MARCADOR NA CONVERSA INFORMAL:
UMA ABORDAGEM SÓCIO-COGNITIVA

Sandra Pereira Bernardo (UERJ e PUC-Rio)

Em Bernardo (2002), investiguei as manifestações dos espaços mentais Foco e Ponto de Vista em uma conversa informal. Entre as formas sinalizadoras desses espaços, encontra-se o marcador , porque, além de chamar a atenção dos interlocutores para introdução de novo conteúdo, contextualizam a fala de outro self nas unidades de idéia que introduzem discursos direto e indireto livre na conversação.

A conversa analisada foi gravada durante um jantar, em 1988, com a participação de cinco pessoas: Wilton (27 anos; carioca), Bebete (31 anos; piauiense), Luana (7 anos; carioca), Isalmir (30 anos; carioca) e Célia (23 anos; carioca), responsável pela gravação. Os falantes são referenciados pelas iniciais de seus nomes.

A depreensão dos deslocamentos de Foco durante a produção de um discurso é um dos aspectos mais difíceis da contextualização, pois o caminho percorrido por esse primitivo parece envolver uma gama de fatores pouco compreendidos. Pode ser caracterizado como: (i) o espaço mais ativo; (ii) aquele que deixa algumas pistas consistentes para sua identificação nas sentenças, como marcadores, por exemplo; e (iii) o espaço no qual a sentença de um discurso se torna comunicativamente funcional (Dinsmore, 1991: 125). Tais fatores, de natureza pragmática e gramatical, auxiliam na identificação do Foco.

O grau de ativação de um espaço depende da recentidade e da freqüência com que é usado durante o processamento do discurso mais recente ou de outros processos cognitivos. Os espaços tornam-se mais ativos à medida que são criados e/ou referenciados durante a distribuição das informações de input. Espera-se que um espaço, representante da situação de fala corrente, mantenha sempre certo grau de ativação. Funções pragmáticas desempenhadas por papéis em metonímias podem ser consideradas relações associativas que propiciam a passagem da ativação de um conceito, identificado em determinado estágio de processamento como um provável candidato à projeção, a outro; por isso, consubstanciam processos de ativação semelhantes aos envolvidos na contextualização.

As pistas gramaticais que orientam a identificação do Foco podem ser expressas através de morfemas flexionais e estruturas sintáticas que restrinjam explicitamente o conjunto de espaços dentro dos quais a sentença pode ser projetada. Expressões como era uma vez são exemplos de pistas que guiam a construção/identificação do Foco. Assim, a oração O homem de ferro pode dar a volta ao mundo em menos de um minuto será contextualizada dentro de um espaço de ficção, pois só nesse espaço um homem de ferro pode ser representado. Fora de um contexto ficcional, a sentença não seria completamente interpretável, tampouco em um espaço de crença encaixado em um espaço de realidade.

Logo, durante a produção e compreensão de um discurso, certas regiões de redes associadas são ativadas, constituindo representações de conceitos recentemente acessados ou estritamente relacionados a esses conceitos. Essas regiões formam focos de atenção que distinguem referentes prováveis de improváveis.

Os espaços-Foco relacionam-se estreitamente às nuanças de PV. Conceituado como centro da conceptualização ou conscientização de um self a quem um enunciado é atribuído, o PV é um primitivo teórico discursivo que pode ser composto por uma gama de dimensões dêiticas, visíveis ou não lingüisticamente. Essas dimensões podem apresentar uma natureza pessoal (eu vs. você vs. outras pessoas/outros objetos), temporal, espacial, realis/irrealis, distância emocional ou empatia, distância social, psicológica ou cognitiva. Pode ainda ser composto por uma única dimensão: temporal ou espacial, ou um subconjunto de dimensões mais abstratas.

O espaço da realidade é representado no espaço-Base. Espaço original ou inicial em qualquer organização hierárquica de espaços, a Base representa um enquadre temporal que contém uma conceptualização inicial do PV a partir do qual eventos ou estados serão relacionados, avaliados, medidos e/ou construídos. Esse PV inicial serve como centro de referência do qual relações tipicamente dêiticas são calculadas. A Base ocupa sempre a posição mais alta na rede de espaços de uma determinada configuração; dessa forma, é, por definição, a realidade do falante.

