O PONTO DE VISTA DA MERONÍMIA
SOBRE O PAPEL DO LÉXICO NO TEXTO

Maria de Fátima Henriques da Silva (FLUP e CLUP - Portugal)

Este estudo, que assenta no princípio de que o léxico pode ser analisado na dupla perspectiva de componente do sistema lingüístico e de estratégia lingüística em situação de uso, propõe uma abordagem articulada dessa dupla funcionalidade, apresentando uma reflexão sobre o papel do léxico no texto, que toma como ponto de partida a relação semântica de meronímia, tratada de um ponto de vista não só léxico-semântico, mas também cognitivo-textual.

A MERONÍMIA DO PONTO DE VISTA LÉXICO-SEMÂNTICO

A meronímia tem sido objeto de estudo de diferentes áreas da Lingüística no âmbito das quais responde a motivações diversas, como atestam os trabalhos de Lyons (1977), Cruse (1986), Winston et al. (1987) e, mais recentemente, as contribuições de Tamba (1991), Vossen (1995), Diez Orzas (1999) e Salles (2000).

Embora os autores manifestem algumas diferenças relativamente à delimitação do conceito, aos tipos de meronímia propostos e às estruturas lingüísticas que os expressam, a definição deste fenômeno lingüístico como uma relação semântica cuja essência reside em considerar que uma unidade léxica é parte de uma outra unidade léxica é consensual, assim como a necessidade de a destacar do conjunto de relações semânticas que envolvem a idéia de inclusão.

Uma proposta de definição

A análise dos exemplos [1] e [2] permite amplificar esta definição minimalista de meronímia e enunciar os seus principais traços distintivos:

[1] Encontra-o dentro de uma caixa de chocolates com uma paisagem de Chamonix na tampa, guardada, pela mulher, «no armário onde se encerra a alma da família em construção».

[2] O acidente deu-se quando, ao afastar-se da placa onde se encontrava estacionado, preparando-se para se fazer à pista, para levantar voo de regresso a Lisboa, o avião da transportadora aérea portuguesa embateu, com a sua asa, na traseira de um dos novos boeing 737 da Lam, a companhia moçambicana (par 14908).

A ligação ‘caixa’ - ‘tampa’ e ‘avião’ - ‘asa’ manifesta a existência de uma relação de tipo parte - todo, caracterizada dentro da hierarquia representada pelo verbo ‘ter’, cuja paráfrase corresponde às seguintes asserções:

X é uma parte de Y

Y tem um X

Nos exemplos [1] e [2], a relação entre o todo e as suas partes traduz-se em afirmações do tipo:

A tampa é uma parte da caixa. A caixa tem uma tampa.

A asa é uma parte do avião. O avião tem asas.

É, assim, uma relação que, ao contrário de outras relações de inclusão, não implica propriamente uma inclusão entre classes, mas a conexão entre dois elementos que estão mutuamente implicados. Essa implicação corresponde à paráfrase:

X está implicado no sentido de Y

Há, por esse fato, uma espécie de inclusão entre a entidade que sofre a divisão e o resultado que dela decorre, não estando, no entanto, as propriedades do todo obrigatoriamente incluídas nas suas partes, dado que uma parte não é semanticamente idêntica ao sentido do todo. Por este motivo, a meronímia é assimétrica e muitas vezes intransitiva.

Além disso, esta relação depende do modo como cada parte individual possível se relaciona com o todo, visto que a relação de dependência varia conforme se trate de um todo composicional ou de um todo funcional. Em qualquer dos casos, ontologicamente, uma parte de um determinado todo caracteriza-se sempre pelo traço ‘espécie’, já que indica, em simultâneo, o todo com o qual está relacionada e o tipo de coisa de que se trata.

Uma proposta de classificação

Considerando que esta relação se integra na relação semântica genérica de inclusão e se caracteriza por ser uma relação estrita de ordenação parcial, Winston et al. (1987) propõem uma tipologia de seis categorias, baseando a sua distinção em elementos de natureza relacional, segundo os quais as partes se classificam com os traços [± funcional], [± idêntico] e [± separável].

