O Futebol e o Riso na Voz de Stanislaw
A Tradição Lúdica nas Crônicas
Esportivas de Sérgio Porto

Regina Helena Pires de Brito (Mackenzie e Univ. do Minho)
José Carlos Marques (USP)

Um Gênero Menor

“A crônica não é um gênero maior”: a definição de Antonio Candido (1993) sobre a crônica poderia ser estendida, há algumas décadas, às editorias de Esporte dos jornais brasileiros. O percurso percorrido pelo futebol entre o amadorismo e o profissionalismo em nosso país tem sua similaridade na trajetória da imprensa esportiva. Até o início da década de 1940, o cronista esportivo ocupava a posição mais baixa na hierarquia dos jornais, e o futebol mantinha discreto destaque na imprensa escrita. Com a atuação do jornalista Mário Filho (irmão de Nelson Rodrigues), houve a valorização do ‘métier’ do repórter esportivo, a partir da promoção de competições, even­tos, notícias e fatos - em suma, do próprio espetáculo. A invenção do profissional da crônica de futebol é, desse modo, simultânea à do pró­prio futebol profissional no Brasil: o jornal criava a demanda para a produção do evento, e este fornecia elementos para a atuação do homem da im­prensa esportiva. Se, por um lado, criou-se uma tendência extremamente tecnicista na análise dos jogos por parte de alguns jornalistas brasileiros, por outro, sempre houve aqueles que preferiram cultivar textos em que predominassem caraterísticas literárias, seja pela construção narrativa do fato, seja pela construção poética ou imaginária do texto. Entre estes autores, destacam-se Nelson Rodrigues - o mais profícuo cronista brasileiro de futebol de todos os tempos -, Stanislaw Ponte Preta, e, mais recentemente, José Roberto Torero, Luis Fernando Veríssimo, Mario Prata e João Ubaldo Ribeiro.

O autor cuja obra será objeto deste trabalho, Stanislaw Ponte Preta, é o pseudônimo usado pelo jornalista carioca Sérgio Porto. Nascido em 11 de janeiro de 1923, Porto começou a trabalhar em jornal a partir de 1949 fazendo reportagens policiais e esportivas. Essa experiência certamente aju­dou-lhe a aguçar o coloquialismo descontraído e o estilo irreverente que iriam notabilizá-lo como um dos principais homens da imprensa brasileira nos anos 50 e 60. Depois de trabalhar na revista Sombra e no Diário Carioca, ambos no Rio de Janeiro, Sérgio Porto transferiu-se para o jornal Última Hora, a convite de Samuel Wainer - proprietário do periódico. Foi nesse veículo que ganhou notoriedade e que consagrou seu talento humorístico, repartido posteriormente em diversos outros jornais e revistas, além de contribuições no rádio e na TV como redator, locutor e apresentador. O excesso e a diversidade de atividades a que se entregava, aliados a uma saúde debilitada, fulminaram Sérgio Porto com uma seqüência de três enfartes. O último deles, em 29 de setembro de 1968, abreviou, aos 45 anos, a carreira de uma das mais divertidas figuras que o jornalismo brasileiro conheceu e que teria completado, em 2003, seus 80 anos de vida.

O pseudônimo Stanislaw Ponte Preta começou a ser utilizado por Sérgio Porto no Diário Carioca, inspirado no nome de um personagem satírico de Oswald de Andrade - o Serafim Ponte Grande. Inicialmente, a intenção era fazer uma crítica irônica aos cronistas sociais supervalorizados na época, mas com o tempo seus escritos estenderam-se também à discussão de assuntos sociais brasileiros e outros relacionados ao cotidiano e à vida artística. É de Stanislaw Ponte Preta, por exemplo, a criação dos personagens e textos mais conhecidos de Sérgio Porto: Tia Zulmira, Primo Altamirando, além da célebre seqüência de crônicas do Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), publicadas em dois volumes na década de 1960.

