Por uma revisão da historiografia
tradicional das línguas germânicas
o conceito de
germance

Aldo Luiz Bizzocchi (CÁSPER LÍBERO e UNIFIEO)

A proposta apresentada neste trabalho é parte de uma teoria mais geral a respeito da gênese lexical e da etimologia nas línguas românicas e germânicas que desenvolvi há alguns anos (Bizzocchi, 1994 e 1998). Faço aqui um recorte específico no que tange à evolução histórica das línguas germânicas.

Como se sabe, as línguas românicas ou neolatinas descendem diretamente do latim vulgar, numa evolução constante que em nenhum momento sofreu solução de continuidade, isto é, ruptura do sistema. Tal fato suscita a questão de sabermos em que instante e por que razão se estabelece o limite entre a língua latina e suas sucessoras históricas. Da mesma forma, as línguas germânicas derivam de um suposto germânico primitivo, ou protogermânico, língua que, embora hipotética, por não existir dela nenhum testemunho escrito, representa para as línguas germânicas o mesmo papel desempenhado pelo latim vulgar em relação às línguas românicas.

O escopo deste trabalho é revisar a divisão historiográfica tradicional das línguas germânicas, tal qual é usualmente apresentada em manuais e trabalhos de filologia e lingüística germânica, como os de Meillet (1917), Karsten (1931), Streitberg (1943) e Krahe (1977), dentre outros. Segundo a concepção tradicional, a história dessas línguas divide-se em dois períodos básicos: o período pré-histórico, ou germânico primitivo, e o período histórico, ou das línguas germânicas modernas. Cremos, no entanto, que tal divisão não é suficientemente específica para explicar boa parte dos fenômenos de evolução fonética e de produção lexical dessas línguas, sobretudo no que diz respeito aos empréstimos vocabulares de origem latina e românica.

Assim, antes de prosseguirmos nossa discussão acerca dessa questão, é prudente definirmos o conceito de língua em que se baseia a historiografia lingüística tradicional. Para tanto, é particularmente ilustrativo o que diz Pisani (1948: 9 s.):

Il concetto di «lingua» è un’astrazione basata su una serie di fatti reali che sono i singoli atti linguistici, unità d’espressione corrispondenti ad unità d’intuizione, dei parlanti. Ma questi atti non sono immaginabili fuori della società, in cui si attuano tutte le capacità umane, ed in cui essi appaiono come delle comunicazioni (un riflesso delle quali sono anche i colloqui dell’individuo con se stesso, i suoi pensamenti dialettici, cioè, di determinate intuizioni); comunicazioni che possono aver luogo solo in quanto l’individuo che parla crea la sua espressione servendosi di certi segni (parole e nessi) da cui l’udente ricrea una intuizione più o meno corrispondente a quella del suo interlocutore. Perché si svolga questa duplice attività da parte di chi parla e di chi ascolta, occorre che ambedue annettano ai segni usati, i quali non hanno di per sè alcun rapporto necessario col loro significato, un valore fondamentalmente uguale. […] Ma naturalmente, servendo ogni volta ad esprimere una nuova intuizione, il segno non può mai avere un valore identico a quello del suo modello, donde un doppio motivo d’innovazione: modificazione del valore, pur riproducendosi sostanzialmente immutata la forma fonica del modello, o modificazione anche della forma fonica di questo.

Solo con una certa approssimazione si può quindi parlare di identità dei segni contenuti negli atti dei singoli parlanti di una data comunità linguistica. Ma sull’ammissione di questa identità si basa il nostro concetto di « lingua », il quale abbraccia i segni comuni agli atti linguistici di una determinata quantità di individui o, se si vuole, il sistema d’isoglosse riunente tali atti linguistici. Cosicché esso può assumere ambito maggiore o minore, temporalmente e spazialmente, a seconda degli atti singoli considerati. […] Data la natura del concetto di « lingua », è chiaro […] che la determinazione di certe « lingue » è fatta sulla base di altri principii che non strettamente glottologici: motivi storici, culturali, tradizionali ci fanno decidere a parlare come di un tutto della lingua latina dal III o magari dal VI secolo a. C. fino al V-VI d. C. e di una lingua italiana dal duecento al giorno d’oggi, e non p. es. di tutta una lingua abbracciante la tradizione latina e neolatina […].

