A LINGÜÍSTICA
E AS ATIVIDADES DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO

Maria Cristina Lírio Gurgel (UERJ)

Esta comunicação objetiva desenvolver uma reflexão sobre o processo ensino-aprendizagem de Lingüística nos cursos de graduação em Letras da UERJ, analisando os problemas existentes e as perspectivas com relação à pesquisa e à extensão.

Mendonça (2001), ao ilustrar a visão que a sociedade leiga tem da Lingüística, apresenta o seguinte diálogo imaginário:

- Você dá aula de quê?

- De Lingüística.

- Ah! (silêncio)

Apesar de imaginário, esse diálogo, certamente, já foi vivenciado por quase todos nós, professores de Lingüística, e retrata o lugar que a Lingüística ocupa, destinado às ciências acadêmicas que são ilustres desconhecidas, até mesmo pelo próprio aluno de Letras que, ao ingressar, não tem como opção se tornar um lingüista. Como a sociedade leiga, ele também desconhece essa disciplina. Sua opção inicial é pela aprendizagem de uma determinada língua ou pelo estudo de literatura.

Com relação à literatura, que também faz parte de nossa área (na relação do CNPq, a Lingüística insere-se na grande área de Letras, Lingüística e Artes), Fiorin (2003), ao discutir a importância dessa área para as Agências de Fomento à Pesquisa ou dentro da sociedade, lembra-nos de uma cena do filme de Spielberg A lista de Schindler, em que um judeu podia salvar-se da morte em um campo de concentração se fosse considerado um trabalhador essencial ao esforço da guerra nazista, ou seja, se fosse incluído na lista de Schindler. Uma personagem aproxima-se da mesa de inscrição e diz com orgulho: “Sou um trabalhador essencial”. O soldado nazista indaga: “Qual é a sua profissão?”. A personagem responde: “Sou professor de literatura e história”. O soldado começa a rir, indicando-lhe o lugar dos excluídos. Perplexa, a personagem indaga: “Mas o que pode ser mais essencial do que a história e a literatura?”.

A esta fala poderíamos acrescentar a lingüística e, de certa forma, explicaríamos a dificuldade de se conseguir a ampliação de bolsas de iniciação científica em nossa área, se comparadas às áreas das ciências físicas e biológicas.

Por outro lado, os estudantes de Letras, de um modo geral, que já ouviram falar de Lingüística, supõem que ela se resume à arbitrariedade do signo, às relações paradigmáticas e sintagmáticas, à sincronia e à diacronia. Freqüentemente, as introduções à Lingüística não ultrapassam essa leitura.

Na UERJ, embora os estudantes de Letras reconheçam uma certa importância da Lingüística em sua formação profissional, vêem essa disciplina muito distante de sua futura atuação que é a sala de aula. Isto ocorre porque a “gramática” continua a ocupar lugar de destaque nas aulas de língua portuguesa. Gramática, aqui, com o sentido de gramática normativa. O termo é polissêmico; uma das contribuições da Lingüística ao ensino de línguas é a resposta às perguntas O que é língua? O que é gramática?

Entre nossos alunos, a Lingüística não goza da preferência da maioria, representando mesmo um obstáculo a ser vencido. Por que isto ocorre? Se examinarmos o perfil geral dos programas, verificamos que o objetivo do ensino está centrado no domínio das principais escolas que se sucederam na história da Lingüística ou, pelo menos, na Lingüística do século XX. A ênfase é dada aos conteúdos e ao caráter metalingüístico - domínio do léxico e do falar sobre, como mera transmissão de informações.

Tal enfoque se contrapõe à reflexão sobre o funcionamento das línguas, necessária ao aluno que deseja atuar como professor de línguas. E como fazê-lo, se desconhece o funcionamento dessa língua?

Rocha (2000) considera promissor o ensino de Lingüística que possibilite ao aluno se confrontar com reflexões sobre os fatos da língua. Nesse sentido, o que se pretende é a ruptura com um suposto saber do aluno do ensino médio em relação aos fatos lingüísticos e, até mesmo, que ele seja esclarecido sobre o que significa fato lingüístico.

Como lembra Possenti (2001):

Nesse domínio, duas questões são essenciais: que o estudante se torne capaz de ver como fatos os casos de variação; em segundo lugar, que perceba que há pesquisa possível em língua - ou melhor, que fazer pesquisa a propósito da língua não equivale a consultar gramáticas e dicionários...

Por outro lado, no bojo da superação de uma ótica normatizante, torna-se necessário que o aluno possa adotar uma atitude que o afaste da lógica binária “certo x errado”, que se contrapõe à diversidade de pontos de vista passíveis de serem assumidos diante de um dado objeto a ser analisado.

Outra dificuldade diz respeito ao impacto que advém do contato que o aluno tem com um corpo teórico de conhecimentos cujos termos, aparentemente próximos de sua realidade, dela se distanciam do ponto de vista conceitual, como é o caso, por exemplo, do termo competência que, na concepção gerativista, nada tem a ver com a capacidade para resolver algo. Nesse sentido, é importante que o professor cuide para que a seleção de textos, que servirá de suporte teórico, seja de qualidade e pressuponha o aluno como interlocutor, facilitando o diálogo.

Existem habilidades essenciais a um estudioso das práticas linguageiras, que devem ser desenvolvidas na graduação, se pretendemos formar professores de línguas: habilidades de raciocínio, de observação, de formulação e testagem de hipóteses, de independência de pensamento, que são pré-requisitos à formação de indivíduos capazes de aprender por si mesmos, de criticar o que aprendem e de criar novos conhecimentos. O aluno deve participar do ato de descoberta do campo de conhecimentos relativo aos estudos lingüísticos, através de sua contribuição à discussão, ao argumento, à procura de novos exemplos que o levem a refletir sobre seu objeto de estudo, que é a língua.