Na conversa em questão a Base comum compreende todo conhecimento de mundo dos falantes, suas crenças, opiniões, inferências, bem como seus diários pessoais. Nesse espaço-Base, estão representadas as contrapartes de I, W e C (participantes ativos dos excertos analisados aqui), ligadas pelo princípio de acesso aos espaços a serem criados no decorrer da interpretação do discurso. Os falantes I e C compartilham parte de seus diários pessoais, já que são irmãos.

Além dos espaços mentais Foco, PV e Base, também figura entre os primitivos discursivos o espaço-Evento, aquele em que a informação codificada pelo verbo é estruturada durante o processamento discursivo. Tais primitivos, noções basilares para a teoria dos espaços mentais, são distribuídos herarquicamente em uma configuração de espaços à medida que o discurso é interpretado, pois correspondem a noções que operam no nível da construção cognitiva. Não representam qualquer configuração da realidade ou do mundo, todavia relacionam a linguagem ao mundo real, moldando processos lógicos e inferenciais. Nesse sentido, são independentes da linguagem e do mundo real, correspondem a intuições ou a noções informais sobre esquemas discursivos.

Em seguida, apresento primeiro excerto da conversa em estudo em que figura a forma .

((risos)) C= 1 ah:.. uma vez... uma vez ela foi lá em casa... 2 : ela sentou.. né//... 3 a: minh-... a minha mãe falou assim... 4 “ah/ tem:... tem cuscuz aí Lucinha”... 5 ela disse assim... 6 “tá legal”... 7 pegou o cuscuz... 8 botou dentro do prato... 9 tô: tô vendo o cuscuz dentro do prato assim... e um copo de café... né// 10 ela falou assim... 11 “ah: é assim que eu gosto”... 12 pegou o copo... 13 jogou dentro do prato... 14 amassou com:.. o cuscuz e nheke nheke nheke nheke... [W= 15 pu:tis-grilo] 16 só levan:- [W= 17 café com cuscuz// só levantou a cabeça... 18 quando acabou de comer... 19 “agora eu vou trabalhar::/” ((risos))

Na passagem acima, observa-se a abertura de um domínio de relato cuja construção é guiada a partir da expressão uma vez, que ativa um modelo cognitivo idealizado (MCI) de narrativa, configurado com seu próprio centro dêitico-temporal. A falante C constitui um self, num papel de experienciadora, já que presenciou os fatos reportados; logo, um PV forte disponível como Base. Cronologicamente, o domínio do relato é anterior ao da conversa, da realidade dos falantes na época da interação; etapas marcadas lingüisticamente pelo marcador , interpretado aqui como um índice de mudança de Foco.

Devido ao seu papel de narradora, a contraparte da falante C no domínio da narrativa encontra-se coindexada ao Ponto de Vista forte de experienciadora. Os liames estabelecidos entre as entidades de ambos os domínios permitem o acesso aos referentes retomados em cada unidade de idéia (UI), através do princípio de acesso, tornando o discurso coerente.

Nas unidades 2, 3, 5, 7 e 9, o marcador assinala novas etapas do relato; logo, deslocamentos de Foco, porque guiam a abertura de espaços mentais que contextualizam a entrada de novos participantes da narrativa ou novas ações executadas por esses no domínio do relato. Tais personagens carregam um PV hierarquicamente ligado ao PV forte de experienciadora da falante C.

A informação contida nos discursos diretos, marcada na conversa pela mudança de entonação da falante C, que imita a forma como as pessoas citadas teriam falado, assinala um deslocamento da Base e cria uma barreira forte, impedindo o acesso referencial à realidade do falante. Por isso, durante a elocução do discurso direto, a Base é deslocada para o aqui e agora do self, ou seja, o tempo em que a fala foi proferida. Essa operação é possível porque a oração está codificada no presente, um tempo verbal não marcado formalmente por uma desinência modo-temporal.

