O LÉXICO NO POEMA
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
DE MANUEL BANDEIRA

Luci Mary Melo Leon

“Vou-me Embora pra Pasárgada” foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropedia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge Informou-me que Estrabão e Arriano, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso em que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de Pasárgada, que significa “campo dos persas” ou “tesouro dos persas” suscitou na imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias como o “L’Invitation au Voyage” de Baudelaire. Mais de vinte anos quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me Embora pra Pasárgada!” Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo mas fracassei. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da “vida besta”. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e “não como forma imperfeita neste mundo de aparências”, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro e sim a “minha” Pasárgada.

Essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não quis dar. Bandeira não foi arquiteto como seu pai queria. Mas reconstruiu uma cidade ilustre que deixou de ser a Pasárgada de Ciro para ser a Pasárgada de Bandeira.

A importância desse poema não é simplesmente a redondilha construída à moda do arcadismo, mas no que ele tem de mais representativo da poesia popular. Podemos observar que seus versos são simples sem nenhum esforço artificioso de construção. O poema serve para nos mostrar que o “ir-se embora pra Pasárgada” significa ingressar na vida comum, abandonar-se, ser livre. A fantasia, o “impossível” das imagens por meio das quais o poeta nos transmite a sua vontade de libertação, não nos deve enganar sobre o seu sentido profundamente humano. O poema tem no ritmo apressado e ofegante, dinâmico e violento dos seus versos o sabor das grandes libertações. O poema também tem seu valor pela musicalidade que ele apresenta. Tanto que bandeira declarou que nunca a palavra cantou por si, e só com a música pode ela cantar verdadeiramente.

Pasárgada é o mundo em que o poeta não é tísico. É o grande sonho ou a grande esperança que estejam no mais fundo da alma do homem. Pasárgada é o paraíso do poeta. Lá ele tudo poderá. A mulher que desejava amar. Esta é a idéia principal. É a idéia dominante, que se repete em vários versos. A segunda idéia é a da libertação do mal do corpo. O poeta poderá amar à vontade, como praticar todos atos físicos que a saúde lhe veda no mundo real. Tudo que deveria ter feito enquanto criança. O tempo de menino é reconstruído no seu mundo de imaginação.

Em Pasárgada não poderá haver tristeza nem desalento, pois tudo lhe permitiria o seu rei e livre seria o seu corpo para os prazeres do corpo. A importância do poema transcende a realidade de uma vida triste. É a mistura de momentos paradoxais do poeta. Bandeira remete as imagens da infância e da adolescência pré-tísica que vivenciou. O poema fala da boêmia e da saúde. Pasárgada não é apenas espaço físico, mas espaço-tempo em que aparece o Recife da infância do poeta, “andar de bicicleta, montar em burro brabo, subir no pau-de-sebo, tomar banhos de mar”.

Pasárgada não pode ser lida como uma simples palavra que de forma aleatória o poeta resolveu dar vida. O seu significado está além de qualquer dicionário. O seu valor é uma vida inteira que poderia ter sido vivida e que não passou de sofrimento e desejos somente idealizados. Só conhecendo a vida de Bandeira é que poderemos encontrar um pouco da inspiração que levou o poeta a viver durante muitos anos em Pasárgada. Em Pasárgada ele iria encontrar a Felicidade. Manuel Bandeira continua em Pasárgada: mais que nunca, os poemas do livro que segue libertinagem vêm datados de Pasárgada, e o mistério mais que nunca domina.

O mundo pode ser e deve ser construído a partir das palavras, porque a vida de cada palavra vai além do seu próprio significado. Só o poeta sente o que cada vocábulo carrega no decorrer do texto. A sua capacidade de conviver com as palavras é exatamente esta: a de dizer tudo com um mínimo ou quase nada. As palavras para Bandeira têm uma missão: a de transmitir a tantas outras a promessa da dor, da infância e da adolescência do poeta.

A título de ilustração apresentamos o levantamento lexicográfico do poema VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA, TRANSCRITO A SEGUIR:

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA (pág. 222)

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe - d’água.

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

- Lá sou amigo do rei -

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Alguns exemplos, do levantamento lexicográfico:

ALCALÓIDE - s. m. (1858). Classe de substâncias orgânicas nitrogenadas com características básicas - pág. 222- Tem alcalóide à vontade.

AMIGO - s. m. (séc. XIII). Indivíduo com quem se tem amizade; companheiro; camarada - pág. 222 - Lá sou amigo do rei.

ANDAR - v. (1082). Passear; caminhar - pág. 222 - Andarei de bicicleta.

AQUI - adv. (séc. XIII). Lugar onde está o falante - pág. 222 - Aqui eu não sou feliz.

AUTOMÁTICO - s. m. (1836). Que se move ou funciona por meios puramente mecânicos - pág. 222 - Tem telefone automático.

AVENTURA. - s.f. (séc. XIII).´Façanha; peripécia - pág. 222 - Lá a existência é uma aventura.

