ANGÚSTIA
UMA
LEITURA SEMÂNTICO-ESTILÍSTICA

Joana D’arc de Oliveira Canônico (UERJ)

 

“O amor para mim sempre fora uma coisa uma coisa dolorosa, complicada e incompleta.”

 

O trabalho a que nos propomos discute a produção do texto escrito, o papel do escritor como elemento facilitador da leitura e a importância do leitor, na recepção satisfatória do texto.

Para isso, elegemos a obra Angústia, de Graciliano Ramos, a fim de demonstrar como o escritor se apropria de elementos da língua e lhes sentido organizando-os em forma de texto. Apontaremos o uso que o escritor faz dos elementos lingüísticos para, estilisticamente, atribuir sentido aos vocábulos.

Destacaremos a disponibilidade do escritor para despertar no leitor os mecanismos necessários à adequada apreensão das idéias do texto e a habilidade com que manipula dados lingüísticos a serviço da expressividade. Abordaremos, também, o conhecimento necessário ao leitor para interagir com as idéias do enunciador. Finalmente, apresentaremos um pequeno levantamento dos recursos lingüísticos, semânticos e estilísticos utilizados pelo autor e responsáveis pela atmosfera narrativa, que possibilitam atribuir um sentido à obra.

 

O papel do escritor:

A produção textual resulta de um processo de seleção e ordenação de vocábulos, que através de organização sintática e semântica, materializam o que denominamos texto. No entanto, este é, também, o resultado da elaboração de um produtor, que traz consigo sua experiência com o idioma, suas vivências particulares, características inerentes ao modo de escrever, dados estes que, no texto em estudo se apresentam amalgamados de tal forma que, muitas vezes confundimos a figura autor/narrador. Além disso, não podemos perder de vista que em todo texto há, subjacente, uma intenção com o que se escreve. Desta forma, o escritor assume o papel de planejador, que manipula elementos da língua com o intuito de produzir um material lingüístico satisfatório a seus objetivos comunicacionais. A seleção de palavras, frases e orações são organizadas com este objetivo, mas também de acordo com o estilo de quem escreve. Portanto, devemos observar neste processo, dois aspectos indissociáveis: a maneira própria de usar o idioma, que se refletirá nas construções sintáticas e no arranjo das palavras, e a escolha lexical que determinará as particularidades do sentido textual.

No que concerne ao estilo de Graciliano Ramos, este é sabidamente enxuto, desprovido de excessos. O autor é reconhecido pela habilidade com o idioma e a capacidade de sintetizar o pensamento em construçõeslimpas”, A leitura de seus escritos exige o conhecimento estruturado do leitor, pois, não raro é exigido dele a vivência necessária para se estabelecer o processo interativo da leitura. Suas construções são, muitas vezes, uma sucessão de períodos simples ou orações justapostas, com escassos elos coesivos: “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram”; “Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório para datilografar, na repartição.” “A noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio, longe do artigo que me pediram para o jornal”. “O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil réis de ordenado”, “Seu Evaristo sofria necessidades”, “Necessário dar cabo daquela voz”. “Tarde”.

Outra característica da construção do autor são as frases afirmativas com valor de negativas: “Que se há de fazer!” ”Que remédio!” “Que utilidade tinha aquela carreira?” “Hei de furtar?”

a seleção vocabular passa pela habilidade do escritor, pelo conhecimento do idioma, pela percepção aguda dos significados das palavras e pela sensibilidade para uma escolha ideal ao sentido que se quer alcançar. Os vocábulos possuem umsignificado intelectivo” e uma “tonalidade afetiva” (CAMARA: 1978) e o escritor manipula as duas possibilidades em seu texto, que, o valor convencionado é necessário para o entendimento do vocábulo e o significado afetivo desperta no leitor o sentimento (in)esperado . Graciliano articula, com rara mestria, os dois aspectos da palavra. Tudo em seu texto é meticulosamente selecionado para criar o efeito desejado e orientar o discurso com objetivo facilitador.

A seleção primorosa que compõe o texto sugere, de maneira indiscutível o clima de tensão do personagem e contribui para inserir o leitor no ambiente retratado pelo narrador. São vocábulos e expressões empregados estilisticamente com o objetivo de despertar as emoções do interlocutor para o clima de “Angústia”. Ora são explorados os recursos fônicos das palavras com o uso d onomatopéias: “Saía pinoteando pererê, pererê, pererê”.Chap, chap, chap. Era o vascolejar da água nas garrafas”. “Chi, chi, chi. Um riso semelhante a um cochicho”. ”Os ratos é que me moíam a paciência. Corrote, corrote”. “Os armadores rangiam: ran, ran”. “A espuma entrando nos sovacos e nas virilhas fazia um gluglu”. Outras vezes extraindo expressividade fonética dos vocábulos, empregando diminutivos e aumentativos: “Doutor Gouveia (...) meteu este trabalhinho num caixilho dourado”. “Uma criaturinha insignificante”. “A coisinha loura tornou a aparecer em companhia de uma mulherona sardenta...” “A mulherinha me inspirou interesse”. “O povaréu se apertava na calçada da cadeia”. “Perdendo, ali, como um rapazinho, momentos preciosos”. “O homenzinho do jornal e da repartição não era eu”.

