A TRANSITIVIDADE VERBAL
UMA REVISÃO SEMÂNTICO-PRAGMÁTICA

Laila Maria Hamdan Alvim

A partir dos estudos empreendidos por nós nos processos de graduação, pós-graduação (lato-sensu e strictu-sensu), houve a percepção de que fatos gramaticais considerados como definitivos pela gramática tradicional, consolidada como NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira), na verdade não resistiam a considerações e a abordagens mais aprofundadas e questionadoras, ou seja, não suportavam maior rigor científico.

Diante dessa constatação, o problema da transitividade verbal, recebeu foco em nossos estudos, porque percebemos, logo em primeiras análises, que o sistema tradicionalmente apresentado para classificação verbal em relação à transitividade (verbos transitivos diretos, transitivos indiretos, transitivos diretos e indiretos, intransitivos e de ligação), na verdade, mostra-se insuficiente para dar conta dos fatos relativos à significação dos verbos. A variedade de abordagens para o assunto também é indício da falta de sustentação científica, chegando mesmo a autores observarem o fato como propriedade exclusivamente contextual, ou seja, os verbos obedecem a situações de uso que determinam a sua transitividade. Dessa maneira há o esvaziamento da noção, que se torna irrelevante nos estudos verbais.

Comungamos, pois, com Gladstone Chaves de Melo, ao contestar o resultado do projeto de revisão e simplificação da nomenclatura gramatical que possibilitasse ao ensino primário e secundário o benefício dos progressos da Ciência de Linguagem, “libertando-se pouco a pouco de uma rotina esterelizante, emperradora e assustadora.” (1981:212). Segundo ele, reiterando Sílvio Elia, “em certos casos, a Nomenclatura envolveu doutrina, o que é de todo inaceitável”.(1981:214). Mesmo considerando, de modo geral muito bom o trabalho da comissão, o eminente filólogo-lingüista aponta questões que destoam dos três pontos considerados como fundamentais pela Comissão elaboradora da NGB: a) a exatidão científica do termo; b) a sua vulgarização internacional; c) a sua tradição na vida escolar brasileira.

Mais precisamente, a distribuição dos verbos em transitivos diretos e transitivos indiretos não teve a concordância do estudioso, uma vez que ela “aberra da exatidão científica do termo, da sua vulgarização internacional” e, também pensamos que não considera a tradição na vida escolar brasileira. Assim, em nosso estudo, o problema da transitividade verbal, vai ao encontro da posição de Gladstone Chaves de Melo.

Inicialmente definida como a capacidade de certos verbos de poderem passar para a voz passiva (no caso o objeto é feito sujeito paciente - os intransitivos não aceitam tal transformação), chegou-se, hoje, ao sinônimo de predicação incompleta, dependente de significação particular dentro da polissemia do verbo e, conseqüentemente à fluidez inerente aos estudos do significado. Observando-se o comportamento semântico verbal aliado a aspectos sintáticos, podemos perceber que a realidade não combina com a teoria encontrada nos compêndios gramaticais elaborados de acordo com a NGB. Dessa maneira, elaborar quadro teórico-pragmático mais em acordo com a realidade, procurando sempre a atenção para fenômenos reconhecidamente de uso, mesmo considerando as variações inerentes ao estilo, deve ser o objetivo do pesquisador da questão.

A investigação deve tentar chegar à resposta de questões que suscitam na prática a partir de classificações de transitividade verbal e da construção predicativa. Deve-se eliminar qualquer critério classificatório, uma vez que não há base teórica suficientemente eficaz para tal e, a partir de exemplos retirados da mídia escrita (jornais de grande circulação nas principais cidades brasileiras), formular um novo sistema observando-se a face semântica e prática que envolve o fato lingüístico da transitividade verbqal?

Muitos verbos apresentam-se com preposições variadas, ou mesmo sem elas, indiferentemente, não acontecendo neles mudança de sentido, ou seja, a alteração da transitividade ou da regência não necessariamente é fato que interfere no sentido verbal, indicando mais expressividade e impressividade do que exigência gramatical. Somando-se a esse fato a possível alternância da transitividade com conseqüente, mesmo que sutil, alteração semântica, temos complexa matéria, que constitui dificuldade nos estudos do verbos e da sua construção predicativa.

Assim, dividir-se tão diversas ocorrências verbais, como determina a NGB, em transitivos diretos e transitivos indiretos, pedindo respectivamente complementos que se denominam OD e OI, e também, colocar sob o rótulo do último qualquer complemento preposicionado (“inclusive o objeto direto preposicionado, que não tem lugar na NGB”), não tem “exatidão científica”.

