O ISOMORFISMO
ENTRE AS MODALIDADES DA LÍNGUA

José Mario Botelho (UERJ e FEUDUC)

INTRODUÇÃO

Até pouco tempo atrás, muito se falava sobre as diferenças de tais modalidades. Pouco se falou e se fala até os dias de hoje, porém, sobre as semelhanças entre elas.

Não há dúvidas de que as pessoas não escrevem do mesmo modo que falam. Certamente, há um número considerável de fatores responsáveis por tais diferenças nos tipos de linguagem de que dispõem os usuários de uma dada língua. Um desses fatores certamente é o fato de se a linguagem é emitida pela boca e recebida pelos ouvidos ou se é produzida com a mão e recebida pelos olhos. Além dessas diferenças, que parecem ter muito mais a ver com a distinção de como a linguagem é produzida e recebida, há muitas outras que se poderiam observar a partir do contexto de uso da linguagem, o sentido do que se diz ou se escreve, do objetivo do falante ou do escritor ao produzir seu texto e de outros fatores, que direta ou indiretamente influenciam a forma de produção da linguagem.

Comparando vinte textos escritos com os seus referentes textos orais (a saber: cada aluno gravou uma narrativa de um fato marcante em sua vida, e alguns dias depois, compôs um texto escrito sobre o mesmo fato) de alunos de 1.o Grau (da quinta para a oitava série) e de 2.o Grau (da primeira para a terceira série) do Colégio Pedro II - Unidade Humaitá II, verifiquei que a complexidade das estruturas frasais dos textos orais não era sentida por mim no momento de sua execução, momento em que participava como ouvinte, e como tal, obedecia às máximas de Grice. Porém, o era mais tarde quando transcrevia as gravações.

Verifiquei também que havia complexidade nos textos escritos e que tal complexidade se assemelhava àquela dos textos orais. Entretanto, notei que os textos (orais e escritos) dos alunos da 5ª. Série do 1º. Grau eram mais próximos da oralidade, por apresentarem mais características dessa modalidade da língua como um todo, e que os textos (também orais e escritos) dos alunos da 3ª. Série do 2º. Grau se aproximavam mais da escrita, também por apresentarem mais características da modalidade escrita.

Destarte o objetivo do presente trabalho é tentar mostrar a influência que a oralidade e a escrita exercem uma sobre a outra, o que faz com que os produtos oral e escrito sejam parcialmente isomórficos.

O CARÁTER ISOMORFICO
DAS MODALIDADES ORAL E ESCRITA

Em outro trabalho anterior, pude comprovar a grande polêmica existente em torno do assunto sobre linguagem, principalmente em relação à questão de serem a linguagem escrita e linguagem oral diferentes ou idênticas. Considerando as características das diferentes modalidades da língua (escrita e oral) propostas por Chafe (1987), concluí que a linguagem oral e a linguagem escrita são semelhantes.

No presente trabalho, a partir de observações de Brown & Yule (1983), Kato (1987), Marcuschi (2001), entre tantos outros, e levando em consideração aquelas observações de Chafe (1987), corroboro a conclusão a que tinha chegado anteriormente: a linguagem oral e a linguagem escrita apresentam cada uma as suas particularidades, mas não deixam de ser semelhantes, mormente porque são modalidades discursivas de um mesmo sistema lingüístico.

Neste trabalho, assumo, portanto, que o ser humano normal nasce com a capacidade de adquirir e processar todas as operações possíveis de uma dada língua e que a linguagem escrita é parcialmente isomórfica com a oral, se se admitir que, além de ambas se utilizarem do mesmo sistema de possibilidades lingüísticas (que é a língua), diversos tipos de práticas sociais de produção textual situam-se ao longo de um contínuo tipológico, que apresenta a escrita formal e a fala espontânea em cada uma de suas extremidades, como observaram Marcuschi (1995 e 2001) e Koch & Österreicher (1990), entre outros.

Não é difícil perceber que, embora a linguagem escrita tenha características particulares, o que a distingue da linguagem oral, há muita semelhança entre elas. As diferenças entre tais modalidades da língua, contudo, não se dão numa relação dicotômica de dois pólos que se opõem; o contínuo tipológico entre essas práticas sociais é uma realidade.

Assim, há mais semelhanças do que diferenças entre uma conferência e um artigo acadêmico, ou entre uma bilhete ou carta familiar e uma conversa, já que ambos se situam numa mesma posição ao longo de um contínuo. Tal fato me faz crer numa certa isomorfia entre elas.