A relação componente-objecto integral corresponde à relação parte-todo típica. O todo inclui a parte e é constituído por várias componentes, normalmente discretas, que apresentam limites e funções definidas em relação a esse todo. Trata-se, por conseguinte, de uma relação com os traços [+ funcional, - idêntico, + separável].

Os exemplos [3] e [4], da mesma forma que os estratos [1] e [2], integram-se neste tipo de meronímia, que é essencialmente atualizada através de nomes concretos.

[3] O corpo de um homem com 55 anos foi encontrado ontem, às 5h00, pendurado com a própria camisa num pinheiro da mata de Monserrate, freguesia de Colares, com arranhões nas costas, ferimentos na cabeça e cortes nos pulsos, a 200 metros da viatura de sua propriedade, um Talbot creme, abandonado na estrada (par 31546).

[4] O deputado do PSD e ex-secretário de Estado do Ambiente é um dos dirigentes da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, que organizou a «corrida», com o objectivo evidente de sensibilizar as pessoas para as vantagens do pedal (par 76628).

A relação membro-colecção ocorre quando a parte, representada ou não por um objeto singular, é um membro do todo, que denota um conjunto de entidades similares, caracterizadas por uma identidade distinta, nas quais se inclui a parte. Correspondendo normalmente a nomes concretos, apresenta os traços [- funcional, - idêntico, + separável], como ilustra o exemplo [5].

[5] Para minimizar o prejuízo e garantir a continuidade do rebanho, comprou 40 borregas de quatro meses, a nove contos cada uma, que só daqui a um ano é que virão a procriar (par 60392).

A relação porção-massa verifica-se quando a parte e o todo denotam substâncias, correspondendo a parte a uma quantidade não definida do todo, que tem os traços [± concreto]. É a relação meronímica menos típica, dado que a massa é sempre preexistente à porção, e caracteriza-se por ser [- funcional, + idêntica, + separável], como atesta o exemplo [6]:

[6] Para além da porção que o «vendedor» se preparava para entregar aos dois guardas, como se de consumidores se tratasse, e de outra pronta a vender a quem se seguisse, a maior quantidade de haxixe viria a ser descoberta sob um improvisado balcão, escondida entre martelos, colheres de pedreiro e baldes de massa (par 24541).

A relação material-objecto corresponde a uma conexão entre uma entidade concreta e a matéria de que é feita essa entidade, sendo definida pelos traços relacionais [- funcional, - idêntico, - separável], como se verifica, no exemplo [7], entre ‘bicicleta’ e ‘alumínio’, nomes com o traço classemático [+ concreto] e [+ massa], respectivamente.

[7] Esta estranha bicicleta é toda de alumínio e construída segundo a tecnologia de fabrico de automóveis (par 46464).

A relação fase/acção-actividade traduz a idéia de que uma atividade constitui um script com diferentes fases ou acções. Deve ser parafraseada por uma asserção do tipo X faz parte de Y e é definida pelos traços [+ funcional, + idêntico, - separável]. O exemplo [8] ilustra este tipo de meronímia, que é freqüentemente atualizado por nomes predicativos.

[8] A liquidação do empréstimo obrigacionista de 1998 vai ser feita da seguinte forma: a amortização de empréstimo será feita por pagamento de 50 por cento do capital em dívida em 30 de Março próximo, 25 por cento será pago em 30 de Setembro e o restante a 30 de Março de 1995; quanto ao pagamento dos juros foi decidido perdoar até à data da amortização de 50 por cento do capital... (par 72147).

A relação lugar-área denota a conexão de duas entidades concretas em que se manifesta a inclusão de um lugar no domínio de uma área mais abrangente. Caracteriza-se pelos traços [- funcional, + idêntico, - separável], como exemplifica a relação entre os nomes concretos ‘Moscovo’ e ‘Rússia’, em [9].

[9] Não deu o seu consentimento explícito à entrada de novos membros para a Nato, mas aceitou o projecto de um acordo entre Moscovo e a Aliança, a assinar dentro de «algumas semanas» pelos líderes da Rússia e dos 16 aliados.

