Modalização na progressão textual
os referenciais anafóricos do léxico

Regina Célia Cabral Angelim (UFRJ)

Um texto “postula um universo de referência não contraditório, em que os seres ou objetos referidos permanecem iguais a si mesmos até o final, sendo apenas crescente a informação que é fornecida ao receptor sobre eles”, conforme Milton José Pinto (1994:p.44), a propósito do texto coerente. Em outras palavras, salvo as situações especiais de alguns discursos lúdicos e discursos psicóticos, espera-se que o texto progrida dentro de uma coerência de idéias.

Para uma progressão coerente concorrem diversos fatores, dentre eles a seleção lexical. Assim é que, em

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), reuniram-se ontem de manhã no Palácio do Planalto. O encontro foi cercado de sigilo e ocorreu no horário em que a agenda ...” (“Lula e João Paulo. In Panorama Político, O GLOBO, 23/7/003 , p. 06),

a escolha do substantivo encontro serve a duas finalidades: inicia acréscimo de informação e reitera a reunião entre os dois políticos. Pode ser considerada um caso de referência por nominalização, assunto que passa a ser detalhado.

A escolha adequada das palavras na progressão textual pode caracterizar-se também como elemento de modalização, por expressar às vezes o ponto de vista do enunciador. Analisaremos o emprego de substantivos, adjetivos e advérbios na progressão de textos midiáticos opinativos, em especial os que, além de funcionarem como sintagmas referenciais, operacionalizam a estratégia da modalização.

No que diz respeito à colocação do nome em relação ao componente retomado, a referenciação pode dar-se por anáfora (quando o nome reporta-se ao que já foi explicitado) ou por catáfora (quando a referência é feita ao que vai ser ainda exposto). No corpus, constituído de textos da imprensa midiática opinativa, há casos de referência anafórica, mais freqüente, e um exemplo (n. 02) em que a referência é catafórica.

Exemplos analisados:

- com substantivos

(1) A aprovação de uma greve por juízes, procuradores e promotores é motivo de reflexão sobre o equilíbrio entre os poderes da República e a situação das finanças públicas. (...).

A necessidade da reforma da previdência ... privilegiado.

A força que move a necessidade da reforma é a efetiva e aritmética impossibilidade de o Estado brasileiro continuar a arcar com um déficit cuja tendência é o crescimento rumo ao infinito. Esse rombo, hoje 45 do PIB, tragará o próprio funcionalismo.... (“Legitimidade”. O GLOBO, 23/7/2002, seção Opinião, p. 06).

Comentários:

No 3º. parágrafo, rombo refere-se a déficit com tendência ao infinito. Além de reiterar o que se disse, o emprego do termo “rombo” acresce uma opinião do enunciador (modalização): de que o desfalque é de grandes proporções. Salienta-se a proporção da falta e sugere-se má administração. Trata-se, portanto, de exemplo de coesão recorrencial, porque progride a idéia do “déficit”, com maiores detalhes. E a colocação de substantivo em relação à idéia referida faz-se anaforicamente.

(2) O Brasil governado pelo PT começa a assistir à reedição de uma queda-de-braço que pontilhou boa parte dos oito anos da era Fernando Henrique. De um lado, os monetaristas, defensores de uma lógica econômica sem a presença do estado e com rígido equilíbrio das contas públicas, dentro dos preceitos do Consenso de Washington; de outro, os desenvolvimentistas, seguidores da doutrina que prega uma política governamental de promoção do desenvolvimento econômico, em especial da industrialização, com investimentos públicos e foco no tão sonhado crescimento. (“Um duelo que se repete”. In. O GLOBO, 11/8/2003, p. 03).

Comentário: A expressão queda-de-braço nominaliza e modaliza a questão da divergência entre os monetaristas e os desenvolvimentistas. Por que modaliza também? Porque atribui à divergência características do jogo mui comum no Brasil, em que os participantes - em geral, concorrentes de peso - medem forças, um obrigando o outro a dobrar-se. Tem-se aqui uma metáfora, pela associação da divergência entre pesos pesados a “queda-de-braço”. A construção é catafórica, pois o emprego metafórico do substantivo “queda-de-braço” antecipa o termo referido.

