UNIDADES DISCURSIVAS
NA FALA CULTA DE SÃO PAULO

Paulo de Tarso Galembeck (UEL/CLCH)

Preliminares

Este trabalho tem por objetivo discutir os procedimentos de estruturação de enunciados característicos da língua falada (denominados unidades discursivas) e de suas partes componentes, em diálogos simétricos. Adota-se, como hipótese de trabalho, o fato de que as unidades discursivas constituem unidades pragmáticas (e não apenas sintáticas) e, assim, apresentam processos variados de estruturação, incorporam dados do contexto e da situação, e refletem o processo de elaboração do texto conversacional.

O córpus do trabalho é constituído pelos inquéritos no 062, 333, 343 e 360, pertencentes aos arquivos dos Projetos NURC/SP. Esses inquéritos estão publicados em Castilho e Preti (1987) e de cada um deles foi extraído um trecho correspondente a 20 minutos de gravação.

A exposição compõe-se duas partes. Na primeira, dedicada à fundamentação teórica, discute-se o modo pragmático da linguagem e expõe-se o conceito de unidade discursiva.

Fundamentação Teórica

O modo pragmático da linguagem

Castilho (1989) define a língua falada (por ele denominado “língua oral”) como o modo pragmático da linguagem. Com efeito, a língua falada apresenta uma estruturação do enunciado fragmentária e truncada, caracterizados pelos anacolutos, falsos começos, repetições, truncamentos, pausas, processamento incompleto da informação; para suprir essas lacunas, ela se serve dos dados do contexto e da situação de enunciação.

O apoio nos dados contextuais e situacionais é devido às condições de produção da língua falada. Ela é realizada sem planejamento prévio (planejamento local), em um local e momento determinados e numa situação de interação direta entre os interlocutores; desse modo, nela se tornam evidentes os dados indicativos do processamento verbal, da situação da enunciação e da presença dos interlocutores. Justamente a presença desses dados confere à língua falada um caráter modular, algo como uma estrutura inacabada, que revela (ainda que parcialmente) as etapas da formulação do enunciado.

Ora, a unidade habitualmente considerada como forma canônica de estruturação do enunciado (a frase, simples ou complexa) não se aplica à língua falada, pelos motivos expostos a seguir. Inicialmente, cabe considerar que a frase, na língua escrita, possui limites nítidos, representados visualmente pela inicial maiúscula e (geralmente) pelo ponto final. Na língua falada, ao contrário, esses limites não existem, porque os enunciados são produzidos aos jatos, aos borbotões, e sua delimitação tem muito de intuitivo.

Além disso, na língua falada, a construção do enunciado é permeada pelos fenômenos característicos dessa modalidade de realização lingüística (pausas, inserções, truncamentos) e por marcas da presença dos interlocutores (marcas de subjetividade e intersubjetividade). Esses fenômenos também não são considerados na frase, enquanto unidade estrutural.

É preciso, pois, postular uma nova unidade, que leve em conta os “andaimes” da construção do texto falado (citados no parágrafo anterior), as marcas do planejamento local do enunciado e o caráter modular dessa modalidade de realização.

Nesse sentido, Castilho (1989), estabeleceu a unidade discursiva, conceito que será discutido na seqüência desse trabalho.

Vale acrescentar que o conceito de unidade discursiva foi anteriormente postulado - com outras designações - por outros autores. Entre eles são mencionados Halliday, 1967 (“unidade de informação”), Chafe, 1980 (“unidade de idéia”), Gülich e Rath, citados por Marcuschi, 1986 (“unidade comunicativa”).

Unidade discursiva

Castilho (1989) conceitua unidade discursiva (UD) como “um segmento de texto caracterizado semanticamente por preservar a propriedade de coerência temática da unidade maior, atendo-se como arranjo temático secundário ao processamento informativo de um subtema, e formalmente por se compor de um núcleo e de duas margens, sendo facultativa a figuração destas”.

O mesmo A. (op. cit.) assinala que a UD constitui essencialmente uma representação semântica da cena, por isso a segmentação da mesma leva em conta o fato de ela constituir uma particularização do tópico em andamento. Apesar disso - e agora já não são palavras do citado Autor - há certos sinais característicos da língua falada que contribuem para a identificação e delimitação da UD, sobretudo os marcadores conversacionais e a pausa.