A topologia proposta por Winston et al. (1987) relaciona-se de forma estreita com a natureza léxico-semântica das entidades que correspondem quer às partes, quer ao todo. Na medida em que existe uma relação de pertença que predica uma parte de um todo, mas nunca o todo como uma totalidade, o todo liga-se às partes mediante uma dependência ontológica na qual se definem as suas partes necessárias ou típicas.

Em função dessa definição, considera-se a existência de dois tipos de merônimos : os canônicos, que correspondem às partes típicas de um todo, e os facultativos, que não se encontram inscritos no estereótipo do todo ao qual estão ligados.

A esta distinção está subjacente não só o princípio de que “A é merônimo de B se e só se A é necessariamente parte de B e B inclui necessariamente A” (Marrafa, 2001), mas também a assunção de que é possível estabelecer correlações entre um merônimo e o respectivo todo com base na maior ou menor tipicidade semântica das partes em relação ao significado do todo, de tal forma que pode obter-se a combinação de relações apresentada na tabela 1.

A subespecificação constante da tabela 1 pode ser relacionada com a distinção que Diez Orzas (1999) faz entre meronímia especializada e meronímia não especializada. A diferenciação situa-se ao nível do uso, tomando como referência o número de contextos em que a meronímia ocorre.

Assim, a meronímia é especializada quando ocorre em contextos específicos, nos quais se produz uma inferência automática e direta, freqüentemente relacionada com a existência de uma denotação prévia ao uso das unidades léxicas em contexto, como indicam os extrato [1], [2], [3], [4], [5], [8] e [9].

tipo de merônimo tipo de todo exemplos
canônico canônico borrega - rebanho [5]; amortização - empréstimo [8]
canônico facultativo Moscovo - Rússia [9]
facultativo canônico tampa - caixa [1]; asa - avião [2]; pedal - bicicleta [4]; costas, cabeça - corpo [3]
facultativo facultativo porção - haxixe [6]; alumínio - bicicleta [7]

Tabela 1. Relação entre a parte e o todo quanto ao traço [±tipicidade]

Por sua vez, a meronímia não especializada surge em contextos não especificados, nos quais a inferência é de tipo indireto e variável. Esta caracterização aponta mais claramente para a noção de merônimo facultativo e para a existência de relações meronímicas não preexistentes ao contexto, mas propiciadas ou criadas através dele, como parece acontecer em [6] e [7].

A síntese de duas propostas

O esboço de definição e classificação proposto permite, neste ponto intermédio da análise, reiterar o princípio de que as relações semânticas devem ser descritas tanto do ponto de vista do sistema como do uso.

A tabela 2 sintetiza os principais traços da relação de meronímia e fornece os indicadores fundamentais para a sua abordagem no domínio da configuração textual.

A MERONÍMIA DO PONTO DE VISTA COGNITIVO-TEXTUAL

Esta abordagem fundamenta-se na concepção de texto como unidade de relações seqüenciadas, cuja textualização é, em grande medida, suportada pelos mecanismos inerentes à progressão textual, que pode ser perspectivada em termos de progressão tópica e de progressão referencial (Koch e Marcuschi, 1998), e à conseqüente produção de sentido.

A progressão referencial articula-se de forma estreita com a produção de tópicos textuais e constitui a base para o estabelecimento de relações micro e macroestruturais, que estruturam as redes temáticas.

Tabela 2: Principais traços definidores da meronímia[1]

Este tipo de progressão opera de forma dinâmica e variada, recorrendo a um conjunto vasto de processos de referenciação, de entre os quais se destaca o papel desempenhado pelo processo de designação dos referentes, entendidos como objetos de discurso. Há, pelo menos, cinco traços consignados à determinação dos referentes textuais introdução, preservação, continuidade, identificação e retoma – que têm por objetivo fulcral referir, elaborar o sentido e recategorizar os objetos presentes na memória textual.

Por isso, sempre que um referente é introduzido no universo textual, procede-se à sua manutenção referencial mediante um conjunto de recursos léxico-gramaticais, no qual é relevante o papel desempenhado pelas expressões nominais e, mais especificamente, pelas escolhas lexicais. De fato, a seleção lexical constitui um mecanismo muito produtivo nas operações de designação, pois permite criar e manter os objetos do discurso.