Por não ser um “gênero maior”, como afirmou Antonio Candido, a crônica fica assim mais perto de seus leitores, ajustando-se à sensibilidade de todo o dia, por meio da elaboração de uma linguagem que fala de perto ao nosso modo mais natural. Assim, a crônica faz uso de grande despretensão, utiliza quase sempre o humor e destaca o miúdo para nele mostrar uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Além disso, ela não tem pretensões a durar: é filha do jornal e da era da máquina; não foi feita originariamente para o livro, mas sim para essa publicação efêmera (o jornal). Abriga-se num veículo transitório e estabelece a dimensão das coisas e das pessoas. Esse caráter despretensioso, insinuante e revelador da crônica, ensina a conviver intimamente com a palavra. Por meio da busca da oralidade na escrita, quebra-se o artifício e busca-se a aproximação com o que há de mais natural no modo de ser de nosso tempo. Escrever crônica obriga, portanto, a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores acima de sua singularidade e das suas diferenças. O papel da simplicidade, brevidade e graça, próprias da crônica, deixa de ser comentário argumentativo e expositivo, para colocar de lado a seriedade nos problemas e transformar-se em aparente “conversa fiada”. Seu amadurecimento se dá numa composição de um fato simples, analisado com um toque humorístico. Com o tempo, a crônica largou a intenção de informar e comentar, para apenas divertir. Utilizando uma linguagem mais leve e descompromissada, afastou-se da lógica argumentativa ou da crítica política para penetrar poesia adentro. A crônica estabeleceu, então, certa na­turalidade e simplificação de linguagem, criando um tom menor de ocorrência familiar e transformando a literatura em algo íntimo da vida de cada um.

A crônica ocupa ainda um espaço fixo no jornal, usa uma linguagem diferente, apelando para o eu, usa e abusa do cotidiano, com retratos, tipos, cenas cômicas, comentários. O cronista retrata o tempo presente, sua matéria principal, daí a referência constante ao passado imediato, donde ele busca o sentido das coisas nas pequenas cenas, fatos, costumes e palavras do dia-a-dia. Recorre o cronista, assim, ao uso da metonímia, ao isolamento do detalhe significativo, compondo uma coluna em que a chamada é o próprio nome e o assunto refere-se sempre a esse eu, ao sujeito que sobrevive diariamente ao ritmo acelerado dos meios de comunicação de massa.

Coloquialidade e Oralidade

Neste trabalho, analisamos as crônicas reunidas no livro Bola na rede: a batalha do bi (lançado em 1993 pela Editora Civilização Brasileira), escritas por Stanislaw em 1962, por ocasião da participação do Brasil na Copa do Mundo de futebol do Chile. Primeiramente, pode-se dizer que a escrita de Stanislaw é um grande exercício do olhar, já que ele escreve os textos sentado na tribuna do Estádio, ao mesmo tempo em que o jogo acontece. Trata-se de comentários jornalísticos que compõem uma espécie de “reportagem esportiva”, em que a metalinguagem e o tom ficcional estão sempre presentes. E o tempo da enunciação mistura-se ao tempo do enunciado, o que aproxima a escrita da linguagem falada em função da instantaneidade do discurso. Vejamos os exemplos abaixo:

São duas horas e dez minutos do dia 2 de junho e o papai já está no estádio de Sausalito, em Viña del Mar.(...) Estas páginas vêm sendo escritas no correr dos jogos mesmo. A pressa em remetê-las para o Brasil e a obrigação de escrever para vários jornais, me obriga a isto. Mas chega de fazer hora, que eu não sou locutor esportivo, para ficar descrevendo “o tapete verde”,“a tarde primaveril” e outras bossas. Vou tomar um cafezinho do IBC, que aqui é grátis e tem peru aos potes. (PONTE PRETA, 1993: 27)

Outra vez escrevendo à maquina, com leonor correndo no campo. Isto é de lascar, mas a culpa é minha: não tinha nada que assinar o contrato para escrever estas páginas. Enfim, aqui está a intimorata semi-portátil na Tribuna Pacífico de la Prensa, do Estádio Nacional de Chile, pronto para contar o que acontecerá. (Ibid. p. 55)