A unidade discursiva compõe-se de um núcleo e das marcas esquerda e direita, sendo facultativa a representação destas. Vejam-se alguns exemplos:

  ME N MD
(1) uhn uhn é que hoje:: dentro da nossa profissão ainda mais uma vez falando nela... até parece que sou emPOLgado por ela... o::... que com a empresa privada hoje em dia ela atende muito melhor que as entidades públicas né? não acha? entende?

(Inq. 062, l. 850-854)

(2) mas::... pensei em fazer Diplomacia sempre sempre sempre... depois... por uma série de circunstancias não foi possível Ø

(Inq. 360, l. 1524-1526)

(3) Ø no colégio... normalmente tem muitas professoras que ficam batendo nos alunos para não deixar...se envolver por máquinas et cetera né?

(Inq. 062, l. 816-818)

(4) Ø ele se dedica MUItíssimo a... tanto a... carreira de procurador como de professor Ø

(Inq. 360, l. 1187-1189)

Como já se viu pelos exemplos apresentados, a segmentação dos constituintes da UD não se baseia em uma articulação linear. Justifica o que foi dito o fato de as margens inserirem-se também no núcleo e, também, a circunstancia da segmentação da UD levar em conta dados não-verbais e as particularidades da enunciação. Além disso, fica claro que apenas o núcleo é obrigatório, sendo facultativa a representação das margens.

Cabe observar que a expressão “unidade” não é aqui tomada no sentido em que é empregada nas diversas correntes estruturalistas. Com efeito, a construção da UD corresponde às escolhas pelo falante efetuadas para satisfazer as necessidades de situação específica de interação verbal; por esse motivo, a unidade discursiva não corresponde a uma estrutura padronizada e definida. Aliás, como assinala Castilho (1989), a UD não é categórica, mas problemática, pois - como já se disse - ela se liga às necessidades imediatas do falante e sua estruturação leva em conta os dados não-verbais da situação.

Em um texto mais recente (Castilho, 1998), o mesmo Autor assinala que a delimitação e a segmentação das UDs seguem o critério semântico, pois se baseiam em uma compreensão do texto, dentre outras possíveis. Como cada usuário da língua desenvolve estratégias interpretativas próprias, fica evidente que há mais de uma segmentação possível.

As Partes da UD

O núcleo

O núcleo da UD é constituído por uma ou mais de uma frase nominal ou verbal (oração). Se houver duas ou mais frases verbais (orações), elas podem estruturar-se por coordenação ou por subordinação.

O tipo de estruturação freqüente (correspondente a 78% das ocorrências) são os períodos compostos por subordinação, ou por coordenação e subordinação:

(5) L1 (...) mas a coisa mais difícil dentro da profissão do vendedor você realmente... é conseguir manter oito horas naquele território de trabalho SEM sair de lá... e MAIS uma vez eu... eu vejo a influência do clima e tudo mais... se é um clima tal talvez até me ajude...

(NURC/SP, 062, l. 241-246)

(6) L2 tem secretária... que querem sa/saber o porque:: o motivo que quer falar com aquela pess::a tudo isso né?

(NURC/SP, 360, p. 1061-1063)

Os processos de estruturação mencionados correspondem ao que Halliday (1989) denomina emaranhado ou enredamento gramatical (“grammatical intricacy”). Segundo o citado Autor, esta é uma característica do discurso oral, no qual as orações se sucedem sem um plano definido, já que nessa modalidade de realização lingüística ocorre o planejamento local, no momento da realização do discurso. Aliás, as marcas do enredamento gramatical (pausas, truncamentos, vários níveis de encaixamento) estão representadas nos dois exemplos citados e elas bem evidenciam o planejamento local.

12% das ocorrências analisadas consistem em períodos compostos por coordenação:

(A informante trata dos procedimentos de seleção de pessoal).

(7) L2 então aí nesse caso deixa de ser TÃO importante o fator idade... mas isso é pouco porque ah::... na ponta de cima da pirâmide né ( ) os os as as necessidades são bem menores...

