O dicionário na sala de aula
uma proposta de leitura
em língua estrangeira

Angela Marina C. Ferreira (UGF)

Dicionários e lexicografia

Em referência à tradição lexicográfica européia em geral e hispânica em particular podem ser assinalados alguns dados. Embora representem instrumentos didáticos, os vocabulários, tesouros, dicionários compartilham essa função com as gramáticas. Os vocabulários pré-renascentistas bilíngües reproduzem o modelo Latim/ língua vulgar, como instrumentos de ensino que têm o objetivo de comparar ou contrastar as línguas como método de aprendizagem. Nebrija juntamente com a primeira Gramática da língua castelhana, é também responsável pela publicação do vocabulário Latim - castelhano em 1495. Ainda que esses vocabulários sigam uma linha de modelo clássico, tanto no que se refere ao objeto quanto à metodologia de ensino, é a partir do século XVI que aparece uma orientação mais pragmática em que, por razões históricas, a busca da inteligibilidade entre grupos lingüísticos diversos subsidia esse tipo de produção.

Na Europa renascentista, a necessidade de aprendizagem de uma outra língua vulgar, que não fosse a materna, se torna vital para alguns setores como comerciantes e nobres de baixa renda que precisavam se comunicar com uma relativa urgência, em função do ordenamento social e econômico. Para a língua castelhana, aparece uma quantidade de vocabulários e Diálogos em diversos lugares de Europa, refletindo uma outra perspectiva, em relação aos cânones gramaticais, que aponta para a natureza oral e interpessoal da língua e, ao mesmo tempo, aspectos fáticos, intercâmbios e relações sociais da interação cotidiana.

A partir do século XVII, no momento da consolidação política dos Estados europeus, a ascensão das línguas vulgares a línguas de poder tem um sustentáculo nas Gramáticas, com o princípio da normatização e nos Dicionários, como acervo léxico patrimonial da língua. Em contraste com a produção bilíngüe, a composição dos dicionários nesse momento é fundamentalmente monolíngüe, não mais dirigidos para aprendizes de outra língua, mas para os falantes nativos, com a função de padronizar uma escrita e a preocupação normativa de estabelecer cânones. Na Espanha, a primeira edição de um Dicionário publicado pela Real Academia Espanhola é apresentado como Dicionário de Autoridades (Diccionario de la Lengua Castellana, compuesto por la Real Academia Española, 1726 -1739) - reeditado somente uma vez, em 1770 - com essas características e assumindo essas funções. Após uma reestruturação modernizadora feita em 1817, o Dicionário de uso da Real Academia (DRAE), cuja primeira edição data de 1780, é publicado com uma relativa regularidade até o presente, mantendo o seu status de autoridade.

Princípios lexicográficos

A lexicografia se entende como doutrina da realização de dicionários, representando o vocabulário de uma língua natural, um dialeto, uma especialidade. (Theodor Lewandowski ap. Miranda,1994) Como técnica ou arte de compor dicionários, enfoca a análise da língua e sua principal ocupação está em compor léxicos e dicionários.

No que concerne ao estudo proposto neste trabalho, é importante ter como pressuposto que a organização do dicionário está atrelada ao rigor científico da lexicografia que por sua vez, envolve estudos da língua e dos textos nos quais ela se insere que, em última instância, estará representado no dicionário. Nesse sentido, a língua está representada através de vários tipos de dicionários que são elaborados e, portanto, se encontram disponíveis. Todos levam em consideração o público ao qual se destinam e estão estruturados em relação ao atendimento deste objetivo.

O dicionário, do ponto de vista institucional, tem as funções de comunicar e informar, faz parte do registro da norma culta de uma determinada comunidade lingüística porque nele se descreve a norma lingüística vigente. Ao mesmo tempo, a norma lingüística determina a gramaticalidade, enquanto a norma culta dimensiona a aceitabilidade das inclusões de frases e lemas no dicionário. Tais aspectos fazem do dicionário um instrumento cultural, que coloca em circulação dados sobre a língua e informações culturais, além de também conter dados sobre o momento histórico em que foi elaborado. Constitui um instrumento de pesquisa e de ensino ao incorporar aspectos semânticos, sintáticos, morfológicos, fonéticos da língua. (Murakawa, 1984:110)

A questão do registro

A noção de registro, como o conjunto de diferenças em função da relação entre texto e contexto situacional, é incorporada aos dicionários de forma irregular. As diferentes formas relacionadas a registros aparecem como formais, informais, vulgares, familiares, coloquiais, grosseiros, escritos, falados, científicos, jornalísticos, didáticos, entre outros, sem seguir uma tipologia precisa. O registro depende da relação entre as características lingüísticas e os traços do contexto situacional e pode ser mais ou menos especializado, segundo o campo, mais ou menos formal segundo o tom ou ordem, mais ou menos coloquial de acordo com o modo. Entretanto, o registro é parte de uma decisão estilística do falante, determinada pela função do texto e pelo contexto, assim, dentro dos limites impostos por estas funções, são escolhidas as opções disponíveis. (Maldonado, 1999: 47 - 53)

Embora seja um dado relevante para uma obra de consulta, nem todos os dicionários mencionam o registro das unidades léxicas, entretanto, fazê-lo representa um auxílio para o falante não nativo assim como também para o nativo, que precisa de informações sobre a adequação sociolingüística quanto aos usos dos itens léxicos. O registro não é uma informação que faça parte com regularidade e eficácia das obras lexicográficas em geral, principalmente no que diz respeito à formalidade e informalidade de determinada unidade léxica ou expressão. Assim, quando consta do enunciado lexicográfico, o registro pode tornar-se um bom indicador para o uso adequado da língua.