Esta isomorfia é mais acentuada em textos (orais e escritos) de indivíduos que mantêm um contato constante com a escrita e a oralidade, isto é, quanto maior for a prática do escrever e do falar, maior será a semelhança entre a escrita e a fala. Daí, a crença na influência de uma sobre a outra. Mas, na fase inicial, é a escrita que recebe influência da fala, dando início a um ciclo de simulações contínuas. Poder-se-ia traçar o seguinte esquema, proposto por Kato:

Figura 1.
Direção de simulações entre fala e escrita (cf. Kato, 1987, p. 11)

A Fala1 é a fala desenvolvida pela criança antes do contato com a escrita − é a fala pré-letramento −; a Escrita1 é a que a criança desenvolve inicialmente, na qual procura representar a fala naturalmente; a Escrita2 é a que se distingue e se distancia da fala, devido a convenções gramaticais; a Fala2 é a que procura representar a escrita naturalmente. É o resultado do letramento − é a fala pós-letramento.

Para Brown (1981) há dois tipos distintos de fala: a fala pré-letramento e a fala pós-letramento. Aquela, anterior ao letramento, exerce influência sobre a escrita, dando início ao que venho chamando de isomorfia parcial; esta, posterior ao letramento, sofre influência da escrita, o que faz o falante executá-la conforme o que sabe da escrita. E é neste estágio da linguagem que se pode verificar a isomorfia de que falo.

Tornando menos abstratas as diferenças entre a fala pré-letramento e a fala pós-letramento, a descrição dessas variantes acaba por concretizar o caráter isomórfico das modalidades oral e escrita da língua.

Em Kato, depreende-se que Brown concebe a fala pós-letramento como uma simulação da escrita e, por conseguinte, uma fala-padrão. Mas a mim, me parece que não é exatamente isso o que acontece, ou melhor, não ocorre apenas uma simulação da escrita, mas um ciclo de simulações contínuas que poderia ser assim esquematizado:

Figura 2.
Direção de simulações entre fala e escrita com ciclo de simulações contínuas

Assim como descreve Kato, a Escrita2 se distingue e se distancia da fala, porém essa “fala” tem que ser entendida como a fala pré-letramento, ou seja, aquela em que não há influência da escrita, uma vez que ainda não se deu o contato direto com essa modalidade.

Convém lembrar, ainda, que letramento nesse caso deve ser entendido como o manuseio individual do sistema escrito e não um conjunto de práticas sociais.

É essa Escrita2 que a criança procura simular na fala, constituindo a Fala2, que por sua vez também influencia a Escrita2, que continua influenciando a Fala2. Apesar desse ciclo contínuo, não creio que resulte dele uma fala-padrão, como afirma Kato, corroborando Brown, nem que se dê uma tecnologização da fala, como o quer Ong.

O fato de o falante aculturado ou de um certo grau de letramento (agora, como conjunto de práticas sociais) apresentar uma fala de bom nível, que se assemelha à escrita, por apresentar como característica principal a obediência às normas gramaticais e, conseqüentemente, a correção gramatical, não quer dizer que inexoravelmente tenha perdido a sua espontaneidade do falar. Logo, não ocorre exatamente uma fala-padrão, mas uma fala que se assemelha à escrita naturalmente; e como a escrita se caracteriza por apresentar-se de acordo com as normas de uso padrão, a fala que a simula introjeta naturalmente tais normas e aparenta ser padrão como a escrita.

O que não se pode negar é que após o contato contínuo com a escrita o indivíduo falante passa a apresentar uma fala diferente, característica de um falante letrado, em cujas produções textuais as influências que as modalidades exercem uma sobre a outra podem ser sentidas.

INFLUÊNCIAS MÚTUAS
DE UMA MODALIDADE SOBRE A OUTRA

Não nego que cada uma destas modalidades apresenta certas características, que as particularizam e que, de certa forma, nos fazem distinguir uma da outra.

Durante a reprodução dos textos orais e escritos senti haver algo mais. Após a análise dos dados, o produto mostrou-se revelador: características de uma são encontradas na outra ao par de suas características particulares. E dependendo do estágio de contato com a oralidade e a escritura em que se encontra o produtor (falante-escritor), tais influências são ainda mais sentidas.