Stanislaw assume sem rebuços a condição de escrever seus textos simultaneamente ao correr dos fatos, o que implica ainda mais subjetividade em sua narrativa: Fizemos um relato que, francamente, não sabemos como saiu. Pois, como já tínhamos dito, estes escritos saem diretamente da tribuna de imprensa deste estádio para o aeroporto, em Santiago (Ibid. p. 47). Desse modo, abre-se espaço para a quebra da linearidade do texto: não observando a lógica digital da linguagem escrita, o escritor prefere vivenciar sua escrita enquanto evidência oral. Uma vez manifesta­da a frase, não há como voltar atrás, não há como apagá-la e iniciar um novo período. Tem-se que reelaborar e reiniciar o discurso:

E por falar em penosamente, que coisa de amargar é escrever Garriegd... isto é, Garrijn&... não, Garrincha, e sai GarR8cha. Esta gracinha, diga-se bem da verdade só conseguimos fazer agora, que o primeiro tempo acabou. (Ibid. p. 41)

É gôoooolll Amatidl... não... Meu Deus... eu juro... é golll A atildo. Não, Amarildo!!! Genial. Brasil, Brasil, BRASIL! Depois que acabar eu explico. Agora de jeito nenhum. (Ibid. p. 43)

Isto é praticamente um jogo ganho. Deus queira que não me engane, pois não terei tempo de mudar estes escritos, antes de entregá-los ao homem que remete nossos trabalhos para o aeroporto. (Ibid. p. 30)

Essa coloquialidade dos textos de Stanislaw remete à obra do pensador suíço Paul Zumthor, cujos estudos se detiveram sobre a pesquisa das formas orais e populares na Idade Média. Para Zumthor, a escritura (a pre­sença do texto escrito e do livro) “freia o movimento dramá­tico” da oralidade. Assim, ainda que circuns­critas ao campo da es­crita, as crônicas ocupam o espaço do “popular”, entendido aqui como oposição a “eru­di­to”. Os valores trazi­dos pela voz e aqueles que a escritura procura impor não conse­guem deixar de cau­sar um desequilíbrio, buscando, assim, apoio na força da imagem e da ex­pressão. A crônica seria, portanto, um espaço de vibração daquilo que Zumthor chamou de “índi­ces de oralidade”, ou seja, um discurso que fala a própria voz que o carrega. Tem-se, assim, a noção de que o texto escrito, em certo momento, exis­tiu como elemento oral, ou seja, ele de­veria ser lido em voz alta para dar conta de todos seus ele­mentos vo­cais. Daí a incorporação do coloquial no texto escrito:

Quê qui há ??? Tá parecendo o misto do Campo Grande em dia de treino. (Ibid. p. 19)

Pelé dá uma chapuletada com força total e pegou Vavá em local ingrato. O centroavante brasileiro fechou que nem canivete. Ficou descansando na grama um pouquinho e levantou com mais saúde. (Ibid. p. 21)

O uso de termos coloquiais e de uma intensa oralidade no texto escrito permite o surgimento de diversas formações neológicas e de mecanismos de linguagem que remetem aos elementos formadores de uma “semiologia do neobarroco”, proposta pelo cubano Severo Sarduy (1979):

O jogo vai indo mais frio que rabo de foca. Só aos 5 minutos esquentou um pouquinho, com uma escapada do papai Jelinek, que mandou a infiel por cima da janela de Gilmar. A resposta do Brasil veio um minuto depois, com um chute de Pelé que bate na o­relha de Populhar. Populhar por populhar, Pelé é mais. (PONTE PRETA, 1993: 29) (aproximação entre o nome do atleta tcheco e o adjetivo de nossa língua.)

Mas - como diria Tia Zulmira - em bola chilena e vedete não se pode confiar: a primeira é muito leve, a segunda é muito leviana. (Ibid, p. 69-70) (mais um recurso de artificialização do barroco, ao aproximar-se os termos “leve” e “leviana”, aparentemente desconexos, mas que se unem na frase nos planos do conteúdo e da expressão.)