 

Meronímia e função textual

Uma das estratégias lingüísticas freqüentemente utilizadas em operações de designação referencial consiste no recurso à descrição definida, atualizada por meio de sintagmas nominais constituídos pelo conjunto de um ou mais especificadores e/ou um complemento adnominal e por um núcleo nominal preenchido lexicalmente por um merônimo.

Como o próprio traço designador do nome indica e a determinação sob a forma de conhecido pressupõe, o merônimo encontra-se numa relação de dependência interpretativa com outro segmento nominal, enquadrando-se num contexto discursivo de natureza macrossintáctica, em que habitualmente estão envolvidas duas ou mais proposições.

Neste sentido, a meronímia constitui um suporte muitas vezes ativado na configuração de relações textuais de tipo anafórico, que se definem basicamente como um processo interpretativo consistindo numa relação de dependência entre dois elementos – o antecedente (explícito ou implícito) e o anafórico. A relação entre estes dois pólos é mediada através de uma associação de natureza lexical, que assenta freqüentemente numa ligação convencional, num conhecimento genérico que une as entidades lexicais de uma forma estereotípica ou necessária[2].

No caso das anáforas configuradas por meio da relação de meronímia, a relação entre o antecedente e o anafórico baseia-se numa regra de implicação, na qual a expressão anafórica especifica e evoca a entidade lexical correspondente ao antecedente. Há, portanto, um fenômeno de incompletude semântica que deve ser resolvido inferencialmente, com base em ligações semânticas e informação contextual, porque as entidades lexicais envolvidas nesta relação não permitem a identificação de traços comuns semânticos entre elas, dado que o anafórico não está explicitamente relacionado com o antecedente, mas pressupõe um denotatum implícito inferível a partir do contexto anterior (Koch, 2002). Neste sentido, à representação do referente está subjacente uma implicação estrita baseada no conhecimento partilhado do elo estereotípico existente entre o anafórico e o seu antecedente.

 

Meronímia e anáfora

Por isso, denomina-se este tipo de associação anáfora associativa. É um tipo de anáfora indireta e não co-referencial que parece basear-se, em grande medida, numa associação fundada num conhecimento lexical preexistente à relação anafórica [3].

É evidente que estes traços léxico-semânticos devem ser conjugados com a função dos especificadores, que repercutem uma forma específica de estabelecer e manter a referência, e do contexto, pois essas unidades léxicas encontram a sua plena significação no texto[4]. Assim, dependendo do tipo de inclusão da representação anafórica, o processo anafórico torna-se mais ou menos fácil. O contexto, que é um indicador útil na predição do que se segue, pode criar algumas relações originais e justificar outras. Daí que haja casos em que a anáfora depende de um merônimo opcional, porque a ligação estabelecida entre a parte e o todo se baseia mais num conhecimento contingente do que numa relação lexical essencial.

O extrato [4], por exemplo, permite ilustrar a articulação entre fatores referenciais, semânticos e sintáticos envolvidos na configuração de uma anáfora associativa por meio da meronímia[5].

A relação anafórica entrebicicleta’ e ‘pedal’ funda-se numa inferência dedutiva através da qual se atribui a uma entidade não explícita o papel de foco da relação anafórica. Esta atribuição baseia-se numa dependência de natureza funcional, em que o conhecimento lexical e enciclopédico de que o ‘pedal’ é ‘uma alavanca anexa a certos instrumentos e máquinas’ (Costa, Melo, 1993) constitui uma instrução para procurar no contexto a entidade lexical que representa o ‘instrumento oumáquina por ele implicado. De resto, um traço comum à maioria dos exemplos apresentados reside precisamente no fato de a orientação da relação anafórica se processar de cada todo para as suas partes: os merônimos possuem a informação de serem uma parte do todo e funcionam como instrução para procurar esse todo. Em termos formais, este processo inferencial traduz-se na ocorrência quase exclusiva do artigo definido no SN anafórico e do artigo definido/indefinido no SN antecedente. O termopedal’ ocorre como componente provável de ‘bicicleta’, máquina que se caracteriza por ser ‘...acionada por um sistema de pedais que atua sobre uma corrente’ (Costa, Melo, 1993), de forma facultativa e especializada.