Tradicionalmente, divide-se a história lingüística do latim em três etapas: latim arcaico, latim clássico e baixo latim ou latim medieval. Paralelamente ao latim clássico e medieval, de caráter culto e literário, falava-se o latim vulgar, do qual derivam as línguas românicas. Esse latim vulgar na verdade nunca se constituiu numa língua fixa e estável. Com efeito, era falado ao longo de uma grande extensão territorial, que incluía a Ibéria, a Gália, a Itália, os Alpes, a África do Norte, etc., e, em cada uma dessas regiões, se havia sobreposto a uma língua preexistente, a que chamamos língua de substrato, falada pelas populações autóctones antes da conquista romana, e que, por vezes, deixou traços na fonética, na morfologia e no léxico do latim dessas populações. É, pois, natural que a diversidade dialetal do latim vulgar fosse bastante significativa. Não obstante, enquanto o Império Romano sobreviveu, a comunicação entre as diversas províncias permaneceu suficientemente intensa para impedir que divergências dialetais se aprofundassem a ponto de romper a possibilidade de intercompreensão. Já a partir do definitivo esfacelamento do Império, no século V de nossa era, as comunicações se tornaram mais difíceis, as relações comerciais entre as províncias cessaram e a cultura literária, outro importantíssimo fator de união entre os falantes do latim, experimentou um período de extrema decadência. Some-se a isso a invasão dos territórios romanizados por povos germânicos que, embora em muitos casos adotando a língua latina - ou melhor, seus dialetos locais -, aportavam a esses dialetos seus hábitos lingüísticos próprios, contribuindo assim para aumentar a diversificação lingüística entre as regiões. As línguas germânicas representavam, desse modo, línguas de superstrato em relação ao latim vulgar das províncias invadidas. Inicia-se assim um novo período na história da língua, em que não mais convém falar-se de um latim vulgar, mas sim de um romance, ou, antes, de vários romances.

O período romance principia com a queda do Império Romano do Ocidente e se estende até o momento em que alguns de seus dialetos ascendem à posição de línguas literárias e de cultura, passando os demais dialetos a ser vistos não mais como dialetos do latim ou do romance, mas sim como variedades regionais das línguas literárias utilizadas nos territórios em que são falados.

Percebe-se assim que a história lingüística latina pode ser dividida didaticamente em três grandes períodos: um período latino vulgar, um período romance e um período neolatino, que por sua vez se dividirá em antigo (séculos IX a XI), médio (séculos XII a XV) e moderno (a partir do século XVI ).

Uma divisão historiográfica semelhante pode ser aplicada ao domínio das línguas germânicas. É bem verdade que as obras tradicionais de filologia germânica distinguem apenas dois períodos, um chamado de germânico comum, e outro em que já aparecem os testemunhos escritos dos dialetos germânicos, dando origem ao período literário. Contudo, se observarmos mais atentamente a história dos povos germânicos, veremos que muito do que dissemos acerca da tradição latina em suas várias fases se aplica também ao germânico. Em primeiro lugar, o germânico primitivo, também chamado de protogermânico, embora nunca tenha sido documentado, tendo sido reconstruído por comparação com as demais línguas indo-européias e a partir das evidências de suas línguas sucessoras, apresenta uma fase arcaica, comumente denominada pré-germânico, postulada pelos germanistas para explicar a transição entre o indo-europeu e o germânico propriamente dito, e uma fase de aparentemente maior estabilidade lingüística, em que os principais traços das línguas germânicas já estão consolidados: trata-se do acima citado germânico comum. A exemplo do latim vulgar, o germânico comum provavelmente nunca foi uma língua unitária, mas antes um conjunto de dialetos de origem indo-européia portadores de isoglossas comuns, que os aproximavam mutuamente e, ao mesmo tempo, os distinguiam dos demais dialetos indo-europeus: dialetos itálicos, célticos, gregos, bálticos, etc. Nessa etapa, tais dialetos eram ainda suficientemente próximos, em virtude de as tribos que os falavam se encontrarem circunscritas a um território relativamente pouco extenso. Entretanto, a partir sobretudo do século V, impelidos pela invasão dos hunos de Átila vindos do Oriente, os germanos dispersaram-se progressivamente, especialmente nas direções oeste e sul, havendo inclusive algumas tribos invadido o território romano e fundido-se aos povos aborígines, como é o caso dos francos na Gália. A partir desse momento, a diversidade lingüística entre os germanos também começa a intensificar-se, de modo a podermos dizer que tal fase de sua história se compara ao período romance, razão pela qual propomos aqui denominar o germânico dessa época de germance, por analogia ao romance.

