A UNIDIRECIONALIDADE
NA RELAÇÃO SEMÂNTICA DE CAUSA

Jacqueline Varela Brasil Ramos (UFRJ)

 

Introdução

Neste trabalho investigo os diferentes processos de combinação de orações através dos quais a relação de causa pode ser expressa. Adoto a gramaticalização, sob perspectiva funcionalista, como quadro de referência teórica.  De acordo com um dos princípios básicos da teoria da gramaticalização, o da unidirecionalidade, os processos de articulação de orações podem ser distribuídos ao longo de um continuum de vinculação sintática, com diferentes graus de dependência. Esse continuum é marcado pelo menor grau de dependência sintática (parataxe), passando por um estágio intermediário (hipotaxe), até atingir o maior grau de entrelaçamento sintático (subordinação), como mostra a escala abaixo proposta por Matthiessen & Thompson (1988):

Parataxe

Hipotaxe

Subordinação

dependência

+ dependência

+ dependência

encaixe

encaixe

+ encaixe

Nesta perspectiva, sustentamos que as diferentes formas de expressão de causalidade admitem diferentes graus de dependência na organização do enunciado, partindo de construções com menor grau de integração em direção às construções de maior dependência e maior encaixe.

Nossa hipótese prevê uma correlação entre as diversas formas de expressão de causalidade, o processo envolvido (parataxe, hipotaxe, subordinação) e as variáveis modalidade e escolaridade. Dessa forma, as formas mais frouxas de ligação, que correspondem à parataxe, teriam predominância na modalidade oral, enquanto a modalidade escrita favoreceria  a ocorrência de formas de maior estreitamento sintático, manifestando maior presença de estruturas hipotáticas. No que diz respeito à escolaridade, pressupomos que as formas de expressão da relação semântica de causa situam-se em diferentes pontos do continuum de vinculação de cláusulas de acordo com o grau de instrução Assim, em níveis mais baixo de instrução ocorreriam as estruturas de menor entrelaçamento sintático, as paratáticas e, à medida em que se avança no grau de escolaridade maior concentração de formas hipotáticas.

 

AMOSTRA

Para este trabalho utilizamos o Corpus Discurso & Gramática da cidade do Rio de Janeiro. Com base nesse corpus, constituimos uma sub-amostra composta de 32 informantes divididos em quatro níveis de escolaridade: 4ªs. 8ªs., 3ºano, Universitário Os diferentes graus de escolaridade justificam-se na medida em que intencionamos averiguar o processo de complexivização das formas de expressão de causalidade em correlação com o grau de instrução. De cada série foram selecionados 8 informantes e, desses, analisados 4 textos: 2 narrativos (1 oral e 1 escrito) e 2 dissertativos (1 oral e 1 escrito). A amostra nos forneceu 513 cláusulas causais que se manifestaram através das 16 formas abaixo relacionadas:

Justaposição-  “... estava chovendo muito... eu não podia sair

e- “eu comecei a me cansar e resolvi voltar pra areia

- “Uns entram na frente dos outros empurrando, beliscando,etc, a inspetora Ana Maria quase se descabela”

então- “...achou que fosse eu que o tinha espetado então ele chamou o professor”.

Por isso- “Apesar disso meus pais visualizavam meu bem e querem o melhor pra mim, por isso às vezes eles impõem tantas regras

Porque- “eu fiquei muito chocada porque eu pensei que eles iam se separá”

Que- “...eu levei um susto que ...eu não estava colando”

Por causa que- “...minhas amigas começaram a dar gargalhadas...né? por causa que elas sabiam como andar de cavalo”.

Como- “Eu acho que o único meio de mudar a situação do país é incentivando a educação. Como isso não acontece, as coisas não mudam”.

Pois-“A situação econômica do qual o país passa é desesperadora, pois você de tudo nele: mortes, fome, miséria, desemprego etc...”

que- “... que eu peguei o desfile no final eu disse que queria ir colocando as músicas até o fim.’

Greúndio- “vendo que eu ia me dar mal eu comecei a andar de volta para outro lado do túnel

Infinitivo- por eu ter saído...entrou esse novo estagiário”

Por causa de- “...e:: graças a Deus eu passei de ano por causa dessa prova”.

Devido a- “grande parte de sua produção é jogada fora devido o grande desperdício”.

