RECURSOS LINGÜÍSTICOS
NAS MALHAS DISCURSIVAS DE VERÍSSIMO

Maria Lilia Simões de Oliveira (PUC-Rio)

Nossos ofícios são bem diversos. Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã desmancha,e vai.

(RUBEM BRAGA)

Comédias para se ler na escola, livro de crônicas de Luís Fernando Veríssimo é ponto de partida para nossa reflexão sobre o uso da língua portuguesa e suas possibilidades.

A acadêmica, escritora e, sobretudo, professora, Ana Maria Machado faz uma lindíssima apresentação da obra de LFV. A credenciada leitora organiza os textos de Veríssimo em feixes temáticos, sem perder de vista o leitor a ser seduzido - jovens, principalmente. A Escola fica, sem dúvida, marcada na memória de quem passou por seus bancos e corredores. Suas rígidas regras disciplinares, o rigor de suas propostas pedagógicas, muitas vezes, têm afastado os jovens do livro, como bem nos ensina a organizadora da antologia. O termo “comédias”, no título do livro, já é bastante sugestivo, pois deixa transparecer um sentido de subversão, de irreverência, haja vista que o riso sempre foi afastado dos momentos tidos como sérios, principalmente na tradicional instituição Escola. A “filosofia educacional”, implícita nos umbrais dessa coletânea, nos ensina que a leitura não pode ser imposta: ela deve ser agradável, sedutora. Para ilustrar essa tese, Ana Maria Machado estabelece analogias com relacionamentos amorosos. Ler é puro jogo de sedução. Flertar com o livro - conquistado/conquistador - é o que recomendam os críticos para que a relação leitor/texto possa ser prazerosa. Se houver compatibilidade, casam-se. Caso contrário, é só seguir adiante em busca da alma gêmea, recomendam os estudiosos. Creio que os jovens “casam” com os textos de LFV e vivem felizes para sempre com eles, pois os adolescentes também gostam de ler histórias bem contadas em que reconheçam as situações do cotidiano, em que se reconheçam com suas dúvidas e angústias.

O cronista, como espião da vida, passa a ser o porta-voz do leitor, que mergulha nesses textos de aparente simplicidade e se deixa levar por um interlocutor ardiloso que nos faz acreditar no “acaso”, estratagema utilizado para camuflar a consciência crítica do momento histórico.

Na crônica Adolescência, situações do cotidiano da maioria dos jovens desfilam diante do leitor: é a pele maltratada por espinhas, ou um irmão mais velho que, para provocar o mais novo, atribui-lhe o epíteto “Cascão”, quando surgem crises de higiene e o banho passa a ser um sacrifício; ou, ainda, o ritual de passagem de um rapazola que deve ser apresentado ao mundo dos prazeres eróticos pela nova empregada da casa, a Vandirene.

As palavras ditas com o propósito de introduzir esta comunicação são importantes na medida em que a crônica vai revelar a exímia competência lingüística do cronista, objetivo maior deste estudo. Nesse ponto, os escritores de crônica aproximam-se bastante dos poetas, posto que ambos demonstram grande consciência quanto ao uso da linguagem. Daí a iniciativa de trazer para nossa reflexão um outro texto de Veríssimo, lançado também pela editora Objetiva, ao final do ano de 2002. “Poesias numa hora dessas?!” reúne textos que já se apresentaram algumas vezes no espaço de crônica de jornal e que fogem do conceito estereotipado de poesia.

Passaremos a observar os jogos lingüísticos, os recursos que o sistema oferece e as estratégias discursivas utilizadas pelo cronista-poeta para a produção de sentidos inusitados - irônicos, muitas vezes. A primeira característica a ser destacada é a proximidade da linguagem escrita e da oralidade. O coloquialismo vai marcar o diálogo entre o leitor e o cronista. E o dialogismo equilibra o coloquial e o literário. Tudo isso numa linguagem clara e enxuta. Da obra em prosa em questão, vale apontar oito textos arrolados sob o título “De olho na linguagem”: Sexa (p. 53), Pá, Pá, Pá (p. 55), Defenestração (p. 59), Tintim (p. 63), Papos (p. 65), O jargão (p. 67), Pudor, (p. 69), Palavreado, (p. 73). Devido ao limite deste trabalho não nos debruçaremos sobre cada uma das crônicas citadas. Selecionei, então, algumas passagens de uma e outra que poderão formar um panorama do malabarismo morfossemântico gerador da estética do discurso de LFV. Em “Sexa” o jogo de sentidos acontece a partir do lúdico, provocado pela curiosidade de um menino sobre a palavra “sexo”. Ao tomar posse da língua, o novo usuário se vê algumas vezes interrogando sobre algumas questões gramaticais como, no caso, o fato de certas palavras não apresentarem uma forma feminina correspondente - sexo/sexa. O trabalho acontece a partir de uma reflexão sobre um fato do sistema da língua: o gênero. A última frase “Ele só pensa em gramática” arremata, ao avesso, a intenção do cronista: criar o humor por e com palavras.

Um outro passeio pelos sentidos de algumas expressões também é tema da crônica “Pá, Pá, Pá”. Nesse texto o cronista traz à cena uma americana que, por estar há pouco tempo no Brasil, prestava muita atenção à fala dos brasileiros e ficava intrigada com alguns usos, como, por exemplo, o da expressão “pois é”, que muitas vezes nada dizia ou o do “pois não”, usado para dizer “sim”. A maior perplexidade da estrangeira, porém, era diante da expressão “pá, pá, pá”, usada como reticências, sendo, portanto, “uma expressão utilitária”, conforme lhe foi explicado.