(NURC/SP, 360, l. 1023-1026)

Mesmo nos casos de coordenação são encontrados os fenômenos que caracterizam o planejamento local (pausas, hesitações, truncamentos, inserções parentéticas).

O exame dos processos de estruturação do núcleo revela que nesse segmento manifestam-se os processos que caracterizam o modo pragmático da linguagem. Embora o núcleo veicule o conteúdo proporcional (ou seja, a informação), em sua estruturação evidencia-se a articulação modular, a formulação “aos jatos” que caracteriza a língua falada. Nessa estruturação também se manifestam os “andaimes” da construção (representadas pelas já citadas marcas de planejamento verbal) e os sinais da presença dos interlocutores (marcadores conversacionais do falante e do ouvinte que se insinuam no núcleo).

As margens da UD

As margens da UD são formadas por elementos de natureza diversa: sinais paralingüísticos ou cinésicos (gestos, expressões faciais); supra-segmentos (entoação, elevação da voz, alongamentos, pausas); elementos segmentais (expressões não-lexicalizadas, elementos lexicais, proposições).

A margem esquerda

Como já foi exposto anteriormente, a margem esquerda tem a função de introduzir ou “preparar” o conteúdo proposicional, expresso por meio do núcleo da UD. A essa função principal agregam-se outras funções complementares, realizadas pelos diferentes marcadores conversacionais que ocupam esse segmento da UD. A respeito da sobreposição de funções, cabe lembrar que diversos autores (Marcuschi, 1989; Urbano, 1993; Galembeck e Carvalho, 1997) mencionam, dentre as características dos marcadores, o caráter multifuncional.

As funções mais freqüentes das margens esquerdas são mencionadas a seguir. As funções citadas correspondem a 87% do total dos casos em que esse segmento é preenchido.

(a) Planejamento verbal

Essa função é exercida pelos marcadores não-lexicalizados (ahn::, uhn::) ou certas expressões (bom, então). Com freqüência, esses marcadores são alongados, o que significa que eles também atuam como preenchedores de pausas:

(8) (A informante afirma que relutar em colocar a filha na escola de bale).

L1 éh não quis pô-la até agora mas ela é MUIto::... quebradi::nha ela:: faz os trejeitos e:: vira pirueta e faz... parece de borracha

(NURC/SP, 360, l. 1397-1400)

(9) (O informante trata da interrupção das obras da Av. Paulista).

L1 bom::... tinha sido planejado estava em execução e::... de repente não ficou bom... então isso dá para sentir que tinha muita política... com muita força por trás disso né?

(NURC/SP, 343, l. 381-385)

(b) Coesão

Na margem esquerda podem figurar marcadores de valor coesivo, cuja função é indicar a continuidade tópica (e, então, mas, ):

(10) (Este exemplo representa a seqüência do exemplo anterior).

L2 mas você sabe que é interessante pôr porque na maiori/na grande maioria das vezes... aquilo se torna tão chato que a criança desiste

(NURC/SP, 360, l. 1404-1403)

(c) Concordância ou discordância

A concordância ou a discordância também se encaixam entre as formas de continuidade tópica e são indicadas, respectivamente, pelos marcadores é, sim, certo, e não:

(11) L2 (...) é o tal negócio eu não me preocupo muito com a média... pra mim interessa o indivíduo né? (...)
  L1 não... eu às vezes me preocupo com... digamos com a média pelo seguinte... eu me preocupo com o que que eu estou contribuindo com o bem da média ou não

(NURC/SP, 343, l. 568-578)

(12) (Os informantes tratam da perda da vegetação que circundava São Paulo).

L2 mas é o progresso né?
L1 certo... seria o progresso que está chegando né? dizem que é o progresso... dizem né? sei lá

(NURC/SP, 062, l. 64-71)

(d) Avaliação ou comentário

Esta função é indicada por marcadores proposicionais de opinião (não sei se, acho que) ou de elocução (dizem que):

(13) L1 acho e acho (...) acho que a televisão brasileira ... irá encontrar do ponto de vista ficcioNAL... irá encontrar o seu caminho... e através da tão malfalada TElenovela...

(NURC/SP, 333, l. 381-384)

(14) Dizem que está surgindo agora... a... computação... talvez você possa dizer mais alguma coisa do que eu nesse campo...