Como poderia eu ensinar a meus alunos que complemento verbal regido de com ou de é o mesmo que dativo? Concretizando: que em ‘lutou com mil dificuldades’, ‘dependemos de nossos semelhantes’, ‘dei um presente a João’, - com mil dificuldades, de nossos semelhantes e a João têm o mesmo valor sintático, exercem a mesma função? (1981:215)

Dessa maneira, variados têm sido os questionamentos e estudos acerca da transitividade verbal, e variadas soluções, mesmo que incipientes são apresentadas, comprovando a insatisfação com a posição tradicional, adotada como oficial a partir de 1959.

PERINI (1995) analisa a classificação tradicional, observando também que ela repousa sobre um equívoco fundamental e, conseqüentemente, não pode ser mantida, apresentando uma nova análise. Segundo ele “o sistema não prevê lugar para verbos que possam ter OD ou não, à vontade; logo, é de se presumir que tais verbos não existam.” Porém, na prática eles existem e fogem à noção tradicional de verbo transitivo em oposição a verbo intransitivo, excluindo-se mutuamente. Cita também outros autores que analisam o problema sob ponto de vista contextual e condena tal posição, uma vez que “tentar definir ‘transitividade’ em termos de contextos específicos não cura os males da concepção tradicional.”

A sua proposta para uma nova análise sustenta-se inicialmente nas noções de exigência e recusa de complementos, ou seja, há verbos que podem recusar, exigir ou aceitar livremente o objeto direto, desdobrando duas classificações tradicionais em três, investigando que funções sintáticas são relevantes para o estabelecimento da transitividade. Esta se vincula tradicionalmente à semântica, porém a correlação não é tão direta e generalizada a ponto de se prever a transitividade de um verbo a partir de sua semântica. (...) “fica difícil derivar a transitividade dos verbos a partir de sua semântica, ou vice-versa.” Concluindo com observações de cunho prático:

Aqui está em funcionamento um princípio de economia que estabelece que não se deve dizer mais (nem menos) do que o necessário. A situação sendo suficiente para esclarecer de que se trata, a exigência torna-se livre aceitação, mostrando integração entre os componentes da comunicação lingüística, talvez daí originando-se a dificuldade para análise sistemática.

NEVES (2000) trata os verbos como construtores ou não construtores de predicados e a questão da transitividade é abordada nos verbos construtores de predicados em sua subclassificação segundo a transitividade, separadamente da subclassificação semântica e da subclassificação com integração dos componentes.

Segundo a transitividade, há quatro classes principais de verbos: verbos cujo objeto sofre mudança no seu estado; verbos cujo objeto não sofre mudança física, isto é, não é paciente afetado; verbos que possuem um complemento não-preposicionado (objeto direto) e um complemento preposicionado; verbos que têm complementos oracionais. Nessa reorganização abandona-se a classificação tradicional dos verbos intransitivos, transitivos e de ligação.

Observamos um maior detalhamento da classificação, o que pode trazer mais objetividade ao assunto, porém, no nível a que se chegou, pode-se ter incorrido em individualização excessiva, tornando-a mais complexa ao estudioso e também ao usuário.

Segundo BECHARA (1999), a transitividade sustenta-se no conteúdo léxico do verbo, podendo formar predicado simples (cujo núcleo apresenta significado lexical referente a realidades bem concretas; a tradição gramatical chama intransitivos a tais verbos) ou predicados complexos (cujo núcleo constrói-se por verbo de grande extensão semântica, necessitando, portanto, de delimitadores - os argumentos ou complementos verbais - são os verbos transitivos). Reforça que a distinção entre transitivo e intransitivo não é absoluta, pertencendo mais ao léxico do que à gramática, e refere-se aos verbos de ligação como aqueles que aparecem matizados semanticamente pelo signo léxico que funciona como predicativo. Porém a distinção não é válida no que se refere à sintaxe, uma vez que o núcleo da oração é sempre o verbo, mesmo que se trate de verbo de significado léxico muito amplo e vago, não sendo relevante a classificação do predicado para o entorno oracional.

Bechara segue a mesma argumentação teórica de ALI (1964) que também aborda a transitividade sob aspecto semântico, tratando-a como necessidade ou não de complementação significativa. Assim, os verbos podem ser nocionais (empregam-se com função predicativa) ou relacionais (vêm combinados com adjetivo para constituir o predicado ou com forma finita de verbo nocional). Os primeiros podem ser transitivos ou intransitivos.