A estilística léxica também é explorada pelo autor em vocábulos e expressões. Areferência sistemática a animais que causam repugnância, remetem-nos para o fato de que “o vocábulo sofre o contágio das sensações agradáveis ou desagradáveis que decorrem das próprias coisas” (Câmara Jr:1978) e contamina o leitor com a força da seleção: “Um rato roía-me as entranhas”; “ Era uma existência de cachorro”; “amava aos gritos, como os gatos e os ciganos”; “Velhas que pareciam formigas, cavavam, podavam, regavam”; “eram uns ratos”; “tinha os dentes miúdos, afiados e devia ser um rato”; “...folhas amarelas e roídas pelos ratos”; “o rato roía-me por dentro”; “mexia-se como um rabo de lagartixa cortado”; “Eu era um gato ordinário”, “Tinha corrido por ali como um rato chiando”; “As formigas iam e viam, entravam-me pelos dedos”; “Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano”; “A cascavel chocalhava”. Fragmentos como estes, espalhados pela obra, contagiam o leitor com sensações visuais dos elementos citados.

As palavras são cuidadosamente selecionadas: “Sangrei mais quinhentos mil réis”. “A vitrola de D. Mercedes moía a paciência da gente.”

Dentre os vários recursos estilísticos de que se vale o escritor, deve-se ressaltar a preferência pelas comparações e pelo uso de vários adjetivos para caracterizar um único substantivo: “Às vezes o coração se apertava como corda de relógio”. “Marina apareceu enroscando-se como cobra de cipó”. “Amava como os gatos e os ciganos”. “Os arames balançavam como cordas” e “Mulher antipática, amarela muito faladora”. “... o jardim (...) tudo feio, pobre, sujo. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor”. “Pimentel amarelo, triste, silencioso.” “Três moças amarelas, sujas, mal vestidas, ruivas e arrepiadas. Marina (...) preguiçosa, ingrata, leviana.”

Muitos são os exemplos que poderíamos apresentar, optamos por alguns que pudessem demonstrar um pouco da habilidade do autor.

 

A importância do leitor:

É o receptor que, de posse do material escrito, lhe atribuirá um sentido. É de sua recepção que dependerá o sucesso ou fracasso de um texto. Para isso o leitor deverá ativar os seguintes conhecimentos: (KLEIMAN :2000):

·    Conhecimento prévio;

·    conhecimento lingüístico;

·    conhecimento textual;

·    conhecimento de mundo;

·    conhecimento enciclopédico;

·    conhecimento estruturado.

Para o conhecimento lingüístico é necessário que, tanto as estruturas sintáticas quanto o vocabulário sejam acessíveis ao leitor. Na obra em estudo, as construções enxutas e diretas, dizem o essencial, mas não obscurecem o entendimento da leitura; é verdade que, muitas vezes o escritor conta com o conhecimento estruturado do leitor, sua experiência particular com o idioma para preencher os espaços de ausência ou entender situações de Língua, tais como: “...não tenho onde cair morto.” “Um galo, no galinheiro, pôs-se a arrastar as asas para uma franga.” “Aquela com os burros n’água.” “Era um cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita.” “O sujeito espiou-me com o rabo do olho e amoitou-se.” “Quando ela entrou, desentoquei-me.” mas isto não chega a ser prejudicial ao entendimento global.

Quanto ao vocabulário, excetuando-se os poucos regionalismos, que, antes de serem obstáculos, são preciosos para o entendimento da vida, do cotidiano dos personagens, e a relação destes com o meio, as demais escolhas são brilhantemente simples, acessíveis a qualquer iniciante do idioma.

Para o conhecimento textual, vale lembrar que se trata de uma obra literária, pertencente ao gênero narrativo e inserida no movimento modernista brasileiro.

O conhecimento de mundo que abarca os conhecimentos enciclopédico e estruturado exige do leitor percepção do mundo circundante para traçar as relações necessárias à compreensão textual e participar do diálogo proposto pelo escritor. Dois exemplos relacionados a este conhecimento: “A trovoada ainda roncava no céu.” “...no ano passado, surgia como um de vento.”

Isto posto, passemos a um breve comentário sobre a obra.

 

Angústia

O texto em questão é literário, pertence à categoria ficcional, donde se depreende uma maior liberdade e poeticidade no uso das palavras que o compõe. A estrutura narrativa, porém, obedece, normalmente, a certos critérios de regra de formação. Elisa Guimarães, citando Van Djik, nos lembra queexposição, complicação e resolução tecem o esqueleto do texto narrativo” (Guimarães, 2001). Dentro deste esquema, o escritor tem liberdade de exercitar sua criatividade e é justamente a engenhosa criatividade de Graciliano que torna a estrutura de Angústia singular e, ao mesmo tempo, complexa, à primeira leitura, oferecendo para o leitor um riquíssimo trabalho de linguagem.

Na impossibilidade de destacar todos os fragmentos importantes para a discussão, optamos por uma seleção do que julgamos mais relevante.

 

Bibliografia

CÂMARA, J. Mattoso,Contribuição à Estilística Portuguesa. 3ª ed; Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.

KLEIMAN, Ângela. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7ª ed. Campinas: Pontes, 2000.

RAMOS, Graciliano. Angústia. 54ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.