenderam na infância:

... facilius enim mulieres incorruptam antiquitatem conservant, quod multorum sermonis expertes ea tenent semper quae prima dixerunt.

E não faltam exemplos mais recentes. Meringer (1923: 83), referindo-se às mulheres, diz:

... ellas más bien son las propias conservadoras del idioma, como también com la mayor fidelidad conservan la antigua tradición, la costumbre, el traje, aun cuando el hombre haya abandonado ya todas estas realidades.

E mais. Sever Pop, in Révue de Linguistique Romane, IX, pp. 107, assevera

... le patois des femmes est presque toujours plus conservateur que celui des hommes de la même localité, ceux-ci étant plus souvent obligés de prendre contact avec des gens de la ville e surtout avec les autorités.

Outro aspecto interessante registrado por Sócrates, em Crátilo: o empréstimo das palavras:

Tenho para mim que os Helenos, principalmente os que moram entre os bárbaros receberam destes muitos nomes (409e).

Exemplifica-se com a palavra pyr - pur :

Não é fácil pô-la em relação com a língua helênica, além de ser um fato que os Frígios empregavam esse mesmo termo, com ligeira modificação (410 a).

Observa-se, a partir do exemplo dado, que Platão tem uma certa consciência etimológica. Aliás, a origem estrangeira das palavras é perfeitamente explicada, hoje, pelo parentesco do grego com o sânscrito.

Finalmente, do exame da etimologia, além das contribuições lingüístico-semânticas - primitivas, é verdade -, fica a questão da imitação da própria natureza da coisa, feita por meio da voz, de cada coisa que se imita e nomeia.

A escrita

Platão fala da escrita, mas não emprega o conceito de texto, menos ainda de textualidade, conceitos, hoje, em voga, principalmente nos estudos semânticos da linguagem, em particular pela Análise do Discurso e pela Lingüística Textual. Realmente, nem toda a escrita é texto. Um conjunto de frases ou uma simples seqüência lingüística não identifica o texto e não oferece uma textualidade. São necessárias outras qualidades, como a coerência, a organização lógica e estética. Para Guimarães (1995: 77) são necessários dois funcionamentos próprios da textualidade: coesão e consistência:

A coesão diz respeito às relações que reenviam a interpretação de uma forma à outra, numa seqüência do texto. A consistência diz respeito às relações que reenviam a interpretação de uma forma ao acontecimento enunciativo.

É da essência do texto não se bastar a si mesmo, apesar de sua autonomia lingüística. Há uma produção e uma recepção do texto que perpassa a organização de seus elementos, pois todo texto resulta de um processo dialético ou simplesmente dialógico. Fávero (1993: 7), a propósito, afirma:

O texto consiste, então, em qualquer passagem falada ou escrita que forma um todo significativo independente de sua extensão. Trata-se, pois, de um contínuo contextual caracterizado pelos fatores da textualidade: contextualização, coesão, coerência, intencionalidade, informatividade, aceitabilidade, situacionalidade e intertextualidade.

Hoje, ensina-se a tipologia textual, mas ainda não se reflete suficientemente sobre a questão da verdade. Será que os textos escritos, em tão grande quantidade, nos jornais e livros, não são simulacros, veículos da ideologia, e não da verdade? Sem dúvida, a determinação ideológica revela-se, em toda a sua plenitude, no componente semântico do discurso subjacente ao texto. A Análise do Discurso procura desfazer a ilusão idealista de que o homem é senhor absoluto de seu discurso. Ele é, antes, servo da palavra, uma vez que temas, figuras, valores, juízos provêm das visões de mundo existentes nas formações social, ideológica e discursiva do homem deste final de século.

Platão não pensava assim. Censura os discursos que não nascem do próprio espírito do autor, que não verdadeiros escritos da alma, tendo como tema o justo, o belo, o bom. Paradoxalmente, sabe-se que o próprio filósofo não escreveu o mais importante de sua doutrina por considerar a escrita instrumento insuficiente para realizar esta finalidade.

CONCLUSÃO

O diálogo Crátilo só pode ser entendido quando situado na obra de Platão e no contexto da filosofia grega. Desta maneira os objetivos do diálogo parecem adquirir sentido. Assim, os argumentos de Sócrates contra Hermógenes e Crátilo ganham certa coerência. Assim também a figura do nomoteta (= o legislador) e do dialético, do conceito do nome como meio de conhecimento das coisas, a partir da Teoria das Formas, pode ser compreendida.

Por outro lado, a questão do nome, no Crátilo, traça o percurso de uma concepção da linguagem em Platão. Se ele concebe a linguagem como um meio, um instrumento sensível incapaz de traduzir o mundo inteligível das Formas e do Bem, por outro lado, a insuficiência da linguagem e da escrita é atenuada através da articulação da retórica com a dialética, e através do diálogo, pois, o diálogo, como forma expressiva e comunicativa, possui uma forte dimensão metafórica, ambígua, dramática, que exige da linguagem uma constante recriação lingüística. A circularidade do diálogo atenua a fixidez da linguagem.

Afirmou-se acima (p. 12) que o homem é servo da palavra, uma vez que temas, figuras, valores, juízos provêm de sua visão de mundo condicionada à formação social, ideológica, discursiva. Em outras palavras: na perspectiva da história das ciências sociais não há linguagem neutra, não há discurso neutro.

E no que diz respeito às ciências duras, pode-se dizer que a ciência é neutra?

Entre os estudiosos da história da ciência (década de 60/70), alguns admitiam um discurso que assegurava que o cientista, dentro do laboratório, pode ser neutro. Seu trabalho, que consiste em produzir conhecimento, por ser objetivo, estaria isento de influências externas.

Mas será possível deixar de fora o social, quando se entra num laboratório? Na verdade, assim como a linguagem das ciências sociais é perpassada pela ideologia, assim também as ciências naturais, segundo os estudos mais recentes, não estão dissociadas do contexto social, haja vista, por exemplo, a presença de ideologias racistas em certas produções científicas.

Do exposto se conclui que a linguagem, como manifestação de idéias, seja das ciências sociais, seja das ciências naturais, não é neutra. Conclui-se também que o diálogo de Platão - Crátilo -, como escrito básico do pensamento grego sobre a linguagem, revela questões lingüísticas e filosóficas que desafiam a investigação científica até os dias de hoje.

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