Da proposta de Kato, que concebe a fala pós-letramento como uma simulação da escrita e, por conseguinte, uma fala-padrão, mas que para mim ocorre um ciclo de simulações contínuas, a direção de simulações entre a fala e a escrita poderia ser assim esquematizado:

Figura 3.
Direção de simulações entre fala e escrita com ciclo de simulações contínuas

INFLUÊNCIAS DA LINGUAGEM ORAL
SOBRE A PRÁTICA DA ESCRITA

Considerando a Figura 3 acima, a Fala1 é aquela da qual o falante iletrado (aqui como aquele que ainda não faz uso da escrita, aquele que não tem instrução) tem um certo domínio; é a fala pré-letramento. Nos primeiros momentos de desenvolvimento da escrita, essa fala exerce total influência sobre a prática da escrita, que, para o aprendiz, inconsciente da sua função social e importância nas práticas discursivas sociais, é tão-simplesmente uma forma de representação da linguagem oral. As suas particularidades e normas são inibidas pelas particularidades e normas da fala, que insurgem como a referência da linguagem como um todo. Esse estágio pode ser representado da seguinte forma:

Figura 4. Influências da fala sobre a escrita

Assim, é muito comum encontrarmos marcas da oralidade em produções escritas. Podem-se constatar tais marcas, se considerarmos algumas características específicas do texto falado como, por exemplo, as que assinalou Koch (1997): questão da referência, repetição, marcadores discursivos, justaposição de enunciados, discurso citado, segmentação gráfica, grafia correspondente à palavra ou seqüência de palavras e autocorreção.

Questão da referência

Numa interação face-a-face, situação conversacional em que os participantes na maioria das vezes são coniventes em relação a todos os elementos contextuais, é muito comum a recuperação do referente na própria situação discursiva. A referência pode, pois, facilmente ser recuperado com um simples olhar em sua direção. Pode o indivíduo falante apontá-lo ou até mesmo gesticular de maneira que o interlocutor possa saber de que ou de quem se fala. Há casos, inclusive, em que o conhecimento é tão compartilhado entre os participantes da interação face-a-face, que basta um simples riso ou um silêncio, acompanhado de uma expressão facial ou corporal.

Tudo aconteceu no ano passado quando eu viagei com meus tios C. e V. e primas R., P. e S. para Santa Catarina, chegando de viagem já no final de Janeiro eu tinha que voltar pra casa mais resolvi passar mais alguns dias com eles, em Varginha (M-G), por tanto na data de meu aniversário 03/02 eu estava , e ... (sic)

Apartir (sic) do segundo dia ele começou dizer as novidades, esse é um dos pontos positivos dele, ele conta quase todas as suas alegrias pra gente, ele gosta de nos participar de tudo de bom e ruim que acontece em sua vida.

Tais marcas da oralidade poderiam ser evitadas com o uso de outros elementos referenciais mais comuns de serem encontrados na modalidade escrita, como por exemplo, elipse, sinonímia de formas, dêiticos que mantêm marcas mais vinculadas com o nome substituto, e repetição conveniente.

Repetições

A repetição é muito freqüente nas produções orais, o que não é comum nas produções escritas, em que ocorrem outros artifícios de coesão referencial, como a sinonímia, a elipse, a paráfrase.

A ocorrência descontrolada de termos repetidos em textos escritos é considerada um elemento empobrecedor, e deve, portanto, ser evitada.

(...) um professor que não quer da aula?! Bom, eu não quero dizer que o professor é chato mas depois da segunda aula... ele começou a entrar na sala com postura de Professor, bom é o certo mas nós queriamos (sic) mesmo era um professor que ensinasse fazer arroz.

Tentei remar contra as ondas, furando-as para chegar à arrebentação (...) e mergulhar sem nada para “pegar” ondas de peito. (...) Quando cheguei à arrebentação vi que as ondas estavam grandes demais e não daria para descê-las de peito. Tinha duas opções nesse momento ou sairia na cestinha do helicóptero dos bombeiros, o que seria humilhante, com todos me olhando, ou me aventurava nas ondas e tentava sair.

Marcadores discursivos

Os marcadores discursivos se caracterizam como tal por introduzirem períodos ou parágrafos que se relacionam com outro que lhes precede normalmente. São, pois, elementos que mantêm o relacionamento das idéias expressas nos períodos e parágrafos distintos, garantindo a coesão entre eles.

Os marcadores discursivos da fala são: “aí”, “daí”, “aí então”, “e então”, “e aí”, “mas aí”, “e” e “mas” (formas homônimas das conjunções coordenativas: “e” e “mas”), os quais aparecem como marcas da oralidade em textos escritos.

(...) eu pedi pra irmos na casa da M., ela disse que não pois a M. estava de castigo, começou a inventar que (...)

(...) e tive que lavar só com o braço esquerdo, mas aí eu já sabia a melhor posição com o braço (segurar o dedo deixando-o dobrado ou totalmente reto).