Pega a infiel no meio do campo e sai garrinchando até a pequena área, onde sofre um pênalti legal. Todo mundo olha pro suíço. Ele está comendo queijo e consertando relógio. (Ibid, p. 19-20) (note-se como o termo garrinchan­do, acompanhado dos demais fonemas presentes ao longo do período, notadamente os representados pela fricativa /f/ e pelo fonema línguo-palatal /j/ , refletem o próprio ziguezague gongórico dos dribles de Mané Garrincha.)

Esse tom coloquial da linguagem cria uma proximidade com o interlocutor, daí o uso tão acentuado das funções fática, conativa, poética e metalingüística, conforme esquema de Roman Jakobson. E mais: provoca o estreitamento e a cumplicidade entre emissor e destinatário, instaurando o tom de familiaridade, de “conversa fiada”, de confidência, que caracteriza a crônica. Esse grau de cumplicidade subverte novamente o caráter de seriedade do discurso, permitindo o aparecimento da metalinguagem, já que o próprio autor define o caráter de seu texto:

Agora um coleguinha radialista vem pedir para Stanislaw dar um pulo na cabine da Emissora Continental e dizer pelo microfone o que acha da partida. Vocês esperam aí, que eu volto já. Olha nós de novo. Dissemos pelo microfone que isto será um Santos X Jabaquara, e que Deus ouça a flor dos Ponte Pretas. (Ibid, p. 56)

Agora, que a turma está no meio de campo, fazendo olé, vamos explicar como foi o primeiro. Creio que é a primeira vez na história da crônica esportiva que se descreve o primeiro gol depois do segundo. Mas naquela hora não podia ser... Acabou o jogo... Mas, não podia ser - dizia eu. Agora vai. (Ibid, p. 43-4)

Riso e Ironia Antropofágicos

A relação entre os textos de Stanislaw e as crônicas esportivas escritas por Nelson Rodrigues pode ser estabelecida pela permanência da narrativa ficcional no jornalismo impresso diário e pela presença forte da oralidade na escrita. Tanto Nelson quanto Stanislaw incluem o oral no escrito, fazendo parte dessa cultura da “boca” ligada à fala. Se a voz encontrou lugar propício para o seu desenvolvimento no continente americano, ela igualmente achou seu lugar nesses autores, que deram conta do universo mestiço, aberto e migrante da América. Eles criam um sistema de artificialização e de carnavalização tão intensos que se tornam sempre transbordantes e excessivos, como o Severo Sarduy conceitua o neobarroco. Esse sistema aproxima-se ainda daquilo que o também escritor cubano Lezama Lima chamou de “arte da contraconquista” na América. Vejamos mais este exemplo de como o árbitro suíço do primeiro jogo do Brasil na Copa de 62, contra o México, é caracterizado por Stanislaw:

O juiz é um camarada nascido de uma mistura de raças de lascar. Chama-se Arturo Yamasaki e é filho de um peruano com uma japonesa. (...) Sai de campo, sob aplausos delirantes da torcida, a banda de música. Chileno é tarado por banda de música. É que nem nós com mulher. Entrou o árbitro inca-nipônico (nipoincaico, se preferem) e está apitando mais que panela de pressão, chamando os times. (Ibid, p. 55)

As referências estrangeiras carregadas de ironia não param por aí: ao apresentar a Seleção da Espanha (formada por dois atletas “de peso” que haviam se naturalizado espanhóis para jogar a Copa - o argentino Di Stéfano e o húngaro Púskas), Stanislaw a compara à Legião Estrangeira:

Já estão os onze brasileiros de amarelo e vários espanhóis, paraguaios, uruguaios, argentinos, húngaros, etc. de camisinha vermelha. (...) (Os brasileiros) Jogam só na metade do campo da Legião, porque, do lado da equipe brasileira, a bola só vai no fim do mês, para receber o ordenado. (Ibid, p. 40)

Da mesma forma, destrói-se o inimigo instaurando-se o riso na alegoria da frase. Ao descrever um chute a gol do Brasil na partida contra a então Tchecoslováquia, Stanislaw afirma que Zito Solta uma bomba que deve ter amassado um pouquinho a cortina de ferro. O riso cria, assim, esse jogo entre identidade e alteridade, sem ética e de forma desrespeitosa, possuindo um caráter quase exterminador. O riso destrona, portanto, as identidades e tem esse pendor à incorporação do outro e do alheio.