BANHOS. - s. m. (950). Ato ou efeito de molhar o corpo para higienizar-se; refrescar-se - pág. 222 - Tomarei banhos de mar.

BEIRA - s. f. (1228). Borda; margem - pág. 222 - Deito na beira do rio.

BICICLETA - s. f. (1897). Veículo composto de um quadro (conjunto de tubos metálicos), assentado sobre duas rodas iguais alinhadas uma atrás da outra e com raios metálicos, das quais a da frente é comandada por um guidom e funciona como diretriz, e a de trás, ligada a um sistema de pedais acionados pelo bicicletista, funciona como motriz - pág. 222 - Andarei de bicicleta.

BONITAS - adj. (1560). Belas; atraentes - pág. 222 - Tem prostitutas bonitas.

BRABO - s. m. (1124). Bravo; rebelde; feroz - pág. 222 - Montarei em burro brabo.

BURRO - s. m. (séc. XIV). Animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento - pág. 222 - Montarei em burro brabo.

CAMA. - s. f. (séc. XIII). Lugar onde uma pessoa ou animal pode deitar-se e/ ou dormir com relativo conforto - pág. 222 - Na cama que escolherei.

CANSADO - adj. (séc. XIII). Fatigado; afadigado - pág. 222 - E quando estiver cansado.

CIVILIZAÇÃO - s. f. (1833). Comunidade; lugar - pág. 222 - É outra civilização.

CONCEPÇÃO - s.f. (séc. XV). Produção; criação - pág. 222 - De impedir a concepção.

CONTAR - v. (1292). 1- Falar; dizer - pág. 222 - Pra me contar as histórias. 2- Relatar; dizer - pág. 222 - Rosa vinha me contar.

CONTRAPARENTE - adj. (1727). Parente por afinidades - pág. 222 - Vem a ser contraparente.

DAR - v. (1211). Sentir; passar - pág. 222 - Quando de noite me der.

DEITAR - v. (séc. XIII). Repousar; descansar - pág. 222- Deito na beira do rio.

DEMENTE - adj. (1789). Desmiolado; lunático - pág. 222 - Rainha e falsa demente.

ESCOLHER - v. (séc. XIII). Manifestar preferência por alguém ou algo - pág. 222 - Na cama que escolherei.

ESTAR - v. (1044). Apresentar; sentir - pág.222 - E quando estiver cansado.

EXISTÊNCIA - s.f. (séc. XV). O viver; o estar vivo - pág. 222 - Lá a existência é uma aventura.

FALSA - adj. (séc. XVII) - pág. 222 - Rainha e falsa demente.

FAZER - v. (991). Realizar; praticar - pág. 222 - E como farei ginástica.

FELIZ - adj. (séc. XIII). Afortunado; venturoso; ditoso - pág. 222 - Aqui eu não sou feliz.

GENTE - s.f. (séc. XIII). Pessoas; indivíduos - pág. 222 - Para a gente namorar.

GINÁSTICA - s.f. (1819). Exercícios; atividades - pág. 222 - E como farei ginástica.

Lembrando que esse levantamento será de extrema importância para os estudiosos de Manuel Bandeira, faz-se necessário, a valorização de um poema que foi o retrato de um grito no meio da dor e da solidão. “Vou-me Embora pra Pasárgada” não estava perto da vida que ele tinha e o induzia a fugir para “outra civilização”. Pasárgada era a fuga, a saída para um outro mundo, ainda que inexistente.

A doença o prendeu no repouso obrigatório. Com isso, a vida que podia ter sido, e que não foi, só lhe permitia saídas imaginárias. Mas Pasárgada seria também a poesia, que estava no seu itinerário, na sua adolescência e na sua dor. Pasárgada percorreu durante anos a vida “Bandeirana”.

Pasárgada tem seus momentos de volta à infância, tem seus momentos no amor que nunca o poeta deixou de ter, na vida boêmia e na vida saudável. Pasárgada era o desabafo do poeta. Talvez seja lá que o poeta “Maior” esteja hoje, pois aos seus oitenta e dois anos, Pasárgada veio buscá-lo para eternamente viver a vida que nunca conseguiu Viver.

O encontro da inspiração é totalmente voltado para o sofrimento. Bandeira tem como âncora a sua dor. Sua poesia nasce do tédio e da solidão. Seu mundo foi criado a partir das palavras contidas na dor. O léxico desperta no leitor a arte de compreender a poesia, não o deixando anestesiado, pois os vocábulos carregam múltiplas significações. Estudar o léxico é uma mistura de saber e sabor, principalmente quando voltado para a obra de um “Poeta Maior”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ALVES, Ieda Maria. A Constituição da Normalização Terminológica no Brasil. São Paulo: FFLCH/USP, 1996.

ARRIGUCCI, Davi Jr. Humildade, Paixão e Morte: A Poesia de Manuel Bandeira. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.

BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

PONTIERO, Giovanni. Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986.

SILVA, Maximiniano de Carvalho. Homenagem a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Presença, 1989.