Na escrita, que também tem seus marcadores discursivos, é comum o uso de conectivos (conjunções ou locuções conjuntivas) ou pronome relativo entre as estruturas oracionais, formando períodos compostos, normalmente curtos e bem estruturados.

O uso de marcadores discursivos tipicamente da escrita nos textos analisados é considerável. “e”, “mas” e “então” são os que mais ocorrem:

que acontece em sua vida. Mas quando chega o dia de entregar o Relatório...

Então chegou o grande dia, meu aniversário, fui para o colégio, passei o dia normalmente e voltei para casa.

E ela me respondeu que não e então eu tornei a falar: (...)

Justaposição de enunciados,
sem qualquer marca de conexão explícita

Este fenômeno estrutural, em que as orações ou frases são expressas como se formassem uma única estrutura é muito comum na oralidade e principalmente na fala de crianças bem pequenas. Na escrita, contudo, não é nada comum, principalmente nas produções escritas de usuários letrados.

Quando ocorrem, se caracterizam pela falta de conectores ou de transição entre as idéias e, normalmente, sem qualquer sinal de pontuação.

Tudo aconteceu no ano passado quando eu viagei (sic) com meus tios C. e V. e primas R., P. e S. para Santa Catarina, chegando de viagem já no final de Janeiro eu tinha que voltar pra casa mais resolvi passar mais alguns dias lá com eles, em Varginha (M-G), por tanto na data de meu aniversário 03/02 eu estava lá, e ...

Me calei mas aquilo não ia ficar barato quando ela se retirou eu peguei uma escadinha de 2 degraus e subi (consegui!), o ruim é que as goiabas ficavam muito no alto.

Há outros tipos de justaposição com uma marca de conexão explícita, que apresentam problemas ou com a própria marca de conexão (uso desnecessário ou inconveniente) ou com o sinal de pontuação. Com o uso indevido do sinal de pontuação foram encontrados muitos casos, como esses:

depois de uns trinta minutos, meu primo chega com um garoto, que eu nunca tinha visto, em toda minha vida, logo quando ele chegou, ele olhou para minha “cara”, então eu percebi, o que ele queria.

Quando tinha dez anos tive uma doença chamada púrpura trombocitopênica, é um problema no qual as plaquetas abaixam, e o sangue não coagula; tomei um remédio a base de cortizona para ver se melhorava, essa medicação me fez engordar e não resolveu.

Discurso citado

Na oralidade, as estruturas de discurso direto, normalmente sem o uso de verbos “dicendi”, em que a fala da personagem citada é apresentada na íntegra, é muito freqüente. Na escrita, normalmente as falas das personagens citadas aparecem em forma de discurso indireto. Poucos foram os exemplos encontrados nos textos escritos analisados:

- P.! Não está esquecendo de nada não? Não vai me desejar os Parabéns?

e ela muito “animante”: (...)

- Vou pegar goiaba!

- Você não está com nada, é uma dor comum, vai passar logo.

Segmentação gráfica

A segmentação gráfica que é feita a partir de vocábulos fonológicos (segundo Câmara Jr.), que é muito comum em textos escritos daqueles que iniciam a prática da escrita, é raríssima nos textos dos meus informantes.

Apartir do segundo dia ele começou dizer as novidades, (...)

Apartir dai, minhas pernas e mãos ficaram tremulas (...)

Apenas esses dois casos com a segmentação gráfica de “a partir” foram encontrados. De caso oposto − “picante”, segundo Koch − encontrei quatro ocorrências:

(...) por tanto na data de meu aniversário 03/02 eu estava lá, e ..”

(...) um amigo super legal e conselhero (sic), que me aconselhou em várias (...)

Agora, a minha academia, virou um curso de inglês, uma coisa super monótona, (...)

(...) mas estavamos super atrasadas pois eramos para (...) (sic)

Grafia correspondente à palavra
ou seqüência de palavras e autocorreção

Além daqueles poucos casos de segmentação gráfica já citados, não há nenhum exemplo que possa ilustrar o fenômeno da grafia correspondente à palavra ou seqüência de palavras tal como pronunciadas oralmente, que é comum na escrita de iniciantes, conforme descreve Koch, mas que inexiste na escrita de letrados mais proficientes. O fenômeno da autocorreção feitas da mesma forma como se faz na fala também não foi encontrado.