 

Distribuição das formas de expressão de causalidade de acordo com o continuum de vinculação sintática

Tomando por base a escala do continuum de vinculação sintática proposto por Mathiessen & Thompson (1988), a distribuição das  formas de expressão de causalidade acima referidas podem ser assim representadas[1]:

Parataxe

Hipotaxe

Subordinação

dependência            ®

+ dependência            ®

+ dependência

encaixe

encaixe

+ encaixe

Just., e, , então,

como, que,

orações. reduzidas[2]

por isso, que,

por causa que,

 

porque enunciado

porque enunciativo

 

Considerando-se as diversas formas de expressão de causalidade, o percentual de estruturas paratáticas em nossa amostra foi bastante expressivo, é o que se pode observar no gráfico 1.

 

Gráfico 1 –

Distribuição dos processos de expressão da relação causal.

A hegemonia de estruturas paratáticas sobre as hipotáticas, reduzidas e Spreps indica a preferência dos usuários por formas mais frouxas de ligação para a realização da relação semântica de causa. O segundo tipo de estrutura mais recorrente, as hipotáticas, por sua vez, apresenta sensível diferença em relação às reduzidas e Sprep, o que reflete a pouca exploração dessas formas em enunciados causais.

Se considerarmos a distribuição das formas de acordo com o processo envolvido, temos diferenças bastante nítidas entre as duas modalidades:


 

Gráfico 2 –

Distribuição dos processos de acordo com a modalidade

 

 Na distribuição dos processos de acordo com a modalidade é de se notar no gráfico 2 que, de um lado, temos diferenças significativas entre as formas paratáticas e hipotáticas nas modalidades oral e escrita e, de outro, estruturas que se equiparam em termos de modalidade (as reduzidas e os SPre’s). Essa predominância de estruturas paratáticas na modalidade oral confirma a hipótese prevista da predominância de formas de menor entrelaçamento sintático nessa modalidade discursiva. No entanto, a maior incidência de formas hipotáticas no discurso oral, bem como a equivalência entre as modalidades nos índices de estruturas reduzidas e SPreps levantam problemas para a hipótese. Isso significa que a correlação entre o tipo de forma e modalidade não é tão absoluta. Defrontamo-nos com algumas evidências contrárias às previsões iniciais:

a)- a predominância de porque no nível do enunciado na modalidade oral, o que significa que predominam no oral tanto o porque paratático quanto o porque hipotático.

b)- a ocorrência exclusiva do conector pois, forma paratática, na modalidade escrita.

c)- a predominância do conector e, forma de menor integração sintática, na modalidade escrita.

d)- a predominância do Sprep pelo, forma de maiot vinculação sintática , na modalidade oral.

e)- a predominância da oração red. de infinitivo na modalidade oral, embora tenha sido introduzida pela modalidade escrita[3].

f)- a exclusividade de por causa que, forma hipotática, na modalidade oral[4].

As contra-evidências acima enumeradas mostram que a correlação entre o processo envolvido na relação semântica de causa e modalidade de língua é um pouco mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Essa situação pode ser assim representada:

Tendo em vista a situação acima, é possível concluir que a diferença entre as modalidades não se limita ao tipo de estrutura utilizada, paratática ou hipotática, mas abrange o tipo de conector. Ao longo da análise, pudemos perceber que o falante faz escolhas lexicais que podem levar à especialização de determinado conector a uma ou outra modalidade. O conector pois e o Sprep devido a,de um lado, e a variante conectiva por causa que, de outro, são indicativos dessa tendência de seleção ao léxico. Diante do rol de possibilidades para a expressão de causalidade, alguns conectores se associam a contextos de maior planejamento, embora realizem vínculos paratáticos. Dessa forma, a hipótese de correlação entre formas de menor integração sintática e modalidade oral se confirma apenas parcialmente. Embora a distribuição da grande maioria das formas mais frouxas de ligação comprove nossa previsão (justapostas, porque enunciativo, por causa que, por isso, , então e que), algumas formas de maior entrelaçamento sintático (porque no nível do enunciado, por causa de, pelo e a oração reduzida de infinitivo) contrariam a hipótese prevista devido à sua maior incidência na modalidade oral. as orações gerundivas, a locução conjuntiva que e o Sprep devido a comprovam a hipótese de correlação entre formas mais complexas e modalidade escrita, reforçando o que fora salientado por Pawlei & Syder (1983):

Almost everyone who has reported on the syntax of spontaneous speech hás noted the preponderance of conjoined and adjoined clauses, in contrast to the greater frequency of subordinate clauses in formal writing and rehearsed speech (1983:565)

As formas lingüísticas, segundo os autores, se adaptam a diferentes condições de uso, algumas são mais vantajosas em dada circunstâncias. Nossos resultados parecem estar em sintonia com as postulações dos estudiosos citados. As formas mais frouxas do elo de causalidade parecem encontrar melhor adaptação à fala, talvez por serem mais facilmente processáveis, permitindo a manutenção da fluência; enquanto na escrita, em função do tempo e das condições de produção, é possível o emprego de estruturas mais complexas.