Se o Brasil insistir pelas pontas, ganha o jogo. O técnico tcheco já percebeu isso e vem correndo até aqui perto para dar instruções. Eu ouvi tudo, pois falo a língua deles muito bem. Ele disse: ‘Dhuitzh viak ighty wuaikt’. Os jornalistas brasileiros reclamam e ele dá um adeusinho e sorri para a gente. Que simpático! (Ibid, p. 29)

Essa espécie de linguagem moleque e travessa acaba por destruir os padrões da norma culta da linguagem e, junto com o riso, cria uma nova linguagem, de cores e modos bem cariocas. Vejamos esses casos do uso de termos e frases coloquiais, quebrando aos poucos a austeridade do discurso:

Brasil em campo de camisinha amarela. Agora os tcheco-eslovacos... Chi, quando o jogo começar não vai dar tempo de escrever o nome desses caras. É grande demais. Fica combinado o seguinte: daqui por diante os tcheco-eslovacos ficam sendo só tchecos, tá? (Ibid, p. 65)

A instauração do riso estende-se ainda além, intensificando a força da expressividade do texto e das frases. E a entonação expressiva também se presentifica como “particularidades constitutivas do enunciado”, para utilizar uma terminologia de Bakhtin: “O sistema da língua possui as formas necessárias para manifes­tar a expressivi­dade, mas na própria língua as unidades sig­nificantes carecem, por sua natureza, de expressividade, são neu­tras” (BAKHTIN, 1992: 315). É por isso que podemos dizer ainda que a entonação expressiva não pertence à palavra, mas ao enunciado. A emoção, a subjetividade, o juízo de valor, a ex­pressão são elementos alheios à palavra dentro da língua; estes surgem graças ao processo de sua atualização no enunciado con­creto:

O microfone anuncia para Jelinek (n.º 11), que sua filha acaba de nascer, em Praga, e sua esposa está passando muito bem. O homem pula em campo e é abraçado pelos companheiros. O estádio prorrompe em palmas. Façamos votos que sua estréia como pai deixe-o nervoso como ponta esquerda. (PONTE PRETA, 1993: 28)

Agora um coleguinha radialista vem pedir para Stanislaw dar um pulo na cabine da Emissora Continental e dizer pelo microfone o que acha da partida. Vocês esperem aí, que eu já volto. Olha nós de novo. Dissemos pelo microfone que isto será um Santos X Jabaquara, e que Deus ouça a flor dos Ponte Pretas. (PONTE PRETA, 1993: 56)

Trata-se de dois exemplos claros do conceito de subjetividade tratado por Emile Benveniste, segundo o qual ela se configura exatamente nessa capacidade de o locutor propor-se como sujeito, por meio de uma enunciação que se identifica com o próprio ato. A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não emprego ‘eu’ a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um ‘tu’ (BENVENISTE, 1976). Tudo isto pode ser estendido à maneira como Stanislaw coordena seu texto, iniciado na primeira pessoa do singular e sem­pre utilizando as diferentes possibIlidades das funções da linguagem (JAKOBSON, 1969): as funções fática e conativa, por exemplo, estão presentes a todo o momEnto em seus textos, à semelhança do que ocorria com as crônicas de Nelson Rodrigues, que se iniciavam invariavelmente com a expressão “Amigos” e man­tinham um diálogo contínuo com os leitores. Stanislaw estabelece mecanismo similar:

Agora são 2 h e 30 min. Um locutor uruguaio começa a irradiar atrás de mim... (p. 18) (...) E estávamos aqui de cabeça baixa, batendo as teclas desta intimorata Remington semi-portátil, quando o estádio prorrompeu num berro. Era o segundo gol do Chile lá em Santiago. Vão assustar a vovozinha! (PONTE PRETA, 1993: 21)