Funções: autoridade e normatividade

Entende-se por norma (Reyes,1998:366) o conjunto de regras que regem os usos lingüísticos considerados “corretos” em uma comunidade de falantes. Embora se reconheça que não há uma sujeição às normas na fala, em todas as situações, há um consenso quanto à escrita, no sentido de que as regras são indispensáveis para assegurar aceitabilidade social e eficácia. Normatividade se entende como a faculdade de produzir estas regras de correção a que estão sujeitos os usuários da língua e que circulam, principalmente, nos dicionários e gramáticas, de notório crédito.

Embora não seja invocada, a autoridade é reconhecida como uma das mais importantes atribuições do dicionário. Como uma das operações cognitivas, “hablar es siempre definirse” (Maldonado,1998:11) e, nesse sentido, o uso do dicionário instrumentaliza essa função,

A veces se oye la queja de quien no se siente comprendido “porque no sabe hablar con palabras técnicas”. Esa ignorancia es fruto de haber vivido de espaldas al Diccionario, de olvidar que es un caudal abierto y generoso, que sólo se niega a quien se niega a beberlo.

El diccionario es, nada más y nada menos, que el libro de todas las conversaciones, el libro de todos los libros. Porque unas y otros están hechos con palabras, sólo con palabras, y el Diccionario es el libro de todas las palabras. Por eso, el Diccionario es la forma más derecha de evitar que, como se dice en El Principito, la palabra sea fuente de malos entendidos (Saint-Exupéry, 1997: 84). (...) todos podemos aproximarnos a una meta que como nos lleva a expresarnos mejor y a entender mejor, nos hace también vivir mejor. El Diccionario es la puerta mágica, el tornado extraordinario que nos conduce a ese maravilloso reino de Oz (...). (Rodríguez Rodríguez, M.C.,1999)

A autoridade, no que tange à tradição lexicográfica Língua Espanhola está no Dicionário da Real Academia Espanhola da Língua (DRAE), instituição (RAE) fundada em 1713, para normatizar a LE, com o aval da Coroa Espanhola. Sendo assim, as obras lexicográficas de língua espanhola geralmente o tomam como base.

En efecto, un diccionario que se propone reunir y explicar formas o acepciones ausentes en el DRAE tendrá más credibilidad si ofrece citas ilustrativas para cada una de las acepciones que vaya presentando. (...) (Diccionario de Hispanoamericanismos, 2000, Introducción: 9)

Essa representação da importância do DRAE como agente de normatização da língua através do dicionário, coloca em circulação a função de “consagrar” uma palavra ao incluí-la em seu repositório léxico. Por outro lado, Richard, reconhece a autoridade do DRAE sobre a língua geral, ao dialogar com ele no sentido de considerá-lo como referência no levantamento do corpus do seu Diccionario de Hispanoamericanismos (2000). O autor faz um levantamento e registro do que não existe no DRAE e, dessa forma, se apresenta como uma alternativa lexicográfica.

As modificações nos verbetes

Enquanto obra que registra momentos históricos, sociais, políticos, ideológicos, um “retrato” da comunidade idiomática em um momento determinado, a utilização didática do dicionário geral, principalmente em sala de aula, é um dos recursos de estabilização desse papel normativo, mas ele está também vinculado a outras práticas sociais de prestígio, de maneira a ocupar um lugar de referência na representação da língua:

(...) o sentido quase mítico do dicionário como depositário da língua, seu conseqüente prestígio normativo, valores de segurança e coesão, o sentimento, às vezes inconsciente, de sua utilidade para conhecer e aprender a língua. (Casares 1944, Collignon-Glatigny 1978, Gove 1967), Hartman (1983), refletir as modificações do léxico. (Bowden 1987 ap Garrido,1991:32) (trad. nossa)

Todos esses aspectos guardam relação com a sociedade porque o dicionário estabelece um diálogo com ela num momento determinado, apesar de sua vocação de perenidade (Malkiel, 1979). A ilusão de perenidade está relacionada à intenção normativa do dicionário, como pode ser observado na representação no século XVIII, em que ter um dicionário significava adquirir um seguro de vida sobre a língua (Alvar Ezquerra 1983, 1986; Garrido, 1987: Garrido: 1991).Como reflexo histórico, podem ser identificados no dicionário registros de aspectos relacionados à política dominante, à religião, aos tabus e preconceitos, à ideologia enfim, identificada nas descrições dos verbetes, ainda que não apareçam como rubricas identificativas. Em edições publicadas em anos diferentes de um mesmo dicionário, após reorganizações periódicas, podem ser observadas mudanças significativas nas descrições (são acrescentados ou retirados significados), na formatação dos lemas (nomes que se apresentavam em maiúsculas e passaram a ser incluídos em minúsculas), nas rubricas (lemas que não estão mais identificados sob estas). Na comparação da composição de um lema em duas versões diferentes pode ser constatada diversidade do tipo de informação e do tipo de recursos explicativos nas descrições.