Sanders & Redeker (1996), ao estudar o fenômeno da perspectiva sob o arcabouço da teoria dos espaços mentais, a conceituaram como

a introdução de ponto de vista subjetivo que restringe a validade da informação apresentada a um sujeito particular (uma pessoa) no discurso. Um segmento de discurso é perspectivizado quando seu contexto relevante de interpretação é limitado por uma pessoa, encaixado no espaço que contém a realidade do narrador (p. 293).

O resultado da influência que o narrador exerce em relação à forma e ao conteúdo da informação do espaço encaixado dependerá da acessibilidade a este espaço. Em discursos diretos, o narrador influirá minimamente sobre a informação, porque envolve um deslocamento de todo o centro dêitico - tempo, espaço, pessoa -, para conceptualização da fala ou pensamento de outro sujeito, o que permite usos modalizados da linguagem, pois o falante citado pode expressar hipóteses, aproximações, ou contrafactualidades (op. cit.: 296).

Como os encaixes de discurso direto na conversa não são considerados reproduções, mas demonstrações, reconstruções (Clark, 1996:174ss.), quando cita a fala de uma pessoa, o narrador torna-se menos responsável pelas afirmações. Ao mesmo tempo, aumenta a vivacidade do evento reportado, mostrando, não relatando, o que aconteceu. Essa relativa distância entre a fala reportada e o narrador é marcada pelo deslocamento do Ponto de Vista e do Foco para o espaço em que a dicção é conceptualizada.

Os trechos de discurso direto ao longo da conversa conferem dramaticidade aos comentários dos falantes sobre as pessoas citadas, já que poderiam ser suprimidos sem prejuízo para a compreensão da narrativa. Embora consubstanciem falas pronunciadas por outras pessoas, o conteúdo proferido é marcado pela interpretação do experienciador, um aspecto retórico-pragmático descrito adequadamente pelo Ponto de Vista forte, porque confere ao falante/narrador uma situação de vantagem no relato dos fatos.

Em razão dessa função de demonstrar evidências para as posições apresentadas ao longo da conversa através de falas reportadas, autores como Chiavegatto (1999) consideram a existência de um processo de mesclagem de vozes nessa estratégia argumentativa. Contudo, tal estratégia parece ser mais característica dos discursos indireto livre e indireto, nos quais há um contínuo comprometimento do narrador em relação ao conteúdo reportado.

No relato acima, dada a dramatização de caráter humorístico com que as situações são apresentadas, as falas reportadas são demonstradas através de uma mudança de entonação. Porém, em outros pontos da conversa, há passagens em que a mudança de entonação não ocorre, daí a tendência de conceituar esses casos como um tipo de discurso indireto livre, conforme o trecho apresentado em seguida.

I= 673 quer dizer... os meios de comunicação... é a... é a dominação... 674 é onde eu digo... 675 a dominação começa aonde// 676 no meios de comunicação... 677 eles fala assim... 678 bom... greve é coisa de agitador... de comunista... de não sei o quê... 679 o pessoal guarda isso... 680 falou em greve eles têm a resposta... que nem computador... 681 você dá dados... né/ dá dados... [W= 682 greve é sinônimo disso aí] 683 na hora que u- a... pessoa desprovida de raciocínio ela fala assim... greve... 684 automaticamente o cérebro joga a resposta... W= 685 é... I= 686 ah isso é baderna...

Nas unidades 677 e 683, o marcador assinala mudança de Foco e de Ponto de Vista, porque, além de chamar a atenção dos interlocutores para introdução de novo conteúdo, tais unidades contextualizam a fala de outro self. Entretanto, há uma pequena diferença entre essas unidades e as que figuram no primeiro trecho analisado, já que a ausência de modulação na voz do falante e de mudança de tempo verbal da oração contextualizadora da fala reportada atenuam o drama, ou seja, o caráter demonstrativo do discurso está mais ligado à perspectiva do narrador/falante.