Outra aproximação possível com uma imagem muito particular de Nelson Rodrigues é a referência à “grã-fina das narinas de cadáver”, aquela que, ao chegar a primeira vez ao Maracanã, pergunta “quem é a bola”. Stanislaw repete a construção irônica ao descrever os representantes da alta burguesia paulista e carioca entre os torcedores que foram ao Chile acompanhar as partidas da Seleção:

Como veio Grã-fino do Rio e de São Paulo para Viña del Mar, irmãos. E a maioria não entende bulhufas de futebol. (...) Mal começou a partida contra o México e um deles perguntou ao jornalista Sandro Moreyra quem era o Garrincha, Sandro apontou Carbajal, o goleiro mexicano, e disse: “É aquele ali”. (PONTE PRETA, 1993: 34)

O uso de termos e frases coloquiais popularizam assim a linguagem e a inscrevem num tom de proximidade com o interlocutor. Bakhtin também vê, nessa peculiaridade do texto, a presença de um estilo próximo ao familiar, ou seja, aquele estilo que permite o aparecimento de estratos da língua que, até então, nela se encontravam proi­bidos, como o riso. Esse estilo familiar permite, por exemplo, que se crie o espaço, mais uma vez, da quebra da linearidade a que não estamos acostumados na linguagem jornalística comum. A imagem de Pelé, contundido e forçado a continuar na partida, ilustra bem esse processo: Voltou Pelé, e sinto informar que está na ponta direita, inteiramente sem função. Parece até o Tancredo Neves. (p. 30) A referência irônica ao papel desempenhado por Tancredo, figura moderada na época do governo João Goulart - cuja política externa procurava aproximar-se de governos de orientação comunista -, cria o paralelo com a distensão muscular que deixara Pelé igualmente sem função na partida.

Vimos, desse modo, como o riso torna-se componente vital da crônica enquanto gênero, permitindo relacionar contrastes que ainda não foram colocados em relação. O riso provoca a aproximação do oposto, e a ironia destrói a pesada oração enfática do discurso, conforme Bakhtin. Pela paródia e pelo riso invertem-se posições previamente fixadas, rompem-se fronteiras e contamina-se o inimigo incorporando-o e, ao mesmo tempo, deixando-se por ele incorporar, numa promiscuidade geradora que embaça as diferenças e as configurações definidoras, desnudando o outro de sua couraça impermeável. (BAKHTIN, 1992: 77) Um exemplo dessa ocorrência se dá no seguinte trecho:

Como tem carabineiros no Chile, companheiros. A impressão que a gente tem é que, se levantar o tampo de uma empada, sai carabineiro de dentro. Tem carabineiro em tudo que é lugar. Antes de começar o jogo Brasil X México, entrei no estádio, vi aquela fila imensa de carabineiros e comentei com um coleguinha: “Isso tudo aí é pra marcar o Garrincha.” (PONTE PRETA, 1993: 33)

Apesar de instaurar-se o cotidiano na linguagem, quebra-se a linearidade e suspende-se a expectativa anunciada anteriormente por meio do humor. E esse percurso realizado pelo discurso apóia-se o tempo todo no uso dos pressupostos, por meio do conceito de implícitos estabelecido por Oswald Ducrot (Cf. BRAIT, 1994/5). Segundo ele, o ato de pressupor configura-se numa tática argumentativa, na qual o enunciador leva o enunciatário a aceitar o conteúdo pressuposto por força da utilização de um discurso persuasivo. O pressuposto cria, assim, uma cumplicidade entre os dois personagens do diálogo (destinatário e receptor), impregnando ainda, no ato de comunicação, as marcas do emprego retórico da linguagem. São tantos os exemplos que o leitor precisa familiarizar-se rapidamente com o mundo do futebol, sob pena de perder as referências contextuais. E isso provoca ainda mais o estreitamento e a cumplicidade entre locutor e interlocutor, instaurando o tom de familiaridade, de “conversa fiada”, de confidência, que caracteriza a crônica. Vejamos alguns casos de pressupostos:

