A militância lingüística
de Gládstone
Chaves de Melo, meu avô

Luísa Chaves de Melo (UERJ)

 

Fui convidada a participar deste Congresso para contar como era o meu avô, Gládstone Chaves de Melo, em família. Não preciso afirmar a grande felicidade ao saber dessa homenagem póstuma, nem a grande honra de ser eu uma espécie de representante de nossa grande família neste evento. Respondendo ao convite feito, vou, aqui, descrever alguns momentos de nossa vida privada. Vida essa que, conforme aprendi com vovô, recebe tal nome por estar subtraída da ação pública, essa sim, digna de louvor para os gregos, dos quais herdamos esses dois termos. Quando, portanto, poderiam eles imaginar que algum dia haveria essa inversão: o privado ser tão importante quanto a atuação pública, por revelar algo a mais sobre o gênio de cidadãos notáveis, sejam eles políticos, pensadores ou figuras da mídia?

Logo, embora eu esteja em um congresso de nacional de Lingüística e Filologia não pretendo explicar nada, no sentido acadêmico do termo, mas sim, de acordo com sua origem etimológica, aprendida com vovô, abrir caminhos para um melhor conhecimento sobre ele, ao trazer a público cenas de nossa convivência familiar. Assim, se “plicar em latim é dobrar, aqui ex-plico, ou desdobro, um pouco de nossa intimidade.

Pequeno, magro, com óculos grossos de aro preto, tiques e manias várias, sempre de terno e suspensórios, vovô era um ícone em nossa casa. Desde pequena, aprendi a respeitar aquele homem, de honestidade exemplar, que fora vereador e havia escrito inúmeros livros. Sua atuação política, embora desse aos meus olhos status de grande importância, não me impressionava tanto quanto a autoria de vários livros.

Escrever um livro didático-científico, mesmo que eu não soubesse exatamente sobre o que se tratava, era para os meus poucos anos algo inacreditavelmente grande, um feito admirável, um atestado de sapiência, reafirmado pela história familiar, muitas vezes contada, de que meu avô não fizera faculdade de Letras, pois em entrevista oral ganhara o título pornotório saber”. Devo confessar que não sabia, exatamente, o significado de notório, mas a palavra me parecia pomposa e, conseqüentemente, o título também o seria. Na época, achava que o conhecimento era algo pronto, absoluto, que estava nas coisas. Não me ocorria, então, que ele fosse construído através da reflexão, da pesquisa e da experimentação. Ou seja, excluída a literatura, cuja autoria nos era revelada – sabíamos, por exemplo, que a poetisa Cecília Meireles havia escrito Ou isto ou aquilo ou que a escritora Ruth Rocha escrevera Dois idiotas sentados cada qual no seu barril era como se os livros que usava no colégio (e não eram muitos) nascessem prontos, tivessem estado desde o início dos tempos, não tivessem sido escritos por ninguém.

Conto isso não para falar de mim, pois não sendo eu figura pública, pouco interessam as lembranças de minha infância, mas para introduzir a primeira das características de vovô que desejo apresentar.

Para Gládstone, o conhecimento não podia ser imposto ao outro. O aprendizado ocorria, quando era descoberta pessoal, quando partia da indagação do aprendiz. Talvez, se assim fosse em meu colégio, eu não tivesse, nas últimas décadas do século XX, essa impressão substancialista do mundo que trazia comigo.  

Por acreditar nessa premissa, meu avô, mesmo em família, empreendia diálogos bizarros. Certa vez, uma tia minha chegou em casa contando que quase morrera, pois o motorista de ônibus era um louco, corria feito um alucinado, freava de repente, mudava de pista sem olhar os outros veículos, jogava seu carro sobre outros ônibus. Terminado o relato, afirmou: "sorte que ele era um bom motorista". Meu avô, prontamente, respondeu: "Não, ele não era um bom motorista". E ela: "era, papai, era um ótimo motorista, você precisava ver sua destreza ao volante". Novamente meu avô negou: "ele não era um bom motorista". Os dois ficaram assim algum tempo, ele negando, ela afirmando a qualidade do motorista do ônibus, até que alguém de fora interveio: "ele não era bom motorista, porque se fosse um bom motorista não colocaria em risco a vida dos passageiros". Meu avô concordou com uma única palavra – "óbvio" – e deu o assunto por encerrado.