A análise do exemplo [4] permite ainda concluir que a anáfora é uma estratégia importante para a progressão textual, não devido à relação de coerência que impõe num determinado contexto, mas também pelas restrições decorrentes da natureza do que é predicado relativamente à referência anafórica (Cornish, 1996).

 

Função textual da anáfora

Por esta razão, as relações lexicais que configuram a anáfora atuam quer ao nível da continuidade textual, quer no domínio das inferências a ela subjacentes. Neste contexto, a anáfora indireta configurada por meio de meronímia envolve, de forma geral, a formulação de novas predicações em relação a objetos de discurso introduzidos. Nesse sentido, é considerada um processo híbrido, visto que predica alguma coisa acerca de um elemento por intermédio de outro elemento, que foi anteriormente apresentado ou sugerido no texto. Opera, assim, no que se refere à progressão textual, um movimento de continuidade e progressão, na medida em que é simultaneamente responsável por uma recategorização, que envolve a predicação de atributos sobre o objeto, e pela mudança na direção da referenciação.

Além de constituírem um procedimento da progressão referencial, a anáfora indireta de tipo semântico e com base lexical contribui ainda para a progressão tópica do texto, sendo um dos fatores subjacentes à configuração de redes temáticas.

A funcionalidade textual da meronímia é, portanto, visível a diferentes níveis, como se mostra na tabela 3.

O extrato [10] ilustra a funcionalidade descrita tanto do ponto de vista léxico-semântico como textual.

[10] Naquele dia, o rei, que sempre gostara de se levantar tarde, acordou cedo. Deu uma volta na cama e depois outra, e quando descobriu que não conseguia voltar a adormecer levantou-se. Tanto bastou para que a corte, que também dormia à sua volta, se levantasse, batendo palmas, como sempre sucedia quando o rei se levantava. O cortesão menor, solícito, embrulhou-o com um manto, para que o soberano não ficasse exposto à curiosidade das damas; e o ajudante de campo sentou-o no bacio, onde o rei costumava libertar-se do peso que lhe deixavam as pesadas refeições a horas tardias...[6]

Tabela 3: Contribuição da meronímia para a progressão textual

Neste exemplo, regista-se a textualização de mais do que uma relação de meronímia. A primeira, que ocorre entre o SN ‘o rei’ e o SN ‘a corte’, tem a direção parte-todo e situa-se basicamente no grupo componente-objecto integral, destacando-se o traço [+ funcional] típico desta subclasse. O merônimo é especializado quanto ao uso e canônico do ponto de vista da sua saliência semântica.

Por sua vez, o SN ‘a corte’ e os SN ‘o cortesão menor’, ‘as damas’ e ‘o ajudante de campo’ articulam-se mediante uma relação de meronímia tipo componente-objecto integral, com orientação todo-parte. O primeiro merônimo caracteriza-se pelos traços [+ especializado, +canônico] e os outros dois, pelos traços [- especializado, - canônico].

Do ponto de vista da progressão referencial, as meronímias destacadas configuram relações anafóricas de tipo indireto, que desempenham um papel temático-remático, possibilitado pelo fato de os dois pares convocarem conceptualmente o mesmo domínio. Para a sua integração no mesmo domínio conceptual, é importante considerar não conhecimento lexical das unidades léxicas, mas também o conhecimento genérico e partilhado acerca dessas unidades. Isso justifica, por exemplo, queajudante de campo’ assuma um valor referencial similar ao dos seus co-merônimos.

Em ambos os casos e independentemente da orientação assumida, há uma recategorização em que a nova predicação corresponde, no primeiro caso, a uma amplificação de referência e, no segundo, à sua especificação.

No seu conjunto, este esquema de progressão referencial tem conseqüências na progressão tópica, na medida em que permite estabelecer um conjunto de actantes para o ‘script’ atualizado, configurando o cenário em que se tematiza a narrativa que inicia.