Outro primor de reflexão sobre a língua, revelação de sensibilidade lexical, é a crônica “Palavreado”. Ao se apropriar de palavras de pouca circulação na modalidade oral, LFV joga com o processo de denominação e cria possíveis sentidos para termos como “fornida”, “lascívia”, “lipídio”, “escarcéu”, “falácias”, “otorrino”, “bazófia”, “magarefe”, “cantochão”, “acepipe”, “falcatrua” etc. Esse texto vai exigir do leitor-em-formação mais empenho e esforço. Suas buscas nas páginas do dicionário e discussão com leitores mais experientes deverão ser vistas como prazer, pois é o momento de encontro, de se proceder à leitura solidária. O leitor deseja também decifrar enigmas; ele almeja buscar por trás dos significantes os significados possíveis.

Os exemplos citados acima nos confirmaram as palavras de Domício Proença Filho, que afirma ser o “texto literário ao mesmo tempo um objeto lingüístico e um objeto estético” (p. 37).

A literariedade em “Poesia numa hora dessas?!” ganha forma de poema. Embora seja o próprio Veríssimo quem diga nas primeiras páginas do livro que: “Uma poesia/ não é feita com palavras. / A poesia já existe. / A gente só põe as palavras em/ volta para ela aparecer/ - Como as bandagens do/ homem invisível, lembra?”

Partindo desse postulado, podemos inferir que as palavras postas em volta da poesia podem produzir poemas ou outros tipos de texto, como prosa poética, tirinhas etc. As cobrinhas, personagens que há muito encantam os leitores de Veríssimo, nos levam a refletir sobre o efêmero e fugaz. Na página 10, podemos ler o seguinte diálogo entre as famosas personagens:

- Fico angustiado com a transitoriedade de tudo.

-Eu também já senti isso.

-Mas passou.

O jogo com a palavra “transitoriedade” e com a oração “mas passou” é o que constrói a esteticidade do texto. O efeito de sentido alcançado nesse curto diálogo não fica aquém de trabalhos de grandes poetas preocupados com a fugacidade da vida.

Este exemplo ilustra muitíssimo bem a competência lingüística de LFV, que é exímio em jogar com as possibilidades da língua.

Passaremos a analisar mais algumas produções em forma de crônica para defender a seguinte tese: Veríssimo é um escritor que cuida bem da língua, ele “vê” a linguagem, como dizia Roland Barthes, e faz os signos enunciarem a poesia do universo, quer em crônica, quer em versos, quer em tiras.

Em Comédias para se ler na escola, lemos a crônica “Um, Dois, Três” (p. 123), texto que poderia ser denominado de crônica-poética, pois a poesia transpira destas poucas páginas; e, de sua pena, o cronista faz bailar ao ritmo da valsa - em perfeito compasso - uma história em torno de um triângulo amoroso que nos leva a rodopiar nessa contradança. Com a leitura desse texto, percebemos o alerta que o autor nos faz: a poesia existe fora dos signos simbólicos. É a estes que vamos nos ater no momento.

1.O trocadilho/ jogo de palavras serve de base para o discurso em:

O Brasil é um país

verdadeiramente incomum.

Enquanto parte vai pra

Cucuia

Outra parte vai pra

Cancun

O coloquialismo na expressão “pra Cucuia”, o antagonismo entre esta e “pra Cancun”, a rima entre incomum/Cancun podem reforçar a tese “tal cronista qual poeta”. O humor, a ironia, a crítica social encontrados nas crônicas são recorrentes nos textos poéticos.

A intertextualidade, conceito trazido por Julia Kristeva, é um recurso muitíssimo explorado em diferentes discursos. Para produzir mais um efeito de sentido na linha do humor, LFV faz seu texto dialogar com o poema de Carlos Drummond de Andrade em:

Mundo, mundo, vasto mundo

Se eu me chamasse Tamborindeguy

Não seria uma rima...

Mas quem sabe

Não poderia ser uma solução?

Vale a pena ressaltar que o poeta somente logrará êxito, se o interlocutor tiver conhecimento prévio da história da tradicional família Tamborindeguy, nome que se contrapõe ao popular “Raimundo”, do texto original.

Em “Declaração de amor em várias sabores”:

Ver-te

- só ver-te!-

é sorver-te

como

um

sorvete

O trabalho com a língua se estabelece, nesse pequeno poema, a partir do jogo com a camada fônica, segmentando e re-segmentando os diferentes vocábulos: ver - sorver - sorvete - só - te. O que só vem reforçar a tese da proposta lúdica com a língua(gem).

Da série “O Sedutor”, o destaque vai para “O Sedutor pobre”, abaixo transcrito:

Não tenho onde cair morto,

ando matando cachorro a grito

com uma mão atrás e outra na frente,

tou duro, tou na pior,

tou chamando urubu de “meu louro”,

numa merda federal,

com a corda no pescoço,

endividado até a alma

e entrando pelo cano.

Mas, em compensação, te amo.

Todo construído em clichês, coloquialismos e gírias, o texto reproduz discursivamente o perfil linguageiro e o lugar social de onde fala o cidadão pobre, que repete um discurso esvaziado pelo uso, mas pleno de emoção. É o único da série que declara seu amor, aberta e sinceramente.

Termino esta brevíssima reflexão sobre o trabalho literário de Luís Fernando Veríssimo, transcrevendo suas próprias palavras:

O poeta é um reciclador

das palavras de todo dia

do verbo de toda hora

que usa e bota fora.

Separa o descartável

do reaproveitável

e o belo da bobagem.

A poesia

é o lixo limpo

da linguagem.

Eis Veríssimo - o cronista-poeta e seu magistral domínio da linguagem -. Eis o reciclador de palavras, que, colocadas em prosa e em verso, nos guiam pelos sedutores caminhos da leitura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1992.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

------. Poesia numa hora dessas?! Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.