No caso, havia um problema de léxico: os dois conheciam o Português, mas cada qual tinha um entendimento diverso sobre a expressão "bom motorista". O ruído na comunicação, contudo, era experimentado por minha tia, vovô sabia da diferença de conceito em questão e se insistia naquele diálogo de surdos não era porque queria ser chato muito embora às vezes assim parecesse a seus interlocutores mas por querer extrair a resposta do outro, ainda que sob a forma de pergunta, e não impor, simplesmente, o que sabia. A curiosidade era, em seu entender, a premissa básica da inteligência.

Sei disso por outra história, da qual sou protagonista indireta. Desde pequena muito perguntava a meu avô. Primeiro porque me fascinava idéia de ele conhecer a origem das palavras. Adorava quando descobria o que vinha do latim, o que vinha do grego, o que era germânico, qual palavra era tomada diretamente ao latim, como óculos, digital e hodierno, cujas matrizes oculus, digitus e hodie tornaram-se, com as modificações do falar ao longo dos anos, olho, dedo e hoje. E quando a palavra chegava a nós via popular, ele exemplificava com os termos equivalentes nas outras línguas românicas, explicando os caminhos da transformação do uso, as letras que foram caindo ou sendo substituídas em cada palavra e eu ficava impressionada com o fato de ele conhecer tantas línguas. Por isso, sempre que alguma palavra soava estranha, perguntava a ele sua origem.

Depois, porque com o passar dos anos, sabendo ter ao meu alcance uma sumidade em Filologia, Língua Portuguesa e Filosofia Clássica, a preguiça me levava a recorrer a ele, e não aos livros ou gramáticas, quando me deparava com uma questão sobre esses assuntos. No segundo grau, na faculdade, na minha prática do jornalismo e até mesmo durante o mestrado, inúmeras vezes telefonei para ele para perguntar: “como é a concordância no infinitivo pessoal nessa frase?”, “como se pronuncia palimpsesto?”, “qual a diferença entre escutar e ouvir?”, “qual a concepção de tempo para Aristóteles?” etc.

Por fim, perguntava muito porque, algumas vezes, pessoas que não tinham acesso direto a ele, mas sabiam de meu parentesco encomendavam uma pergunta, a ser feita na próxima reunião familiar.

Explicado o contexto, passo à cena a ser narrada. Um professor de Português do colégio encontrou meu avô num congresso e foi dizer a ele que tinha dado aula para suas netas, Luísa e Mônica. Ele imediatamente comentou: “ah, sim, a Luísa é muito inteligente” e como nada falasse sobre minha irmã, em outra oportunidade, meu professor contou a ela história e concluiu dizendo que seu prestígio junto ao vovô era pouco, ao que minha irmã, sem se fazer de rogada, emendou: “é porque ela fica ligando pra ele e fazendo perguntas...”  

Não sei como meu avô agia em sala de aula, quem sabe considerasse que se as pessoas estavam ali significava o desejo de aprender. Entre nós ou entre amigos e conhecidos, era sempre assim: vovô era capaz de manter, indefinidamente, essa alternância entre a afirmação do outro e a sua negação se o interlocutor não perguntasse o porquê ou descobrisse por si próprio o equívoco. Era um processo quase maiuêtico. Ele não queria afirmar o fato, porque se o fizesse as duas identidades permaneceriam paralelas. Nada seria acrescentado ao aprendiz: se ele quisesse saber, sem dúvida perguntaria.

Conheço, portanto, vários exemplos desse tipo de diálogo, alguns dos quais presenciei. Entre as muitas histórias, estava a de um exame oral na PUC. O ponto foi sorteado e coube ao aluno falar sobre Romantismo. Como vovô percebesse que o aluno nada sabia sobre o assunto, perguntou:

Em que século foi o romantismo?

Século XIX, respondeu prontamente o aluno.

Em que ano começou e em que ano terminou o XIX?, continuou.