(NURC/SP, 062, l. 1019-1022)

(e) Envolvimento do ouvinte

Nesse caso, a margem esquerda é representada pelos marcadores olha, veja bem, veja você (e assemelhados), por meio dos quais o falante enfatiza, de forma indireta, a relevância do que vai ser dito:

(15) (O informante trata das especializações médicas).

L1 olha mesmo com as especializações... tem as boas espre/especializações as que dão dinheiro ... então por exemplo posso te citar se você... diz que... otorrino é uma coisa que dá muito dinheiro... psiquiatra pô... dando fortunas... certo?...

(NURC/SP, 062, l. 664-668)

Registrou-se apenas uma ocorrência em que o envolvimento do ouvinte é realizado por meio de um vocativo:

(16) L2 H. você escreveu qualquer coisa muito interessante sobre a a Marília Medalha e eu perdi esta sua::... o que foi que você disse sobre a a Marília Medalha...

(NURC/SP, 333, l. 534-536)

(f) Introdução de tópicos ou subtópicos

Os marcadores agora e então também exercem a função de introdutores de novos tópicos (assuntos) e subtópicos. No exemplo a seguir, verifica-se que a informante está tratando das filhas adolescentes e introduz, como subtópico, o diálogo que procura manter com as filhas:

(17) agora... eu acho que::... eu... espero não:: ter problemas com ela porque... nós mantemos um diálogo assim bem aberto sabe?

(NURC/SP, 360, l. 51-54)

O fato de a margem esquerda apresentar formas e funções tão variadas constitui um índice seguro da importância desse segmento na estruturação do enunciado. Pode-se afirmar, pois, que a margem esquerda não se limita a introduzir a UD, mas também tem um papel relevante no estabelecimento e manutenção das relações entre os interlocutores e na seqüência tópica. No plano interacional, a margem esquerda permite definir e estabelecer os papéis exercidos pelos interlocutores (falante e ouvinte) e a forma de atuação de cada um deles. No plano da seqüência tópica, esse segmento torna-se responsável pela coesão entre as partes do tópico em andamento e pela introdução de novos tópicos e subtópicos. Por causa dessa pluralidade de funções, pode-se admitir que a função que Castilho, (1989) atribui à margem esquerda (introduzir e preparar o núcleo) desdobra-se em várias funções associadas, que dão a esse segmento um papel relevante no estabelecimento e manutenção do relacionamento entre os participantes da interação verbal.

A margem direita

A margem direita diferentemente da margem esquerda, tem uma única formação, à qual corresponde uma função claramente definida. Com efeito, o segmento em estudo é representado por marcador lexical de valor fático (?, sabe?, certo?, entende?) por meio do qual o locutor busca a aprovação ou a concordância do interlocutor:

(18) (O informante fala do seu trabalho como engenheiro).

L1 certo eu sou:: um::... um circuitozinho pequenininho dentro de um processo grande... (...) e se eu (saio) dali ou não basicamente eu posso não interferir... no processo global... mas eu queria entender esse processo ?

(NURC/SP, 343, l. 582-587)

Os marcadores de busca de confirmação que são empregados no final dos turnos conversacionais também funcionam como sinalizadores de passagem explícita do turno para o outro interlocutor. É o que se verifica no exemplo a seguir:

(19) L2 então tem éh::... o paulistano é mais fechado mesmo eu acho que:: uma das influências seria a natureza e o nosso próprio clima entende?
  L1 é o clima tem realmente uma influência diREta no comportamento das pessoas inclusive nas atitudes

(NURC/SP, 062, l. 170-175)

Comentários Conclusivos

O exame das unidades discursivas (e de suas partes componentes) revela que as mesmas constituem unidades pragmáticas (e não sintáticas) e, assim, apresentam processos variados de estruturação, incorporam dados do contexto e da situação, e refletem o processo modular de construção dos enunciados da língua. Com efeito, verificou-se que o núcleo pode ser estruturado de diferentes formas, mas nele se manifestam processos característicos da língua. As margens, por sua vez, apresentam configurações e funções variadas (sobretudo a margem esquerda) e podem insinuar-se no núcleo da UD.

 

Referências Bibliográficas

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