Grande juiz, esse russo. Vou aproveitar que a bola saiu e perguntar o nome dele ao suíço aqui atrás. É Nicolai Latichev. Eu falando francês com o suíço pareço até índio de fita em série. Preciso treinar o idioma da Brigitte. Quando voltar pro Rio vou arranjar uma francesa pra fazer um individualzinho. (PONTE PRETA, 1993: 67) (novas referências irônicas, desta vez aos seriados americanos com a presença de índios, que falavam sempre com o mesmo sotaque postiço; à atriz francesa Brigitte Bardot, ícone da “femme fatale” dos anos 60; e ao estereótipo da fina prostituição dos cabarés franceses com a expressão “fazer um individualzinho”, que ambiguamente remete às aulas particulares de francês necessitadas pelo autor.)

A defesa fica olhando Hernandez mandar uma bomba que Deus me livre. Gilmar agarrou leonor pela saia. Não demorou muito e Garrincha entrou na área, driblou João I, João II, cobriu João III e, quando ia chutar, João IV fez pênalti. Seu Godofredo disse que não. Se o suíço deixasse, o apito apitava sozinho. (Ibid., p. 19) (leonor é o termo coloquial e familiar atribuído à bola do jogo; João era o nome dado por Garrincha a seus marcadores estrangeiros - não sabendo pronunciar os nomes dos atletas europeus, Mané Garrincha os definia como Joões.)

Deve ter corintiano e rubro-negro à beça aí no Brasil, dizendo que “nós já é bi”. (Ibid., p. 69) (referência ao fato de as torcidas do Corinthians e do Flamengo - o rubro-negro - representarem as camadas mais populares, daí o “erro” de concordância proposital.)

Esse grau de cumplicidade entre destinador e destinatário subvertem novamente o caráter de seriedade do discurso e permitem o aparecimento da metalinguagem, já que o próprio autor define o caráter de seu texto:

E como se não bastasse o Pelé quebrado, agora é esta porcaria desta máquina que quebra a tecla do retrocesso. ((Ibid., p. 31)

Meia hora já. Desculpem estar escrevendo menos hoje, mas é a finalíssima e eu não tenho sangue de barata, pombas! (Ibid., p. 67)

Ao definir o caráter de seu próprio texto, o autor investe diretamente no sentido de figurativizar o discurso, instaurando o espaço da ficção, da literariedade da linguagem. E, como pudemos verificar, trata-se de textos que perfazem o mesmo caminho que podemos vislumbrar na crônica literária: inicia-se com certa despretensão, utiliza-se quase o tempo todo do humor, trabalha intimamente com a palavra, apela para o eu, faz uso da metonímia, da brevidade e da simplicidade. Mas não se trata mais da lógica argumentativa ou da crítica política em que se baseou a crônica brasileira no século XIX: trata-se agora do relato divertido, lúdico e quase debochado, cuja paternidade pode ser atribuída a Nelson Rodrigues e que encontrou em Stanislaw Ponte Preta um de seus mais legítimos herdeiros - tradição que vem sendo mantida até hoje por diversos cronistas contemporâneos.

Referências Bibliográficas

Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Benveniste, Emile. “Da subjetividade na linguagem” em Problemas de Lingüística Geral. São Paulo: Cia. Ed. Nacional/EDUSP, 1976.

BRAIT, Beth. “A construção do sentido: um exemplo fotográfico persuasivo”. Revista Língua e Literatura, n.º 21, 1994/95.

Candido, Antonio. “A vida ao rés-do-chão” em Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Jakobson, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.

Ponte Preta, Stanislaw. Bola na rede: a batalha do bi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

Porto, Sérgio (Stanislaw Ponte Preta). São Paulo: Abril Educação, 1981 (Col. Literatura Comentada, org. Maria Célia R. Almeida Paulillo).

Propp, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.

Sarduy, Severo. “O barroco e o neobarroco”. Em: Moreno, Cesar Fernán­dez. América Latina em sua lite­ra­tura. São Paulo: Perspectiva, 1979.

Zumthor, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.