Os Campos Lexicais do Vocabulário
do
Livro de Cozinha da Infanta D. Maria

Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB/UCSAL/UFBA)

 

Os campos lexicais do vocabulário do Livro de Cozinha da Infanta D.  Maria,  futura tese de doutorado, tem como objetivo fazer um estudo lexicológico através do levantamento das lexias encontradas no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, buscando-se os campos lexicais que possam absorver essas lexias.

O interesse pelo estudo do vocabulário quinhentista relativo à cozinha, surgiu primeiramente da curiosidade despertada ao se entrar em contato com o primeiro livro manuscrito de cozinha portuguesa conhecido até o momento. Trata-se do Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles, erradamente designado por Trattato di Cucina Spagnuolo, conhecido como O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, cuja edição crítica mais completa foi publicada em Coimbra, em 1967, aos cuidados de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut.

A partir de O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (ms. I- E- 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles), através da edição crítica de Giacinto Manuppella, procura-se fazer um estudo lexicológico, em uma perspectiva diacrônica estrutural, enfocando-se os campos lexicais. Após a organização e o levantamento das lexias a serem trabalhadas, faz-se a análise das mesmas. O objetivo desse trabalho é apresentar uma estruturação diacrônica do léxico de cozinha existente no texto de base, organizando essas lexias em seus respectivos campos lexicais, mostrando assim que é possível se fazer também um estudo funcional do léxico de uma língua, através da teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu. Com base nessa teoria, as lexias foram organizadas em macrocampos (alimentos preparados, ações, utensílios, ingredientes, unidades de peso e medida e qualificadores), subdividindo-se cada macrocampo em microcampos. Vale ressaltar que a estrutura do    macrocampo

das lexias ainda se encontra em fase de definição. Após esse levantamento, que soma um total de 400 lexias, as mesmas serão reorganizadas em seus respectivos microcampos.

A metodologia utilizada está sendo a seguinte:

1.     Em cada campo lexical apresentar-se-á a significação dos exemplos, sempre a partir do texto das edições selecionadas para documentação do corpus;

2.     Para fazer-se o levantamento dos campos lexicais, partir-se-á, primeiramente, do fichamento das lexias nas sessenta e uma receitas do Livro de Cozinha;

3.     Seguir-se-á a consulta a alguns dicionários sincrônicos de língua portuguesa, estendendo-se a consulta aos dicionários etimológicos;

4.     As lexias serão separadas por campos lexicais;

5.     O corpus será dividido em macro-campos: utensílios, pesos e medidas, ingredientes, alimentos preparados, ações, qualificadores;

6.     Cada um desses macro-campos dividir-se-á em micro-campos;

7.     Na organização das entradas lexicais, registrar-se-ão as lexias na grafia moderna, mantendo-se, entretanto, nos exemplos a grafia correspondente ao período do texto de amostragem.

Incluir-se-á, ao conceito das lexias, as respectivas etimologias e século em que foram utilizadas, quando encontrados.

Falar da alimentação de um povo,  é também falar da sua história. Os hábitos alimentares revelam as condições de vida de uma família, de uma localidade, de uma nação. A necessidade diária do ser humano de alimentar seu corpo, fez com que o mesmo fizesse do momento da alimentação um momento festivo e de comemorações. E, as lexias utilizadas para realizar esses rituais variam de povo para povo, ou de época para época. Um livro caseiro de receitas, é sempre a compilação de cópias de receitas que agradaram e foram passadas de uma geração à outra. Nunca se terá a certeza da época em que primeiro se executou tal receita, pelo menos com base nesse tipo de livro caseiro. A importância do livro em questão é justamente saber que no século XVI aquelas receitas existiram, ainda que não se saiba desde quando.

O vocabulário de cozinha é algo específico e que diz muito sobre a educação, cultura e modo de viver de um povo. O interesse dos povos pela culinária, é algo quemuito existe. Livros de receitas das mais variadas civilizações preenchem as livrarias e são utilizados nos mais variados lares. Estudar a cultura de um povo através da sua culinária, não é tão comum como os livros de receitas, mas existem bons historiadores que o fazem. A proposta aqui não é nem uma coisa, nem outra. O livro de receitas analisado existe, bastaria apenas utilizá-lo no preparo das mais variadas receitas existentes. Pretende-se, aqui, fazer um levantamento específico dos campos lexicais existentes na tese de Doutorado em Letras, contribuindo assim para o acervo lexical português através do estudo de um vocabulário específico, no caso, o vocabulário de cozinha.

O léxico de cozinha documentado nos textos selecionado será trabalhado sob o ponto de vista lexemático, buscando-se os significados lexicais no sistema lingüístico, podendo esses significados serem unitários ou plurais.