– No Brasil ou em Portugal?, quis saber o aluno.

– Pode ser no Brasil..., continuou o vovô, dando trela.

Meu pai lembra-se que um dia chegou da escola, todo animado, contando que a professora tinha dito alguma coisa. Vovô negou: “não, ela não disse isso”. Meu pai insistiu: “disse, disse sim”. Ficaram nesse jogo até que meu pai, entre irritado e magoado por ser tachado de mentiroso, deu a deixa: “como você sabe que ela não disse se você não estava ?”. Foi a senha para ele responder: “porque sua professora jamais cometeria um erro de concordância como esse”.

Talvez hoje ele não tivesse tanta certeza em negar a afirmação de meu pai. Não resisto, agora, a contar, aqui, outra anedota familiar. Passados alguns dias do debate final entre Collor e Lula na disputa à presidência da República de 1989, houve uma reunião de família na casa de vovô. Foram perguntar a ele se tinha visto o debate e qual sua opinião sobre o programa. Ao invés de fazer um comentário político, vovô disse apenas: “ se provou a falência da escola pública (fez uma pequena pausa) e da escola privada”.

Enquanto todos se preocupavam com os rumos do país, nas primeiras eleições diretas em mais de vinte anos meu pai votava pela primeira vez para presidente junto comigo –, Gladstão (como algumas vezes nos referíamos a ele em casa) estava mais interessado com o uso do português pelos candidatos do que propriamente com o pleito eleitoral.

Daí o título de minha comunicação hoje: a militância lingüística de Gládstone Chaves de Melo (espero que ele me perdoe por ter escolhido justamente essa palavra tão execrada por ele: a militância é palavra minha e, talvez, reflita nossas divergências políticas). Vovô era um homem íntegro, não apenas no sentido figurativo de ser um sujeito honesto e de bom caráter, sentido que no Brasil tornou-se o mais popular, mas em sua acepção original de alguém que está inteiro, onde quer que esteja.

Em nenhum momento, vovô descansava da Filologia, da Lingüística ou do ensino da língua. Era pesquisador e professor em tempo integral, chegando, muitas vezes, a usar como exemplos em seus livros, frases ditas dentro de casa. Sua militância lingüística deixava-o sempre atento (e preocupado) aos rumos da educação no país, às mudanças da língua e aos usos equívocos de palavras gramaticais. As palavras gramaticais, definidoras de nossa língua, deviam permanecer inalteradas; as palavras vernáculas, definidoras do nosso estilo de falar por expressarem idéias e não alterarem a estrutura da língua –, podiam ser transformadas, criadas, reinventadas.

Por isso, foi ele a única voz que ouvi defender o ex-ministro do Trabalho e da Previdência Social, Antonio Rogério Magri (depois soube que Antonio Houaiss e Evanildo Bechara também vierem, publicamente, em seu socorro), quando ele afirmou que a caderneta de poupança era imexível. "É um neologismo vernáculo e, portanto, aceitável", disse à época, afirmando, inclusive, que os sentidos de imutável ou imóvel seriam de outra ordem e, por isso, não poderiam exprimir o que o ministro queria dizer.

Hoje, a palavra foi incorporada a nosso vocabulário, figurando em jornais como O Estado de S. Paulo, a Folha da Tarde e O Dia, ainda que acompanhada por aspas. O neologismo, reconhecido no relatório da Comissão Acadêmica, foi incluído no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras.

Se, contudo, era um defensor de neologismos, não perdoava erros de ortografia. Em sua atuação na câmara dos vereadores, além de ter sido revisor da Constituição do Estado do Rio de Janeiro ainda em vigor –, contestava projetos de lei mal escritos, o que levava outros vereadores à exasperação.   

Certa vez, vovô pronunciou-se contra um projeto de lei que propunha a criação de cinqüenta bibliotecas públicas na cidade. O vereador ficou furibundo: como ele, um homem de Letras podia se opor a proposta desse quilate? Gladstão respondeu:

Primeiro, Vossa Excelência não diz a origem da verba, então não como saber se o número é adequado. Por que cinqüenta e não cinco ou trezentas? Depois, porque o projeto não pode ser aplicado, uma vez que Vossa Excelência nomeia como encarregados da execução da lei e da preservação das bibliotecas profissionais graduados em curso inexistente.

