Leituras do cotidiano
marcas lingüístico-discursivas
de manchetes, charges e propagandas

Lucia Helena Lopes de Matos (UERJ)

Nós, professores de Língua Portuguesa, encontramos uma séria resistência de nossos alunos que não reconhecem, muitas vezes com razão, a validade de, durante toda sua vida escolar, serem avaliados em uma disciplina que de certa forma dominam, por trazerem internalizado o sistema que possibilita o uso pragmático para suas interações mais imediatas.

Fazê-los entender que, além deste registro, há outras possibilidades de expressão cujo domínio vai facilitar a sua prática interlocutiva, é uma função a que nos devemos propor a fim de abrir os canais do conhecimento e inseri-los num mundo mais crítico e participativo. Precisamos esclarecer que através da língua e das estratégias de argumentação vamos convencer e impor nossos pontos de vista, e sofrer, também, por parte do Outro um processo de persuasão nada inocente, marcado pela ideologia e pela subjetividade, num jogo de ocultamentos e revelações, determinado pela intencionalidade dos falantes.

Partindo, então, dessa necessidade, surgida em sala de aula, interessei-me pela pesquisa dos mecanismos que levariam os alunos de Língua Portuguesa a uma competência de leitura e de produção textual mais eficiente, caso fossem trabalhados certos conceitos estruturadores da linguagem, tecidos a partir de uma rede de significados abonados pela cultura da formação social na qual todos nós estamos inseridos.

Tomei como ponto de partida dois preceitos teóricos, a metáfora conceitual e a intertextualidade que são regidos pelo mesmo princípio: dois textos num único contexto, permeados por uma polifonia que merece ser desvelada por leitores mais atentos.

Fazia-se, ainda, necessário mostrar-lhes que todos os textos que produzimos, orais ou escritos, apresentam um conjunto de características relativamente estáveis, que vão configurar os diferentes gêneros textuais organizados através de três aspectos básicos coexistentes: o tema, o modo composicional (a estrutura) e o estilo (usos específicos da língua) (cf. BAKHTIN, Mikhail.). É a situação interativa que vai condicionar a escolha do gênero mais apropriado para uma dada ocasião, de acordo com os objetivos pretendidos: quem fala, com quem fala sobre o que fala e com que finalidade.

A compreensão sobre a dicotomia diversidade / unidade do universo textual vai ser bastante relevante para as habilidades aqui pretendidas, já que quanto mais expostos aos diferentes tipos, gêneros e modos discursivos, mais o aluno estará ambientado com a variedade disponível e, assim, mais qualificado a fazer previsões, traçar objetivos de leitura e estabelecer hipóteses adequadas a cada caso. Estes textos passarão a ser catalogados em sua memória com base em modelos pré-determinados, numa prova de que tudo o que se diz ou se lê já foi dito e lido, o anterior se constitui no atual em novas condições de produção, numa nova representação semântica.

À medida que o aluno se apropria desse universo, poderá perceber o caráter dialógico entre os muitos textos da cultura que se instalam no interior de cada texto determinando o seu sentido, ficando, portanto, patente a primazia do intertextual sobre o textual.

Não podemos deixar de apontar, ainda, que os textos e vozes que cruzam as formações discursivas são engendrados por uma linguagem marcada pelo sistema metafórico que estrutura nosso pensamento. A metáfora com enfoque conceitual perde o caráter ornamental tradicional e se baseia num processo de compreensão socializado, apoiado nas experiências estruturais, ontológicas e espaciais, que se organizam em domínios mentais, acrescido de um outro processo atrelado a aspectos individuais e/ou subjetivos.

A intertextualidade que permeia os discursos apresenta um sistema de decodificação semelhante ao da metáfora, isto é, quando na aparência o referente é X, na verdade está em foco o referente Y, levando o destinatário inexperiente a uma ilusão referencial. Seria necessário, para o sucesso do ato ilocucional, que o destinatário percebesse as reais intenções do enunciador, decodificando, assim, os dois planos do enunciado: o plano da superfície, onde fica evidente o referente X, e o plano que apresenta uma estrutura mais profunda de onde emana o intertexto e de onde brotam os significados que estão atrelados àquela base metafórica deixando vir à tona as ideologias que carregam do contexto social.

Como nossos alunos, normalmente, precisam ser seduzidos para a leitura, escolhi, para o rito de iniciação desse processo de compreensão textual, três gêneros que se caracterizam por serem condensados, por serem altamente persuasivos e por transitarem em nosso cotidiano: a manchete jornalística, a propaganda e a charge. Esses discursos são capazes de mascaramentos que vão exigir um leitor capaz de ler os pressupostos e fazer as inferências necessárias para uma interpretação mais competente.

O tema escolhido para o trabalho se manifestou em diferentes modos discursivos na mídia, em passado recente, mais exatamente no verão de 2002 na cidade do Rio de Janeiro.

Os cariocas, sofremos, mais uma vez, as conseqüências do descaso governamental. Tivemos a prova de que não importa o lado em que se está dessa cidade partida, todos juntos pagaremos o ônus por vivermos em meio a tantos contrastes. O mosquito Aedes aegypti, durante nove meses, sinalizou a gestação do estrago que iria fazer (ALERTA PARA DENGUE SURGIU HÁ 9 MESES, Jornal do Brasil, 16/02/10, p.14) sem escolher sexo, cor ou classe social (MOSQUITO DE GRÃ-FINO - DENGUE ENTRE FAMOSOS ACENDE ALERTA PARA EPIDEMIA, Veja, 4/04/01, p 46).