Fundamentada na teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu faz-se a classificação dos campos lexicais existentes no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. De início, retomam-se os campos lexicais estudados em Três Campos Lexicais do Vocabulário do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria[1]: os utensílios, os condimentos e as unidades de peso e medida. Nessa retomada o campo dos condimentos entra no macrocampo dos ingredientes. O Quadro 1 oferece uma idéia da organização dos macrocampos estruturados na tese.

CAMPO LEXICAL

EXEMPLOS

Total de lexias

ALIMENTOS PREPARADOS biscoutos, bolo, carmelo, morcela, pilouro, ...

32

AÇÕES cobrjr, coar, clarificar, assar, alimpar, ajuntar, afogar, abafar...

155

UTENSÍLIOS tacho, prato, alfinete, sertã, algujdar, tauoleyro, fogareiro, tauoa ...

41

INGREDIENTES acuquar, arroz, farinha, galinha, laranja, leite, noz, porco, trigo...

70

UNIDADES DE PESO/ MEDIDA arratel, duzia, omza, arroba, canada, palmo ...

32

QUALIFICADORES

atochado, brando, bom, iguais, crua, dereytas, fermosa, folgadas ...

70

   

400

Quadro 1 – Macrocampos lexicais do Livro de cozinha

 

Dessa forma, são estruturados os macrocampos das lexias encontradas. Nem todos os macrocampos lexicais encontram-se estruturados nos seus respectivos microcampos, apesar de haver algumas possibilidades para essa estruturação. Partindo desse princípio, mostraremos aqui algumas dessas lexias encontradas, com seus conceitos e alguns exemplos extraídos  do texto de base, sem que se faça a estruturação dessas lexias em seus respectivos microcampos.

 

EXEMPLOS:

ALIMENTOS PREPARADOS:

Aletrja[2] Massa de farinha com ovos em fios delgados (espécie de macarronete) própria para se comer cozida ou guisada.

...e deitem tudo ally  por huu)a albarada de bico

e) voltas como aletrja . E depois... (r. XXXII, p.60, L.9).

Desfeito[3] Iguaria feita de bacalhau, galinha, carneiro etc desfiados previamente e acrescido de outros condimentos.

(nome da receitaReceita do desfeito da galinha”, r. XIX, p.34, L.1)

 

AÇÕES:

Abafar[4], v. Cobrir para evitar a evaporação, para conservar o calor.

... E  como fore)  

asy cozidas tire)nas e) hu)u sesto

ou e) huu)a jueira e abafemnas

hu)u panos q) este) sempre que)tes... (r. XLVI, p. 16, L. 16)

 

Candilar[5]- Ação de cobrir o alimento com açúcar cande, ou seja, cristalizado em calda.

... E amde se)pre cuberta da cõserua que

nã seja grosa  q)  candille ne)  delgada

q) e)cruem... (r. XLI, p.90, L. 59-60)

 

UTENSÍLIOS:

Agulha[6], s.f. Instrumento de cozer, ordinariamente de aço, pontiaguda em uma extremidade, arredondada e furada pela outra por onde passa o fio com que se cose.

...a galinha alardada despois despetada toman

huãs talhadas de toucinho compridas em huã

agulha quer de pao quer de ferro estanhado

e esta agulha he aberta qua por syma e e)taõ

metem as talhadas do toucinho nagulha e emtaõ

cozem...  (r. XXII,  p.40, L. 4/ 5/ 6).

 

Escudela[7] s.f. Espécie de tigela. Vasilha grande ou média, pouco funda, de madeira, usada para servir alimentos.

...E depois de tiradas deitalas-

haõ e) huu)a escudela dagoa frya... (r. XXXIV, p.66, L.7).

 

INGREDIENTES:

Adubo[8], s.m. Ingredientes usados para enriquecer o sabor dos alimentos.

... e) huu)a tigella de

ffoguo cõ seu adubo/ . crauo /. pime)ta /... (r. V, p.12, L.9).

 

Perdiz[9], s.f. Gênero de aves galiformes, família das fasianídeas, tribo das perdináceas, com tamanho aproximado de um pombo e que constitui excelente caça.

tomarão huu)a perdiz mal asada e fa-

laão e) pedacos... (r. V, p.12, L.2).

 

UNIDADES DE PESO/MEDIDA:

Escudela, s.f. A porção contida em uma escudela.[10]

Pera huu)a duzia de gemas dovoos

tomaraõ huu)a escudella de acuquar

e deitalloão e) huu) tacho/ ... (r. XXX, p.56, L.3).

 

Pouco/a (um(a) ______ de), loc. prep. Uma porção mínima de.