Seguem-se exemplos em que o adjetivo ou o advérbio, ou expressões equivalentes, é que desempenha a função de referencial anafórico:

(3) O governo Lula completou seis meses quase que em céu de brigadeiro. (...) Com isso reverteram-se índices preocupantes como o da inflação, e os agentes econômicos voltaram a trabalhar com segurança.

Logo em seguida terminou a “lua-de-mel”. Enfrentando desafios como o da reforma da previdência, o governo deparou-se com o choque da realidade. ...

Nada disso chega a ser surpreendente. Mas, de repente, a nitidez das linhas desapareceu; e, com uma rapidez inesperada, já há quem diga que o governo está perdendo o controle da situação.

...

... Por não entender essa psicologia “das ruas” é que, 40 anos atrás, o governo João Goulart selou o próprio destino.

A situação de hoje é muito diferente, mas essas regras básicas de funcionamento da sociedade continuam em vigor. Seria uma pena ... (“Armadilhas”. O GLOBO, 03/8/2003, seção Opinião, p. 06).

Comentário: A expressão adjetiva de hoje retoma a descrição feita no primeiro parágrafo, enfatiza a comparação entre os governos de Jango e de Lula, e acresce o destaque da diferença entre as duas situações. A modalização só é entendida, se se considera a oposição que se faz entre a expressão adjetiva “de hoje’ e a situação de 40 anos atrás, dentro do contexto pragmático (o conhecimento da história do Brasil).

(4) A proposta de reforma tributária tem sido submetida a pressões e contrapressões previsíveis. Pois não é sempre que se legisla sobre as regras básicas de como taxar e redistribuir parte da renda da sociedade...

Um exemplo evidente é o do imposto sobre grandes fortunas. Sonho dos socialistas ingleses do século XIX - quando não existia imposto sobre consumo, lembre-se - o gravame passou a constar do ideário do pensamento da esquerda no mundo, e conseguiu ser incluído na Constituição de 1988. No ano seguinte, o então senador Fernando Henrique Cardoso apresentou um projeto de regulamentação. Ficou por aí...

Mas agora espera o governo concretizar de vez o sonho. ... (“Ilusão tributária”. In O GLOBO, 03/8/2003, seção Opinião, p. 06).

Comentário: Com o advérbio agora o autor retoma o que disse no primeiro parágrafo e acresce o destaque da oposição que faz entre o governo anterior - que não realizou a reforma tributária - e o governo atual, que caminha para essa realização. O advérbio agora, logo após o conectivo de oposição, destaca a diferença entre as duas situações, entre os dois momentos: o de 1989, com Fernando Henrique senador, e o de 2003, positivo para o autor do texto, porque se concretiza o sonho. Tal como a expressão adjetiva do exemplo 03, só se entende a idéia de atributo, pela oposição das expressões adverbiais. Gonçalves Dias, no poema “Canção do exílio”, valoriza o Brasil, em detrimento de Portugal, sem fazer uso do adjetivo; apenas pela oposição “ positivo” vs. “aqui negativo” (“Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá./ As aves que aqui gorjeiam/ não gorjeiam como .”), conforme estudo de Merquior (1965).

O trabalho pretende ser uma amostra do que se pode fazer em termos de leitura em profundidade, chamando a atenção do aluno para a modalização e os recursos empregados pelo enunciador, à medida que desenvolve o texto. Muitos exemplos poderiam ser aqui arrolados, especialmente para o caso do substantivo e a referência opinativa. Essa amostragem, pretende contribuir para o desenvolvimento da análise de textos, com a operacionalização das teorias de coesão e de modalização.

Bibliografia

FAVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. S. Paulo: Ática, 1991.

PINTO, Mílton José. As marcas lingüísticas da enunciação: esboço de uma gramática enunciativa do português. Rio de Janeiro: Numen, 1994.

MERQUIOR, José Guilherme. “O poema do lá”. In Razão do poema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965; p. 41-50.

KOCH, Ingedore V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989.

------ & TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. S. Paulo: Contexto, 1990.