Todavia, falhas ortográficas e de acentuação por falta de domínio das regras gramaticais são muito incidente nos textos dos meus informantes:

Além da grafia “entre tanto” (em lugar de “entretanto”), observada anteriormente, também ocorreram problemas com a grafia de outras palavras: “mais” (em lugar de “mas”), “aguentava”, “tá”, “chôcho”, “surpreza” , “aguentei”, “espectativa”, “se quer” e “veijo”; “viagei”, “Janeiro”, “estavamos”, “viéssem”, “super mal”, “aliáz”, “sismou”, “não entra (imperativo)” e “hiper sem graça”, “voce”, “queriamos”, “apartir”, “titulo”, “a (=há) dois anos” , “aguentar”, “esta bom”, “quer da”), “me dar mau”, “tranquilamente”, “cordená-la” e “super monótono”, “encontravamos”, “estavamos”, “simplismente”, “quis”, “à um ano”, “pos”, “00:00h”, “pa” (em lugar de “para”), “porquê” (como conjunção), “na qual” (como sujeito), “dela” (em lugar de “de ela”) e muitos outros.

INFLUÊNCIAS DA LINGUAGEM ESCRITA
SOBRE A PRÁTICA DA ORALIDADE

Como vimos anteriormente é a escrita que, inicialmente, recebe influencia da oralidade (O aluno, nesta fase, tenta representar a fala em seus escritos e, mais tarde, ao descobrir as características particulares de cada modalidade, reivindica reformas, por achar que se devia escrever como se fala.). Essa Escrita1 constitui um tipo de “simulação” da fala, uma vez que o usuário pouco letrado, desprezando as características e normas que particularizam a escrita, principalmente porque não tem o conhecimento delas, submete-a às características e normas da fala.

Mais tarde, é-lhe imposta uma escrita convencionada, socializada, que difere substancialmente daquela utilizada até então. Esta influencia a sua fala, que procura agora reproduzir a escrita.

Figura 5. Influência da escrita sobre a fala.

Essa Fala2, que procura simular a Escrita2 é a fala pós-letramento. Nesse momento, em que se dá o desenvolvimento de uma escrita “autônoma” (segundo a nomenclatura e concepção de Ong), que difere substancialmente da Escrita1 (que, para o aprendiz, constitui uma representação da sua linguagem oral), é a fala que procura simular a escrita, como se pode perceber no esquema da Figura 5 acima.

Logo, as marcas da influência da escrita sobre a oralidade podem ser identificadas. A identificação de tais marcas torna-se mais fácil, se considerarmos algumas características específicas do texto escrito como, por exemplo, o uso de conectivos subordinativos e coordenativos (diferentes de “e” e “mas”) na elaboração de frases mais complexas, o uso de pronomes relativos, períodos mais longos, limitados por estruturas do pensamento lógico, estruturas com verbo na voz passiva, nominalizações e elipse do sujeito.

Uso de conectivos subordinativos e coordenativos,
na elaboração de frases mais complexas

Em textos escritos, exige-se mais clareza, uma vez que o interlocutor não se encontra presente no momento da produção textual e, portanto, não participa dessa produção. As estruturas sintáticas mais bem elaboradas tornam a produção textual mais clara. Daí, ser muito o uso de conjunções ou locuções subordinativas e conjunções ou locuções coordenativas, diferentes de “e” e “mas”, ligando orações, que constituem frases mais complexas.

Essa característica da linguagem escrita também pôde ser encontrada nos textos orais dos meus informantes:

eu falo cu-elis aDOru passá as férias lá (+) i essi dia fui muitu legal-porquê:: (++)/ foi assim/eu nem conhecia direitu/ elis (++) foram/ ficaram meus amigus mesmu né ntãu foi issu muitu legal lá em Varginha,

eu fiquei muitu abalada quandu elas falaram qui: a academia ia sê vendida (+)

Uso de pronome relativo

As frases com o uso de pronome relativo de forma conveniente não são comuns na produção de textos orais, em que o tempo de planejamento das frases é praticamente nulo, já que processo de produção e produção ocorrem simultaneamente. Como as frases com pronome relativo apresentam uma certa complexidade, o usuário as evita inconscientemente, e quando se habilita a usá-las, normalmente cometem falhas.

Embora seja mais provável a ocorrência de estruturas lingüísticas com pronome relativo nas produções escritas, muitos foram os exemplos encontrados no material pesquisado.

“(++) lá eu mi sintu bem tem us meus amigus i us meus primus qui eu gostu muitu,”

“É: primêru eu tava na casa dus meus avós que tinham viajadu: pra Portugal (++)”

 

Períodos mais longos, limitados pelo pensamento lógico

Uma das mais importantes características da escrita, sem dúvida nenhuma, é a estruturação frasal com períodos compostos um pouco mais extensos do que os que ocorrem na oralidade.