Segundo Sanders & Redeker (1996), no discurso indireto livre, o centro referencial permanece com o narrador/falante, como no discurso indireto; contudo, a fala reportada é representada literalmente, como no modo direto (p. 301). Semelhante ao modo direto, o discurso indireto livre favorece um acesso aos referentes das falas reportadas diretamente em um espaço encaixado (op. cit.: 302), ou seja, também se observa um Ponto de Vista experienciador no espaço de conceptualização da fala/do pensamento reportada/o.

Todavia o ponto de referência para tempo e pessoa continua com o narrador (op. cit.: 303), o que confere uma perspectiva menos forte à fala demonstrada, no sentido de que o narrador pode interferir mais no conteúdo e na forma da fala reportada. A referida manutenção do ponto de referência pode ser observada, na passagem acima, devido à ausência de mudança no tempo verbal, já que o presente é usado todo o tempo, e à natureza emblemática da situação reportada, pois trata-se de uma ilustração para comprovar o modo como as pessoas são manipuladas, no entender do falante I, pelos meios de comunicação. Além disso, não ocorre mudança na entonação.

Ao contrário do fragmento analisado acima, na passagem exposta em seguida, percebe-se o deslocamento do ponto de referência de tempo e de pessoa para espaço encaixado.

I= /.../ na Grécia... na: a Grécia Antiga... né// a Grécia Antiga... 697 naquela época não tinha televisão... 698 não tinha rádio... 699 não tinha nada... 700 então o orador ia pra lá pra tribuna e... 701 juntava aquele monte de... né/ a polis... não/ 702 os cidadões... [W= 703 é os cidadões não...] os cidadão da Polis tão lá... 704 o cara chegava ... 705 “então é isso é isso é isso é isso... o Alexandre tá lá na Macedônia... 706 ele... vai invadir isso aqui... não sei o quê... e pá...pá...pá... tere...te...te... porogudum”...certo// 707 quer dizer... ele usava um idioma- a linguagem para uma não dominação... né//

Em 705, verifica-se, além da mudança no ritmo da fala, marcada pelas aspas, uma mudança no tempo verbal em relação à unidade anterior, que introduz a fala reportada. Embora o Ponto de Vista PASSADO, conferido pelo emprego do imperfeito, seja mantido, as supostas falas reportadas são codificadas no presente e no futuro. A expressão certo//, encontra-se em outro contorno entonacional, no domínio da conversa, já com a voz neutra do falante I.

É interessante analisar a diferença entre os dois casos de no início das unidades 701 e 704 e a segunda ocorrência desse marcador na UI 704. A presença do no início das unidades marca nova etapa, logo mudança de Foco, e de participante, deslocando o Ponto de Vista, mesmo no caso da UI 701, em que o falante hesita em selecionar o personagem a quem atribuirá a fala, ao passo que a segunda ocorrência de na UI 704 apenas introduz a fala do suposto personagem, reforçando o deslocamento de Ponto de Vista, nesse caso utilizado com mesma função de uma forma como assim. Logo, pode-se conceber que o do início das unidades está mais ligado à abertura de um foco de atenção no discurso, enquanto o segundo introduz também um PV.

Com base na análise das passagens acima, foi possível, portanto, postular a função de introdutor de espaços mentais Foco para o marcador . Devido ao seu caráter sinalizador, atua na dêixis conversacional, fornecendo pistas para abertura de espaços mentais que contextualizarão uma nova fatia discursiva, de modo que os participantes da interação acompanham o encadeamento do discurso. Esse caráter está presente em você vê... a linguagem também... /.../ ela é influenciada... (UI 643), em que, acompanhado da expressão introdutora você vê, o chama a atenção do interlocutor para a informação a ser veiculada.

O fato de figurar em unidades que anunciam novos referentes cujas falas serão reportadas através de discursos direto e indireto livre reforça seu caráter dêitico, o qual vem sendo estudado no estágio atual da pesquisa, aliado a outros fatores estruturais que atuam nesse fenômeno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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