Claro que existe, me admira Vossa Excelência não conhecer a graduação em bibliotecomania.

Não existe tal curso.

Existe, não existe. Aquela discussão cujos moldes conhecemos se estendeu por alguns instantes, até alguém soprar no ouvido do relator que o curso era de biblioteconomia e não bibliotecomania.

Mas, Vossa Excelência está fazendo caso de um erro ortográfico?

Ortografia na pronúncia?, retrucou vovô ironicamente.

O pesquisador Gládstone Chaves de Melo era extremamente rigoroso. Se identificasse a possível relação entre dois vocábulos, o primeiro antigo e o segundo mais moderno, mas não encontrasse um registro que comprovasse o caminho intuído, desconsiderava a descoberta. Quem leu A Língua do Brasil sabe disso. Quantas assertivas ele derrubou por verificar falhas na pesquisa ou nos conceitos?

Papai conta que chegou em casa um dia, dizendo ter aprendido com um colega como o termo grego equus, que deu origem em português a eqüestre, teria feito surgir a palavra cavalo. Depois de desfiar a longa lista de termos associados, ouviu de vovô: “Seu amigo é muito bom de imaginação, mas péssimo de lingüística. Cavalo vem de caballus, palavra latina para pangaré”.

Em casa, meu avô era um homem calado, um tipo bem mineiro, daqueles que mais ouvem do que falam. Contribuía para isso, talvez, o fato de ele não gostar de muito barulho, coisa difícil para quem teve sete filhos e quinze netos. As reuniões familiares eram sempre uma balbúrdia, e vovô, de algodão no ouvido, tremia quando o grito de uma das crianças reverberava pela sala. Contribuía também o fato de ele quase não precisar falar, pois vovó Cordelia, amorosa como ela, estava sempre por perto para falar por ele. Não que ela falasse demais, ao contrário, mas tinha um carinho todo especial para cuidar dele, antecipar seus desejos, adivinhar seu pensamento e para nos receber, acarinhar, conversar. Vovô muitas vezes, portanto, parecia à parte, apesar de estar ali, atento e vez por outra soltar um petardo, frase definitiva, pela sabedoria ou pelo humor que encerrava. 

Vovô era calado, mas tinha grande senso histriônico. Seu humor manifestava-se, contudo, de forma assaz peculiar. Gargalhar era algo que desconhecia, quando ria, ria baixo, quase sem fazer som, tão silenciosamente que às vezes, a contração dos músculos da face denunciavam a risada. Não perdia, entretanto, a oportunidade de fazer um gracejo, mesmo se seu interlocutor não tivesse condições de o entender.

Assim ocorria com meu irmão caçula. Sempre que Vicente ia à casa do Cosme Velho, vovô pegava uma edição de Os Lusíadas em japonês, afirmava saber ler os ideogramas e começava: “quer ver? As armas e os barões assinalados,/ Que, da occidental praia lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados...”. Quando ele começou com a brincadeira, contudo, Vicente era muito pequeno, estava longe de aprender a ler e não devia sequer saber o que vinha a ser japonês ou ideogramas. Era mais para ele próprio se divertir do que para o garoto, que olhava espantado tudo aquilo.

Seu peculiar senso de humor e sua agilidade de raciocínio levavam-no a produzir, com uma seriedade inabalável, blagues dignas de programas humorísticos. Vovó contava que, em viagem de navio, usava uma corrente imitando pérolas, mas era uma bijuteria barata, pouco trabalhada. Um italiano, para ser gentil, elogiou o colar e perguntou se eram de majorca. Vovô, sem perder tempo, exclamou: “Não, são de Cascadura”. Ao que o italiano, sem conhecer o Brasil, emendou: “mas as pérolas de majorca são de casca tropo duras”.