 

CONCLUSÃO

Esta descrição, ainda que sumária[7], permite reiterar a proposta inicial da existência de complementaridade entre a perspectiva léxico­‑semântica e a perspectiva cognitivo-textual na análise da funcionalidade do léxico no texto. Essa convicção conduziu ainda à verificação de que as relações semânticas entre elementos lexicais, fundadas num conhecimento enciclopédico comum, são bastante significativas no que se refere à configuração de relações anafóricas. Este princípio, que manifesta uma clara interdependência entre semântica e pragmática, visível nos sentidos lexicais e no texto, permite validar a hipótese de que uma teoria baseada no léxico para explicitar a anáfora é relevante desde que suportada por um esquema cognitivo e pragmático de análise.

Uma outra conclusão, motivada pela percepção da incompletude metodológica e analítica de um estudo deste tipo, resultou ainda da reflexão proposta: a necessidade de aprofundar o tópico explorado e de estudar outros temas com ele relacionados, de modo a redimensionar a abordagem do papel do léxico na construção do texto, colocando-o progressivamente a um nível mais global, que possa incorporar os múltiplos processos inerentes à tessitura do discurso.


 

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[1] Esta tabela é uma adaptação do gráfico proposto por Diez Orzas (1999). Em detrimento de um levantamento mais pormenorizado dos traços definidores da meronímia, optou-se por valorizar as características que maior relevância assumem no domínio textual.

[2] Por conhecimento genérico e partilhado entende-se a existência de informação semântica que não depende do referente considerado como uma entidade individual, mas descreve o tipo ou conceito no qual ele deve ser inscrito (Kleiber, 2001).

[3] Além deste ponto de vista, seguido por Kleiber, Schnedecker e Ducrot, há uma outra teoria sobre a anáfora associativa, subscrita por Charolles, Berrendonner, Apothéloz, Reichler-‑Béguelin e Dubois, que defende que a explicitação dessa relação deve ser procurada no contexto. Independentemente da direção seguida por cada uma destas teorias, considera-se que são propostas complementares no tratamento da anáfora associativa.

[4] De acordo com Koch e Marcuschi (1998), a expressão que funciona como âncora ativa no léxico mental representações nucleares, tornando acessíveis relações semânticas e conceptuais com um potencial inferencial que possibilita a evocação do contexto relevante.

[5] Este exemplo pode ainda ser equacionado no quadro da tipologia de anáforas associativas proposta por Kleiber (2001). Este autor define a relação de meronímia de uma forma estrita, situando-a ao nível da primeira subclasse de anáforas.

anáfora associativa

traços típicos

merônimo

exemplo

meronímica

Um X é parte de Y Þ SN

Dependência ontológica de X

componente

pedal­‑bicicleta

locativa

Num Y, há um X Þ SN

X e Y são lugares concretos ou abstratos

lugar

Moscovo­‑Rússia

funcional

Um/O Y tem um Y Þ SN

X exerce uma função/papel em relação a Y

membro

rei-corte

actancial

X verbo N / N verbo X Þ

SV/SN predicativo ou processual

Dependência do esquema predicativo

ação/fase

liquidação do empréstimo-

amortização

Este quadro mostra, no entanto, que a sua classificação permite, no âmbito da concepção mais alargada que este estudo adota, relacionar, em termos de maior ou menor proximidade em relação ao merônimo típico, o conjunto de merônimos considerados por Winston et al., o que aponta para uma especificação do papel da meronímia ao nível da determinação referencial anafórica.

[6] Este exemplo foi extraído de Júdice (2003). A necessidade de recorrer a outra fonte além do CETEMPúblico deve-se à pertinência que se considera ter a análise de um excerto mais extenso que os anteriormente citados e a abordagem da função anafórica a um nível mais nitidamente transfrástico.

[7] É evidente que a análise proposta está incompleta, porque há uma série de vetores que concorrem para o estabelecimento da progressão textual que não foram considerados. Isso deve-se ao fato de este trabalho ter como objeto estrito a relação de meronímia e as suas principais manifestações textuais.