 

RESULTADOS DO PROCESSO ENVOLVIDO
E
ESCOLARIDADE

Com relação à escolaridade, a grande maioria das formas paratáticas são comuns a todos os graus de escolaridade. È o caso,por exemplo, das justapostas, porque enunciativo, e, , então, que, , por isso. O mesmo não ocorre com estruturas hipotáticas: muitas delas estão ausentes nos primeiros anos de escolaridade e começam a aparecer a partir da 8ª série, como, por exemplo, as reduzidas, que, como, devido a e pelo.  A variável escolaridade atua no sentido de favorecer a ocorrência da maioria das formas mais complexas como também parece ser responsável pela incorporação de novas formas. A incorporação de novas formas, por sua vez, resulta na diminuição de formas de menor estreitamento sintático na língua escrita. Verifica-se, portanto, a expansão e a complexivização das formas de expressão de causalidade em graus mais elevados, reforçando as observações de Ochs, “The suggestion is that more planned uses of language draw upon through formal education. This knowledge includes use of complex syntactic structures” (1979:54).

 

CONCLUSÃO

As hipóteses previstas se comprovam apenas parcialmente. Em termos de modalidade, a grande maioria das formas mais frouxas de expressão da relação causal predominou na modalidade oral, e as formas de maior estreitamento sintático, na modalidade escrita. Todavia, pôde ser constatada ocorrência de formas paratáticas na escrita bem como de formas hipotáticas na modalidade oral, embora em número reduzido. No que diz respeito à escolaridade, por um lado, confirma-se o processo de complexivização das formas de expressão do nexo de causalidade com a incorporação de estruturas mais complexas em níveis mais altos de escolaridade. Por outro lado, as formas da extrema esquerda do continuum da gramaticalização (just., , então, e) obtiveram alta incidência em níveis mais altos de escolaridade, contrariando a hipótese prevista. A incorporação de estruturas mais complexas (hipotáticas) está estritamente correlacionada com grau de escolarização. Inserem-se nesse contexto as formas reduzidas (gerúndio e infinitivo), a locução que, o conector como e os Sprep’s devido a e pelo, os quais em sua maioria são encontrados a partir da 8ª série.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HAIMAN, J. & THOMPSON,S.A. Clause Combinig in Grammar Discourse. Amsterdan: John Benjamins Publishing Company, 1988.

HOPPER, P. & TRAUGOTT, Elizabeth C. Grammaticalization, Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

MATTHIESSEN, C. & THOMPSON, S. The structure of discourse and “subordination”. In: HAIMAN.,J, &THOMPSON, S. (Eds.) Clause combining in grammar discourse. Amsterdan: John Benjamins Publishing Company, 1988.

NEVES, Maria Helena de M. A Gramaticalização e a Articulação de Orações  (inédito).

OCHS. Elinor. Planned and Unplanned Discourse. In: GIVÓN,M T. (ed.) Syntax and Semantics; discourse and syntax. v.12, New York: Academic Press, 1979.

PAIVA, M. da C. de. Ordenação das cláusulas causais: forma e função. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/ÚFRJ, 1991.

––––––. Formas de Expressão de Causalidade (inédito)

PAWLEI, A. & SYDER, F. Natural Selection in Syntax. Notes on Adaptative Variation and Change in Vernacular and Literary Grammar. Journal of Pragmatics (7):551-579, North Holland, 1983.


 

[1] As construções com Spres não se inserem na escala acima, uma vez que trata-se, no caso, de um período simples, em que a causa e a conseqüência se manifestam na forma de constituintes da oração. Nesse caso, talvez se pudesse considerar que os Spreps constituem uma forma de maior integração, que os dois termos da relação causal estão mais intimamente relacionados.

[2] Embora ao longo do trabalho nos referimos às ors. reduzidas  como estruturas hipotáticas, consideramo-la de nível intermediário entre a hipotaxe e a subordinação, por serem sintaticamente mais integradas que aquelas e não se identificarem enquanto estruturas com grau máximo de entrelaçamento sintático.

[3] Embora os itens d) e e) forneçam indícios de contra-exemplos, os dados são escassos para uma afirmação mais consistente.

[4] Essa variante conectiva ocorre na 4ª série.