Outra diversão pessoal de vovô era brincar com os fonemas das palavras. Em uma papelaria ou farmácia pedia um “André Lopes”: “um André Lopes de cibalena, por favor”. O candidato de um concurso era sempre o “cão didático”. Acho que nunca na vida falou América Latina, que era sempre chamada “América Latrina”, numa pilhéria política. Para perguntar o preço de alguma coisa em alemão vovô foi várias vezes à Alemanha, para participar de congressos –, dizia rapidamente: “viva Afonso Costa” (was kostet es?). Quando foi adido cultural em Portugal, no início da década de 1960, chamava o embaixador do Brasil, Bolitaut Fragoso, de Beatle, não apenas pela semelhança fonética. Bolitaut era completamente careca e os músicos dos Beatles conhecidos por suas cabeleiras. Garantem que o embaixador nunca percebeu a ironia.

Outra história que ilustra bem essa característica da personalidade de vovô é  mais uma das muitas – e impagáveis anedotas dos tempos da Câmara. Como um vereador tivesse dito, em plenário, respondendo a uma contestação de Gládstone, que tráfico de influência era algo normal, um fato social que existia em toda parte, vovô preparou um projeto de lei, intitulado ISTICA: Imposto sobre Tráfico de Influência e Corrupção Administrativa. O projeto foi redigido em detalhes, com artigos, parágrafos, alíquotas previstas para cada tipo de ação. O primeiro preâmbulo dizia algo como: “partindo da constatação de que o tráfico de influência e a corrupção administrativa são fatos sociais, movimentando financeiramente a sociedade, e que cabe ao Estado cobrar tributos das atividades econômicas lucrativas, propõe-se a criação do ISTICA”.

Quando vovô encaminhou o projeto para votação, criou-se uma celeuma na câmara. Queriam cassar o mandato dele e talvez isso de fato tivesse ocorrido se a revista norte-americana Times não tivesse explicado a situação, numa reportagem cuja manchete eraBig joke in the golden cage”.

Mais uma anedota que reafirma a integridade de meu avô nos dois sentidos mencionados. Vovô não diferenciava lugares. Não havia, para ele, atitudes apropriadas para um ambiente e inapropriadas para outro. O que ele era, era em toda parte. As coisas nas quais acreditava, eram ditas ou feitas, independente de quem fosse o interlocutor e de quais as conseqüências do ato.

Sua concepção escolástica de mundo fazia o acessório ser, necessariamente, secundário. Para ele, o substantivo importava. Por isso, na época em que era adido em Portugal, vestia o mesmo terno fuleiro, usado no dia-a-dia, em recepções diplomáticas. Na primeira vez que isso aconteceu, uma tia minha repreendeu-o: “mas papai, você vai com essa roupa?”. Vovô respondeu: “Se eles estão me convidando pelo meu terno, não me convidarão mais, o que não me fará falta; se for pela minha conversa, o terno não fará diferença”. 

Em sua atuação na Câmara, vovô era de uma assiduidade absoluta, que incomodava muitos de seus colegas, segundo Ledo Ivo, em reportagem para a revista Manchete, publicada em abril de 1955. Certa vez, acometido por uma doença qualquer, precisou faltar dois ou três dias. Quando recebeu seu salário, viu que não tinham sido descontados os jetons relativos aos dias em que esteve ausente. Naquela época, o pagamento era feito em dinheiro e entregue num envelope fechado. Sem fazer alarde, calculou a diferença e devolveu o dinheiro para o departamento de recursos humanos. A moça do caixa, assombrada, afirmou: – Mas vereador, eu não tenho o que fazer com esse dinheiro, não existe mecanismo legal para sua devolução aos cofres públicos...

– O que a senhora vai fazer com esse dinheiro não me interessa, comigo não ficará porque não me pertence por direito

A devolução de parte de seu ordenado aos cofres públicos virou constante quando foi aprovado, na Câmara, um aumento do salário dos vereadores pela expressiva votação de 49 a 1. Como era contra o aumento, por achá-lo moralmente condenável, devolvia todo mês a diferença do seu ordenado. Tinha sete filhos e levava uma vida apertada, mas rejeitava o aumento por uma questão ética. Isso nunca saiu na imprensa e pouca gente soube. Não havia, portanto, nenhuma intenção promocional por trás do ato. Tratava-se de uma ação ética, no sentido kantiano[1] do termo: sem ser movido por interesse algum, transformou sua liberdade em dever.