Segundo Chafe (1985 e 1987), na fala, as estruturas frasais são marcadas por uma unidade de entonação, que é constituída de um número bem limitado de palavras (em torno de sete). Essas unidades de entonação são simples, de contorno entonacional coerente, limitadas por pausa e normalmente fragmentadas.

A escrita, ao contrário, apresenta normalmente estruturas mais longas, constituídas de em torno de onze palavras, marcadas por elementos de coesão do tipo conectivo e limitadas pelo pensamento lógico. Algumas dessas estruturas foram encontradas nos textos orais dos informantes:

-eu aí eu abandonei a prancha i fui caí di peitu, (++) aí(+) aí eu furei uma-duas-três-cheguei lá na arrebentaçãu--eu vi qui tava grandi mesmu, nãu ia dá pra-eu pegá onda di peitu, (++)

quandu-a genti viu a-genti achô u Máximu/um professor qui entra na sala dizendu quê:: eli preferia nãu dá aula e sim nsinar comu-nós (incomprensível) si faz arroz, a genti achô u Máximu-porque nenhum professô entrava na sala dizendu qui nãu queria dá aula, (++)

Pode-se perceber nos exemplos acima, a incidência flagrante do uso do marcador discursivo “aí” e das pausas, apesar de as estruturas frasais terem sido limitadas pelo pensamento lógico e não simplesmente pela entonação.

Estruturas com verbo na voz passiva

A influência exercida pela escrita sobre a oralidade no que se refere à utilização de estruturas com o verbo na voz passiva não é tão marcante, pois poucos foram os exemplos encontrados no material pesquisado. Convém ressaltar que o maior número de estruturas passivas encontrado advém das produções orais dos informantes do Ensino Fundamental.

eu não por que eu nunca tinha sidu: (++) infaixada antis (...)

ê ê poderia sê operada naqueli momentu (++)

porqui-minha sala tava toda apagada, (++)

i:: eu quebrei a perna direita (+) fui levada pro-hospital (++)

depois qui eli morreu i foi enterradu u qu-eu mais sofria (...)

Além desses cinco exemplos, não foi encontrado mais nenhum caso.

Nominalizações

A utilização de estruturas com nominalização é, até certo ponto, comum nas produções escritas da língua. Na oralidade, porém, a ocorrência de nominalizações, que exigem do usuário um certo conhecimento não só dos processos de formação de palavras, como também da aplicabilidade do léxico e de ortografia, é muito rara.

Nos textos orais dos informantes, foram encontrados alguns exemplos:

QUÊ a mi/ elis tinham pedidu pra genti podê:: ficá dand’uma oLHAda na casa delis (...)

lembru di tudu qui (++) eu passei lá di todas as apresentaçõis qu’eu fiz

(...) mudei meu comportamentu cum muitas pessoas (...)

Além desses três exemplos, que foram os únicos encontrados nos dez textos orais da primeira fase dos informantes do Ensino Fundamental, relacionei mais dois em textos orais da segunda fase desse mesmo nível e sete em textos da primeira fase e oito em textos da segunda fase dos informantes do Médio. O que me faz crer que o uso de nominalização é uma característica da linguagem escrita de usuários com um grau de letramento mais elevado.

Uso de elipse de termos

Quanto ao uso de elipse de termos, é necessário primeiramente ressaltar que há dois tipos de omissão: aquele que se faz conscientemente ou como um elemento coesivo conveniente ou por estilo, e aquele que se dá por falta de domínio de certas regras (transitividade verbal, coesão textual, clareza, etc.).

Apesar de a ocorrência do sujeito, mormente o de 1ª. pessoa, ter sido muito incidente nas produções orais pesquisadas, a ocorrência de elipse também o foi.

aí depois busquei fiquei u dia todu im casa i ninguém, incontrava cum tod-us meus amigu/ sabi (+)

((riso irônico)) mi-arrumei (+) fui-pra casa di uma amiga minha qui mora lá pertu, aí fiquei lá cu-ela-conversei cum ela-falei (...)

Além desses elementos que caracterizam a modalidade escrita, mas que podem ser encontrados nas produções da modalidade oral, o que representa a influência daquela modalidade sobre esta, também foram observados outros aspectos comum às duas modalidades.

Tais aspectos, como topicalização e orações reduzidas de infinitivo ou de gerúndio, por terem tido uma ocorrência equivalente nas produções orais e escritas analisadas dos dois níveis (fundamental e médio), parecem ser características comuns às duas modalidades da língua.