O período germance se inicia, portanto, a partir da grande onda de invasões e incursões realizadas pelos germanos ao Império Romano (especialmente durante os séculos IV e V) e perdura até o início da tradição literária das línguas germânicas.

Em síntese, propomos a divisão da história do germânico em três etapas distintas, a saber: um período germânico comum, um período germance e um período neogermânico.

A postulação de um estágio intermediário entre o germânico comum e as línguas germânicas historicamente documentadas, que estamos aqui denominando período germance, é, a nosso ver, de suma importância para o estudo da lingüística germânica, uma vez que muitos fenômenos fonéticos, morfológicos e léxicos comumente atribuídos ao germânico comum ocorreram na verdade já no período germance, como, por exemplo, a passagem de ē germânico a ā (por exemplo, germânico *lētana > antigo alto alemão lāZZen), o fenômeno da fratura vocálica (por exemplo, germânico *gulþam > inglês gold), o desaparecimento do dual e das declinações e o empréstimo de vocábulos gregos e latinos, contemporâneo da intensificação do contato entre romanos e germanos.

Como se sabe, o grego e o latim, únicas línguas de cultura da época, possuíam por isso mesmo um estatuto hierárquico superior em relação às línguas vulgares, tanto românicas quanto germânicas. Estas se desenvolveram como línguas literárias segundo o modelo greco-latino. Desse modo, o parentesco existente entre o latim clássico e as línguas românicas, por ser indireto, já que, como vimos, as mesmas na verdade provêm do latim vulgar, não torna tais línguas mais propícias ao influxo das línguas clássicas do que o seriam as línguas germânicas. Nesse sentido, o efeito da influência greco-latina é exatamente o mesmo sobre ambas as famílias lingüísticas. Esquematizemos, então, o processo evolutivo dessas línguas e a relação existente entre as mesmas e as línguas clássicas conforme gráfico abaixo.

O período romance/germance é de fundamental importância para a gênese da Civilização Ocidental, pois é exatamente nessa etapa histórica que se dá o cruzamento entre as duas culturas básicas que compõem essa civilização: a cultura greco-romano-cristã e a cultura germânica. Durante o período latino/germânico primitivo, a maior parte do acervo léxico dessas línguas era autóctone, com uns poucos empréstimos feitos ao céltico e ao grego (no caso do latim). Na fase romance/germance, o intercâmbio de valores culturais e ideológicos (cristianismo, feudalismo, cavalheirismo, amor cortês, direito consuetudinário, etc.) implicou o intercâmbio de palavras. Nesse momento, os diversos romances se povoam de expressões germânicas (por exemplo, português guardar < germance wardan < germânico *wardōn, português dançar < germance *dintjan < germânico *dantjōn, etc.), ao mesmo tempo que os germances recebem contribuições léxicas românicas (por exemplo, inglês cup < romance cuppa < latim cuppa, inglês dish < romance discu < latim discus, etc.).

Como dissemos anteriormente, a postulação de uma etapa lingüística germance entre o germânico comum e as línguas germânicas que conhecemos hoje é fundamental para a explicação e a compreensão de uma série de fenômenos que, de outra forma, são analisados e interpretados de modo muito mais complexo e, às vezes, errôneo.

Referências Bibliográficas

BIZZOCCHI, A. L. Processos lexicogênicos em línguas românicas e germânicas. São Paulo: FFLCH-USP. 1994. [Tese de Doutorado]

BIZZOCCHI, A. Léxico e ideologia na Europa ocidental. São Paulo: Annablume/Fapesp/Unip, 1998.

KARSTEN, T. E. Anciens germains: intro­duction à l’étude des langues et des civilisations germaniques. Paris: Payot, 1931.

KRAHE, H. Lingüística germánica. Tradução de Maria Teresa Zurdo. Madrid: Ediciones Cátedra, 1977.

MEILLET, A. Caractères généraux des langues germaniques. Paris: Hachette, 1917.

PISANI, V. Introduzione alla linguistica indeuropea. Roma: Edizioni Universitarie, 1948.

STREITBERG, W. Urgermanische Grammatik. Einführung in das ver­gleichende Studium der altgermanischen Dialekte. Heidelberg: [s.ed.], 1943.