Em sua militância lingüística, além de dar aulas e escrever livros, nos ensinou a respeitar e a amar nossa língua materna. Meu pai (e provavelmente seus irmãos) aprendeu, com meu avô, o valor da integridade moral e da devoção à língua – lembro-me que quando pedia alguma coisa a meu paipara mim fazer”, ele, a exemplo de vovô, negava o pedido, poismim não faz nada” –, e isso nos cobrava diariamente a mim e meus irmãos, como ainda cobra de meu irmão caçula

De um e de outro herdei o cuidado com o Português. Com papai e com vovô, fui aprendendo a amar essa língua e a achá-la mais bela dentre as línguas românicas. Lembro-me até hoje o orgulho experimentado, quando ouvi de meu avô que saudade não tinha tradução: era, então, uma palavra nossa. E, para mim que tinha perdido meu outro avô na primeira infância, era uma palavra fundamental, pois expressava um sentimento que reconhecia em mim. Não conseguia imaginar como outros povos resolviam o problema de sentir saudades, mas não ter como a expressar.

Foi, talvez, para nos prevenir da pior saudade – aquela que vem misturada com o arrependimento por não termos aproveitado suficientemente a pessoa quando viva que, eu e meu irmão, Cristiano, pedimos para vovô nos dar aulas de Português. Por seis meses, íamos todas as quartas-feiras pela manhã à casa do Cosme Velho. Pude, então, conhecer sua grande vocação para o magistério. Vovô, com quase 80 anos, aposentado há muito, recebia-nos com entusiasmo. Dava-nos fotocópias de textos de autores clássicos, como Camões ou padre Antonio Vieira, e, se não levávamos dúvidas de português, lia os textos conosco, pegando cada palavra e mostrando como ela tinha sido formada. Pena que, depois de seis meses, ficou difícil continuar com esses encontros. Meu irmão, recém formado em Direito, foi contratado por um grande escritório e pouco tempo tinha. Eu, às voltas com meus prazos do mestrado, exilei-me em Teresópolis, em um apartamento de vovô, para escrever minha dissertação. Dessa época, contudo, guardo na memória a alegria de vovô ao ensinar e o horror que tinha às regras inventadas, às “gramatiquices”, como chamava. Como exemplo, conto uma última história. Em aula sobre colocação de pronome, vovô nos ensinou que em frases negativas, ocorria a próclise. Imediatamente repetimos a regra aprendida no colégio: “ah, sim, porque o /não/ atrai...”. Meu avô soltou um pequeno riso, entredentes, e disse: “isso é uma fantasia, a palavra não é imantada”. 

Com isso, encerro meu depoimento sobre vovô. Espero que minhas declarações tenham resgatado a acepção original da palavra – aprendida com ele, nessas poucas aulas – de tornar claro, clarificar, de-clarar o engajamento[2] lingüístico e a integridade de meu avô. Integridade que o fez cortar o segundo /l/ do seu sobrenome e do de seus filhos mais novos, pois, Melo se escreve com um único /l/ e a assinar o próprio nome com acento, por se tratar de uma palavra proparoxítona. Também meu nome ganhou acento e /s/ em vez de /z/ por causa da revisão de vovô. E, na infância, lutava pelo meu acento, como quem corre atrás de uma bandeja de brigadeiros. Era como se aquela Luiza, sem acento e com /z/ não fosse eu, afinal o meu nome tinha a grafia correta.

Agradeço, então, a Gládstone Chaves de Melo por ele ter me deixado, além do nome, a certeza de que saber também é sabor e ter conhecimento nada mais é do que sentir o gosto da coisa.


 

[1] Vale aqui uma pequena ressalva: vovô não era de Kant e costumava dizer que o próprio Kant entendeu seus escritos quando leu a tradução de Crítica da Razão Pura para o francês.

[2] Também aqui a palavra é minha. Vovô detestava esse termo: “ainda por cima um galicismo”, fato revelador de que “as esquerdas brasileiras nem nacionalistas são”.