Ciclo de simulações contínuas

Considerando que, no momento em que a Fala2 procura simular a Escrita2, o grau de letramento do seu usuário já é relativamente alto, torna-se difícil precisar se as marcas da escrita encontradas nas produções orais representam apenas as influência da escrita sobre a prática da oralidade ou se são fruto de influências mútuas que se processam inconscientemente no indivíduo letrado.

Certamente, não se trata de um fenômeno unidirecional de influência que parte da escrita e incide sobre a oralidade. Vimos que marcas da oralidade podem ser encontradas nas produções escritas. Também suscitei, no final desse mesmo item, ser o uso de topicalização e de orações reduzidas de infinitivo e de gerúndio uma característica comum às duas modalidades discursivas, já que tais marcas puderam ser observadas tanto nas produções orais quanto nas produções escritas com a mesma freqüência, e que, por isso mesmo, tais marcas não caracterizam nenhuma delas em particular; são características comuns a ambas as modalidades da língua.

Logo, trata-se de um momento em que o fenômeno de influências se dá nas duas direções, constituindo o que se pode chamar de ciclo de simulações contínuas.

Figura 6. Ciclo de simulações contínuas

A NATUREZA DA LINGUAGEM ORAL

Não se pode negar que a linguagem escrita e a linguagem oral não constituem modalidades estanques; apresentam diferenças devido à condição de produção, mas o processo se dá a partir da língua.

Entretanto, há particularidades de outras ordens que tornam a linguagem oral uma modalidade específica da língua.

Tais particularidades são, de fato, elementos exclusivos da linguagem oral: A gesticulação é um deles.

O falante conta com a gesticulação, além de outros efeitos extralingüísticos ou paralingüísticos, como por exemplo, a expressão facial ou corporal, para poder dispensar o efeito das palavras que são proferidas por ele durante uma interlocução.

A fluidez das idéias expostas também é outra particularidade da oralidade. A velocidade da produção oral se dá em virtude de ser simultânea ao processo de produção em si.

Se bem que a velocidade das expressões de idéias depende de outros fatores, como o grau de letramento, o tema, o grau de intimidade entre os interlocutores, o objetivo do falante e, em conseqüência desses fatores, o grau de responsabilidade do falante com todos os elementos contextuais.

O conhecimento compartilhado dos participantes da interlocução oral também gera uma outra particularidade: a simplicidade sintática, à qual se relacionam várias outras características.

A sintaxe da linguagem oral é tipicamente menos estruturada que a linguagem escrita, por conter muitas “frases” incompletas, apresentar-se freqüentemente com simples seqüências de frases e poucas estruturas subordinadas.

Também constitui uma particularidade da linguagem oral a representação do sujeito. Ocorre principalmente a representação do sujeito de 1ª. pessoa por meio de um pronome pessoal.

Por último, uma outra característica da linguagem oral é a repetição de termos.

A NATUREZA DA LINGUAGEM ESCRITA

Também a escrita apresenta as suas particularidades de outras ordens que a tornam uma outra modalidade da língua.

A particularidade de maior importância da escrita é a correção gramatical, sob a qual estão a objetividade, a clareza e a concisão.

Por ser eminentemente uma forma de comunicação em que emissor e receptor estão distantes e, em muitos casos, desconhecidos um do outro, a objetividade, a clareza e a concisão são essenciais. Na falta de compreensão da informação transmitida, normalmente não tem o emissor outra forma de retificar a mensagem se não esperar pela resposta, que pode demorar muito tempo, para tentar numa tréplica, que pode não mais surtir efeito.

Eis uma outra particularidade da modalidade escrita: o escritor determina o tempo de produção de seu texto. Nisso, pode comparar a sua produção com o que tinha em mente; mudar suas idéias; reorganizar o texto; acrescentar ou eliminar itens, até que o produto final surja.

O fato de ter o escritor a obrigação de redigir um texto de acordo com as normas de uso padrão nos faz enumerar outras particularidades da linguagem escrita.

A produção do texto escrito se dá de forma coordenada, pois requer planejamento: etapas são traçadas pelo escritor, que a todo o momento as checa, fazendo as mudanças necessárias, para atender às exigências diversas (de ordem gramatical e/ou de outras ordens).

Termos da oração (normalmente bimembre) são geralmente substituídos por orações subordinadas, constituindo períodos compostos. No encaixe dessas orações, o uso de conjunções e locuções conjuntivas é uma normalidade. Os períodos complexos normalmente são de bom tamanho na modalidade escrita, sendo os longos bem estruturados.

Complexidade da sintaxe é, portanto, mais uma característica da linguagem escrita.