Assim, na edição do DRAE 1947, p.e., o lema Dios é incluído com maiúscula inicial enquanto que na edição de 1992, o DRAE o registra com letra minúscula,

dios.

Del lat. deus.

1. n. p. m. Nombre sagrado del Supremo Ser, Criador del universo, que lo conserva y rige por su providencia.

2. m. Cualquiera de las deidades a que dan o han dado culto las diversas religiones; como el DIOS Apolo o el DIOS Marte, de los latinos; el DIOS Brahma, de los indios; el DIOS Niord, de los escandinavos; el DIOS Tlaloc, de los mejicanos, etc.

Dios chico.

1. Ceremonia subsiguiente a la procesión del Dios grande para llevar sin solemnidad la comunión a los enfermos que no pudieron recibirla entonces.(...) (DRAE, 1992)

A principal questão do lema, com o qual a representação em maiúscula guarda relação, está na relativização da definição, ao referir como explicação principal uma abstração de qualquer credo religioso. Entretanto, as outras referências a dios se apresentam em letras maiúsculas iniciais, Nombre, Supremo Ser, Dios chico e outras, que assinalam a manutenção da tradição religiosa no registro do nome Deus, destacando-o através da maiúscula inicial.

Já no enunciado lexicográfico do lema dios no DRAE 1947, aparece:

Dios

Del lat. Deus. m.

1. n. p. m. Nombre sagrado del Supremo Ser, Criador del universo, que lo conserva y rige por su providencia.

2.cualquiera de las falsas deidades veneradas por los idólatras como el como el DIOS Apolo o el DIOS Marte, de los latinos; el DIOS Brahma, de los indios; el DIOS Niord, de los escandinavos; el DIOS Tlaloc, de los mejicanos, etc. (...) (grifos nossos)

A relativização na edição de 1992 está na parte que diz respeito à exemplificação, quando há referências a deidades de outro credo religioso que não o cristão, com maiúscula e sem qualificativos. As modificações e as diferenças na grafia do lema,evidenciam as mudanças ideológicas registradas no dicionário. Do mesmo modo, as palavras em negrito evidenciam um juízo de valor daqueles que construíram o enunciado lexicográfico.

É importante destacar a reprodução, em parte idêntica, da descrição do lema do DRAE 1947, encontrada em outros dicionários, como no caso da edição de um Dicionário Enciclopédico Ilustrado sob a direção de José Alemany, de la Real Academia Española (Barcelona,s/a):

DIOS.

m. Nombre sagrado del Supremo Ser, Criador Universal // Cualquiera de las falsas deidades veneradas por los idólatras// (grifos nossos)

O fato de o DRAE constituir-se em principal referência nas descrições dos enunciados de outras obras lexicográficas evidencia a importância do Dicionário da Real Academia no que se refere à autoridade, normatividade e, mesmo, à transmissão de ideologia, circulando em outras publicações hispânicas.

Utilização didática

Por conter aspectos que evidenciam um contexto sócio-cultural determinado, os dicionários gerais da língua podem trazer suportes para, entre outros exercícios em sala de aula, realizar estudos diacrônicos que promovam o diálogo entre áreas do conhecimento como língua e história, por exemplo. Através do estudo de verbetes sobre o mesmo lema, é possível identificar posições políticas e culturais desde o ponto de vista do enunciador da obra lexicográfica e, portanto, traçar um perfil do pensamento dominante na ocasião, em acordo com a lexicografia discursiva que vê, nos dicionários, discursos (Orlandi: 2002,103), textos cuja produção se vincula a uma determinada rede de memória diante da língua.

Uma proposta de trabalho está contida no item anterior: analisar verbetes do mesmo dicionário em duas edições temporalmente distintas e observar como estão incluídas questões que envolvem os aspectos sócio-culturais e relacioná-los ao momento histórico e político em que foram elaborados. Este tipo de investigação evidencia as mudanças ocorridas na passagem do tempo entre uma e outra edição, além de indicar, muitas vezes, a postura do enunciador, no caso, dos lexicógrafos responsáveis pela descrição da entrada, além do local da enunciação em diversas situações.

Considerações finais

O dicionário pode constituir-se em um instrumento significativo no trabalho em sala de aula visto como um discurso que evidencia aspectos sócio-lingüísticos da comunidade idiomática em um momento determinado, ultrapassando as funções mais corriqueiras de decodificador, guia ortográfico ou gramatical, motivo da maior parte das consultas.

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