Podemos perceber nos jornais que o uso de metáforas ontológicas, transformando nossas experiências em objetos e substâncias ou personificando as mais diversas atividades, foi fartamente empregada, já que agora o mosquito personificado é o inimigo a quem se vai declarar guerra (UM EXÉRCITO CONTRA O DENGUE - GOVERNO FEDERAL ESPERA 500 MIL PESSOAS NO DIA DE MOBILIZAÇÃO CONTRA A EPIDEMIA, O Globo, 04/03/02, p.9; GUERRA AO DENGUE TERÁ 1300 MILITARES, O Globo, 23/02/02, p.16; AUMENTA O CERCO À EPIDEMIA, Jornal do Brasil, 06/03/02, p.16. Também a presença da metáfora orientacional, que se refere às orientações espacias [ a dengue cresce], e da metáfora estrutural,que são fruto do sistema conceitual estruturante de nossas atividades [ a dengue é uma bomba explosiva] ), mostram que as manchetes usaram a imagem da guerra apenas refletindo o que é um hábito em nossas ações.

As agências de publicidade não podiam perder esse filão e derramaram, na mídia, propagandas usando a epidemia como gancho, o que provocou alguns protestos pelo oportunismo incômodo. A matéria cujo título é EPIDEMIA DE PUBLICIDADE - mosquito da dengue vira garoto propaganda de produtos e serviços (JB-17/03/02) desloca o significado da palavra epidemia, fazendo um jogo de linguagem que enseja a reflexão crítica do leitor para o funcionamento do mercado econômico manipulador de interesses, capaz de usar até tragédias humanas. Mesmo assim, não podemos fugir ao inevitável e as propagandas invadiram os nossos olhos:

* AMIL NO COMBATE AO DENGUE ( O Globo,24/02/02).

O plano de saúde usa da homofonia entre a sua marca - Amil - e a expressão corrente na linguagem informal - a mil - para expressar rapidez, envolvimento em um determinado processo. O plano de saúde oferece no anúncio seus próprios centros de referência com uma equipe de profissionais para atender aos seus clientes. Isso, provavelmente, seria uma tentativa para diminuir os seus custos com a grande procura dos seus clientes à rede credenciada, já que nessa época de epidemia os planos de saúde tiveram os seus lucros diminuídos, gerando protestos, como se pode comprovar pela manchete do Globo de 24/02/02, p.1 : DENGUE FAZ PLANOS DE SAÚDE PRESSIONAREM POR AUMENTO. O leitor só consegue perceber a rede de implícitos, se domina uma rede de informações cujas vozes vão dando significado ao não-dito.

*MAIS FÁCIL DE TER, SÓ DENGUE. (Anúncio do carro Audi A3 2002). Aqui a intenção é veicular o duplo sentido do verbo ter (possuir / ser contagiado) em uma peça de extremo mau-gosto, mas eficiente lingüisticamente.

Na esfera governamental, ninguém queria assumir a responsabilidade pelo descaso com a prevenção da epidemia e um empurrava a responsabilidade para o outro, enquanto a população ficava à mercê dos poderosos no combate à doença que se alastrava rapidamente. Os chargistas não podiam perder a oportunidade de satirizar a situação e Chico, em O Globo, apresentou, em dois dias consecutivos (21,22/02/02), desenhos em que uma lupa era usada para ver o mosquito transmissor da dengue em cuja cauda havia o nome de Serra, no primeiro, e no segundo, além deste, havia também mosquitos com o nome de César (Maia) e Garotinho, respectivamente, prefeito da cidade e governador do Estado do Rio de Janeiro.

                

O verão passou e DENGUE DÁ TRÉGUA POR FALTA DE CHUVA (Jornal do Brasil,12/03/02,p.15),mas a indignação não deve se calar:

(O Globo, 09/03/02)

O CARIOCA SENTE NA PELE (Veja,, 30/02/02, p.10, metáfora mapeada nas sensações que nosso corpo conhece) e até o símbolo maior de nossa cidade, sob a pena do chargista, se integra à luta contra o mosquito:


 (O Globo, 09/03/02)

Essa seleção é apenas um recorte de um material muito mais amplo que vai ser dosado e adequado, dependendo do grau de leitura que o leitor em questão suporta. Por este estar sempre em formação, à medida que for agregando e ampliando estágios superiores de conhecimento, o professor poderá ampliar suas abordagens, integrando os conceitos de polifonia e interdiscursividade, que apontam para marcas ideológicas, responsáveis pelo jogo manipulatório da linguagem.

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997

BARROS, Diana Luz Pessoa de & FIORIN, José Luiz ( orgs.). Dialogismo, Polifonia, intertextualidade : em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. (Ensaios de Cultura, 7).

GURGEL, Maria Cristina Lírio e VEREZA, Solange Coelho. “O dragão da inflação contra o Santo Guerreiro: um estudo da Metáfora Conceitual”. In: Intercâmbio. LaEL- PUC/SP, vol.V,PP.167-78,1996.

LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e (org.). Metáforas do cotidiano. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 1998.