É possível dizer que um vocabulário de nível mais formal que coloquial caracteriza a linguagem escrita, mas não distinguir três tipos de vocabulário, como o fez Chafe: um que ocorre essencialmente na linguagem escrita; outro, essencialmente na linguagem oral; e outro que ocorre igualmente nas duas modalidades.

Uma outra e última particularidade é a preocupação com a coesão referencial. A sinonímia, a elipse, a paráfrase e a substituição por pro-formas são artifícios comuns de serem observados nos textos escritos.

Assim, são a fala e a escrita dois modos bem diferentes de o usuário representar as suas experiências.

Essas diferenças advindas principalmente dos seus processos de produção, as quais correspondem à diferença entre a escrita e a fala, deixam de ser sentidas, se seus produtos são dispostos num contínuo tipológico, em cujas extremidades se colocam, de um lado, a conversação (como produção prototípica da fala) e, do outro, o artigo acadêmico (como produção prototípica da escrita), como fizeram Chafe e Marcuschi em seus respectivos trabalhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de não ser a linguagem oral a transcrição da linguagem escrita, para se obter um resultado coerente, é preciso considerar a oralidade.

As características, que parecem particularizar cada uma das modalidades e que têm sido entendidas como diferenças entre elas, não as tornam distintas por completo. Algumas dessas características, as quais seria mais conveniente considerar particularidades de cada uma daquelas práticas da língua, podem ser encontradas em produções orais e escritas.

Portanto, não é conveniente comparar a linguagem oral com a linguagem escrita sem considerar os diversos tipos de textos que podem ser produzidos em cada uma delas. Esses textos, que constituem gêneros discursivos, são de vários tipos e de vários graus de referência com as respectivas modalidades.

Certamente, mais semelhanças do que diferenças entre as modalidades discursivas podem ser constatadas, se, em vez de uma comparação dicotômica ou entre as linguagens oral e escrita ou entre aqueles seus gêneros prototípicos, comparássemos os gêneros afins.

Assumo, portanto, que as linguagens oral e escrita são semelhantes e não, diferentes nem iguais, como consideram alguns estudiosos. Cada uma dessas práticas discursivas tem suas particularidades, algumas das quais exclusivas (como por exemplo, gestos, expressões faciais e outras, na oralidade), por conta do processo de produção, mas que não chegam a distingui-las, posto que não são estanques.

Não são iguais, exatamente por terem tais características particulares, o que torna inconsistente a tese de que a escrita é a transição da fala; não são diferentes, simplesmente porque não são estanques, o que contraria a tese de que constituem fenômenos únicos e separados.

Escrita e oralidade são duas modalidades discursivas de um mesmo sistema de possibilidades lingüísticas de que o homem se utiliza para exprimir o seu pensamento e se comunicar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHARA, Evanildo. A Correção idiomática e o conceito de exemplaridade. In: José C. Azeredo (Org.), Língua em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 11-8.

BOTELHO, José Mário. A Influência da Oralidade sobre a Escrita. Monografia Inédita (Curso de Doutorado em Letras - Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.

BROWN, Gillian. Teaching the spoken language. In: Association Internationale de Linguistic Apliquée. Brussel, Proceedings II: Lecture, 1981, p. 166-82.

CHAFE, Wallace; DANIELEWICZ, Jane. Properties of speaking and written language. In: HOROWITZ, Rosalind; SAMUELS, S. Jay (Eds.). Comprehending Oral and Written Language. New York: Academic Press, 1987. p. 83-113.

FÁVERO, Leonor Lopes et al. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.

KATO, Mary A. No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 2ª ed. 1987.

KLEIMAN, Angela B. (Org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

KOCH, Ingedore G.Villaça. Interferência da oralidade na aquisição da escrita. In: Trabalhos em Lingüística Aplicada, Departamento de Lingüística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, 30, Campinas: UNICAMP, 1997(a). p. 31-8.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

OLSON, David R. Cultura Escrita e Oralidade. Tradução de Valter Lellis Siqueira, São Paulo: Ática, 1995. Título original: Literacy and orality, 1991.

ONG, Walter J. Orality and literacy: The technologizing of the word. London: Methuen, 1982.

SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. 7ª ed. São Paulo: Ática, 1989.

------. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

TANNEN, Deborah. The oral/literate continuum in discourse. In: Deborah Tannen (Ed.). Spoken and written language: Exploring.

A. A crônica brasileira. São Paulo: Unesp, 1980. Revista Stylos, n.1.

NEVES, M. S. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas. CANDIDO, A. (org.). A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil Campinas: Unicamp, 1992. p 75-92.