... tomarão a perdiz  e huu)a pouqua de cebola

picada.... (r. V, p.12, L.5).

 

[Real][11], s. m. A porção que se pode adquirir com o valor expresso relativo à moeda de ouro, prata ou cobre, assim chamada por nela se achar cunhado o real escudo das armas portuguesas.

... e deitemlhe cantidade

de dous rr(ei)s de manteiga cozida e com

a manteiga as ponham no forno... (r. XXXIX, p. 76, L. 21)

 

QUALIFICADORES:

Asynha[12], adv. Com brevidade, depressa.

...pelemnos asynha e como fore)

tirados a limpo de todo deitalosão em

quatro ou cimquo aguoas...(r. XLII, p. 92, L. 14)

 

Formoso/a[13] , adj. De bela aparência, bonito.

... E ffalasão e) quartos

e aparalasham que) milhor souber

oitauadas pera fiquare) mais fermosas... (r. XLI, p. 86, L. 6)

Através do levantamento lexical das lexias relativas à culinária portuguesa quinhentista, espera-se com o presente estudo trazer alguma contribuição, ainda que diminuta, para o estudo do acervo lexical português. A análise do vocabulário relativo à alimentação busca, ao fazer o estudo diacrônico de formas usadas nos anos quinhentos, de algum modo, trazer uma contribuição para aqueles que se dedicam ao estudo dos textos.

 

Referências bibliográficas

ARNAUT, Salvador Dias. A Arte de comer em Portugal na Idade Média; introdução a O Livro de cozinha da Infanta D. Maria de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda”, 1986.

CASCUDO Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil; cardápio indígena, dieta africana, ementa portuguesa (pesquisa e notas).  São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1983.

FERRO, João Pedro. Arqueologia dos hábitos alimentares.  Lisboa: Dom Quixote.  Introd. de A. H. de Oliveira Marques, 1996.

GAMA, Nilton Vasco da, TELLES, Célia Marques. Uma Contribuição ao estudo do “Tratado de cozinha portuguesa” (mss. I-E-33 da B.N.N.)Salvador: DLR/IL/ UFBA.  Datilografado, 1973.

GOMES FILHO, Antônio. Um Tratado da cozinha portuguesa do século XV. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.

MANUPELLA, Giacinto. Livro de cozinha da Infanta D. Maria; códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da MoedaPrólogo, leitura, notas aos textos, glossário e índices de Giacinto Manupella, 1986.

MARQUES, A. H. Oliveira. 1987. A Sociedade Medieval Portuguesa; aspectos da vida  cotidiana. Lisboa: Sá da Costa, 1987.


 

[1] Cf. Celina Márcia de Souza Abbade. Três campos lexicais no vocabulário do Livro de cozinha da Infanta D. Maria. Dissertação de Mestrado orientada pela Profª. Drª. Célia Marques Telles no Programa de Pós-Graduação  em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1998.
[2] Do ar. al- ‘itriya. Séc. XVI.
[3] A forma dicionarizada é o fem. desfeita.
[4]Deriv. de bafohálito, ar exalado dos pulmões’. Séc. XV.
[5] Deriv. de cande e este do ár. vulgar qándi (ar. qandî), de quandaçúcar’. Séc. XIV.
[6] Do lat. *ACUCULA, diminutivo de acusagulha’, da raíz ak penetrar, ser agudo’. Séc. XV. O R.E.W. documenta ACUCULA[6].

[7] Do lat. SCU(TE(LLA ‘tacinha, pratinho, pires’. Em lat. SCU(TE(LLA era diminutivo de SCU(T(R)A, mas todos os romances apresentam uma base *SCUTELLA, por influência de SCUTUM escudo’.

[8] Deverbal de adubar (de origem germânica: a forma do fr. deriva-se do franc. dubban mantendo o mesmo significado; no it. passou a addobareenfeitar’ e o cast. adobar tomou, como o port., a significação de ‘temperar’, ‘condimentar’. Com base no franc. dubban, é possível admitir-se a existência de uma forma latina *ADDUBARE.   Séc. XIII.
[9] Do grego perdix, pelo latim perdice. Séc. XIII.
[10] Cf. a definição de escudela à n. 131, f. 75.
[11] Os plurais de real são reais ou réis.  A propósito do real, vejam-se: Fr. Domingos VIEIRA.  Grande diccionario portuguez ou Thesouro da lingua portugueza...,  v.5, s.v. real, p. 100, col.b - 101, col. B; Antonio de Moraes SILVA.  Diccionario da lingua portugueza... , v.2, s.v. real, p. 557.  
[12] Do lat. agina, lat. vulgar aginapressa, rapidez’. Séc. XIV.
[13] Do lat. formosus. Séc. XIV.