TRANSITIVO é o verbo cujo sentido se completa com um substantivo em lugar do qual se podem usar formas pronominais O, A, OS, AS. (...) INTRANSITIVOS são os verbos que não necessitam de outro termo (...) e bem assim aqueles cujo sentido se completa com substantivo regido sempre de preposição.

AZEREDO (1995) chamou de predicação verbal o conjunto de peculiaridades sintáticas características da classe subdividindo os dois grupos tradicionais, transitivos e intransitivos, em sete tipos com diferentes características combinatórias. Observa que geralmente se tem tratado a oposição transitivo / intransitivo como uma diferença de modos de significação do conteúdo léxico do verbo. O primeiro porque significa processos que só se completam mediante informação adicional e o segundo porque significa processos em si mesmos completos. Sua abordagem corrobora a de Perini, na medida em que também considera a falta de explicação para a possibilidade de muitos verbos ocorrerem ora com objeto, ora sem ele, ou seja, o comportamento é instável.

Considera o problema em questão, destacando que alguns autores preferem sustentar a distinção com base na presença ou ausência de complementos, a distinção deixa de ser lexical e pragmática e passa a ser sintática e sintagmática, o que não é suficiente para dar conta do problema, uma vez que a abordagem quanto à transitividade passa a ser semanticamente irrelevante. O autor considera que a “transitividade é, efetivamente, parte do conteúdo lexical de muitos verbos (...). Esse recorte, simbólico e convencional, paga com a flutuação de seus limites o custo de seu caráter arbitrário.” Reiterando, o autor não confirma a dependência da frase para se estabelecer a transitividade verbal porque isso implica negar que ela faça parte do sistema da língua.

Também acha insuficiente o conceito de transitividade como ação que passa de um sujeito a um objeto, uma vez que sujeito e objeto não correspondem a categorias homogêneas e bem definidas, pelo contrário, trata-se de relação variada e homogênea. Exemplificando com a classificação de Cano Aguilar para a língua espanhola, José Carlos Azeredo relaciona as especificidades dos verbos transitivos e analisa os intransitivos com sintagma preposicionado que travam com os verbos relações exclusivamente semânticas, incluindo estado - tradicionalmente responsabilidade dos verbos de ligação.

AZEREDO (2000) estabelece, nesta segunda obra abordada, a partir de exemplos retirados da literatura, que existem, em princípio, quatro diferentes classes sintáticas de verbo: impessoais intransitivos, pessoais intransitivos, transitivos diretos ou indiretos; bitransitivos. Classifica os verbos também em predicadores (fazem exigência quanto à espécie de sujeito da respectiva oração) ou instrumentais (não fazem exigência quanto à espécie de sujeito da respectiva oração e obrigatoriamente introduzem predicadores verbais e não-verbais).

Existem aspectos da língua para os quais ainda não se conseguiu formular teorias eficientes, ou seja, não há explicação satisfatória. O problema da transitividade verbal instala-se entre esses processos. Há abordagens com argumentação teórica que denunciam a lacuna existente, fazendo surgir do fato um problema a ser analisado e bastante relevante para os estudos lingüísticos.

Especificamente, a transitividade nos verbos é fato semântico ou sintático ou interage com ambas as faces do sistema, sendo aspecto que transpassa os limites de área específica e a dificuldade de análise reside na visão tradicional de segmentação dos fenômenos lingüísticos como restritos à fonética / fonologia, morfologia, sintaxe, semântica...? Ao nosso ver, a partir de observações preliminares e ainda passíveis de comprovação científica, o problema reside na rigidez com que se quer forçar uma adaptação ao que está pronto. A realidade lingüística, tanto em textos orais, cotidianos, informais como na modalidade escrita, menos frouxa, mas também dinâmica, comprova a fluidez do fato e a ineficiência em sua observação, uma vez que não se prende a modelos de análise já estabelecidos pela gramática tradicional.

A simplificação, muitas vezes, não é satisfatória, pois pode ser denúncia de falta de precisão científica e distância da realidade lingüística. “Aqui, como sempre, vale como regra de ouro da Didática isto: a verdade nunca deve ser omitida ou disfarçada.” (1978:133)

BIBLIOGRAFIA

ALI, Manuel Said. Gramática Secundária da Língua Portuguesa e Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Brasília: UnB, 1964.

AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1995.

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BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

HENRIQUES. Claudio Cezar. Sintaxe Portuguesa para a linguagem contemporânea. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1997.

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MELO, Gladstone Chaves de. Gramática fundamental da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

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NEVES, Maria Helena Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000.

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ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.