Ao lado da ruptura com as crenças a respeito das línguas, que o aluno traz do ensino médio, é importante que ele reflita sobre questões levantadas pela Análise do discurso, pela Neurolingüística, pela Lingüística textual, pela Sociolingüística, pela Psicolingüística, bem como por teorias advindas de outros campos do saber que se relacionam com o campo de conhecimento da Lingüística.

Outro desafio no processo ensino-aprendizagem de Lingüística, na UERJ, diz respeito à articulação entre ensino, pesquisa e extensão. Embora a UERJ receba bolsas do CNPq e também ela, UERJ, ofereça bolsas de Iniciação Científica, a demanda é muito maior que a oferta. Para se ter idéia da participação de docentes e alunos pesquisadores, basta examinar o que vem ocorrendo na Semana de Iniciação Científica da UERJ desde sua primeira edição em 1992, que contou com 165 trabalhos inscritos e 111 alunos participantes. Em 2002, foram 814 trabalhos e 1039 alunos.

Cumpre ressaltar que a participação do aluno bolsista no trabalho de pesquisa não deve ser o de coadjuvante, auxiliar em tarefas menores. O que se pretende é o pleno exercício de um trabalho de formação profissional. Só se aprende a fazer pesquisa, fazendo, vivenciando ao lado do pesquisador as etapas da pesquisa. Bolsista e professor devem se constituir parceiros no estudo e, como lembra Rocha (2001), “co-enunciadores na produção de um texto coletivo”, daí a necessidade de se desenvolver uma ética no estabelecimento de princípios e metas a serem alcançadas.

Segundo Gisele Batista da Silva, bolsista de Iniciação Científica, em 2001, no projeto “O discurso pedagógico e suas crenças: aula de leitura no 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do ensino fundamental”:

Estudar temas que se relacionam diretamente ao ensino é sempre muito gratificante, visto que acrescentam conhecimentos a mim, não só como bolsista de uma pesquisa mas, também, e principalmente, como futura educadora. Pesquisar sobre educação é ter possibilidade de refletir sobre nosso sistema de ensino, que vem sendo largamente criticado pela sociedade. E a leitura é o meio pelo qual o indivíduo tem a possibilidade de ter contato com o mundo e com outras perspectivas dele, além daquela que vive diariamente, refletindo e criticando, e, por isso, a grande importância deste estudo para as aulas de leitura no ensino fundamental. Portanto, tenho certeza de que, ao final da pesquisa, contribuí não apenas para a conclusão deste estudo, mas também para proporcionar melhores condições de ensino, em um sistema em constante mudança.

Além de conhecer novos referenciais teóricos, pude vivenciar uma pesquisa de campo e tomar ciência de metodologias de análise em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, área do conhecimento com a qual jamais havia tido contato.

Essa pesquisa abriu para mim novas perspectivas de estudo dentro da Lingüística, disciplina que sempre cursei com vontade e dedicação.

Com relação à extensão, a partir de 2003, os alunos da UERJ terão, registradas em seu histórico, as atividades desenvolvidas, como um diferencial em relação aos demais que não participam desse tipo de atividade.

Essa iniciativa vem ao encontro das discussões que se têm desenvolvido na UERJ sobre o papel que a extensão desempenha enquanto prática acadêmica indispensável à formação do aluno e à qualificação do professor, no intercâmbio com a sociedade. No documento Marcos para a discussão da política de extensão na UERJ - Gestão 2000 - 2003, ressalta-se que:

A extensão universitária, como atividade acadêmica, deve buscar nitidez de objetivos, de procedimentos e de processos de avaliação. Deve considerar a similaridade de sua estrutura com as demais atividades acadêmicas, o ensino e a pesquisa. Como atividade voltada para o intercâmbio da universidade com a sociedade, a extensão deve criar condições de parceria, através de instâncias que tenham legibilidade para os grupos sociais.

Nesse sentido, a extensão deve propiciar aos estudantes experiências de exercício em sua área de formação. Ao participar de uma atividade de extensão, os alunos devem ter clareza do que se espera de sua atuação, que indicadores permitem avaliar o projeto em que atuam e que atividades de ensino e pesquisa são necessárias para complementar, desenvolver e ampliar o projeto. Além disso, a extensão deve possibilitar, aos grupos excluídos, formas de acesso ao saber universitário, cumprindo uma de suas funções básicas que é a de influir positivamente na melhoria da qualidade de vida da população.

Para os bolsistas, vivenciar essa experiência, buscando, no contato com grupos de diferentes faixas etárias, etnias, gêneros e níveis sócio-econômicos, possíveis soluções para problemas existentes, ou mesmo ter possibilidade de refletir sobre questões que lhes são inerentes, tomando consciência dessas questões, contribui para sua formação, tanto no que tange ao aspecto técnico-científico, quanto à cidadania e à responsabilidade social. Por isso a necessidade de buscar novas formas de avaliação institucional.

Os relatórios das atividades dos projetos devem oferecer aos alunos possibilidades de registro de impressões, pontos de vista e visão crítica do trabalho desenvolvido, rompendo com o lugar comum de mais um documento cuja tarefa deve ser cumprida de forma impessoal. Como exemplo, as considerações finais do relatório da bolsista de extensão Andréa Ribeiro Soares, do projeto “Trocando fios, tecendo caminhos na construção da leitura em múltiplas linguagens” e que atuou como voluntária no projeto de pesquisa em lingüística aplicada:

Como declarei na 11ª Semana de Iniciação Científica, constitui motivo de grande satisfação avaliar o projeto no qual atuei durante dois anos, e poder ter a certeza de que tudo o que realizei nele foi válido. Ele me proporcionou crescimento tanto profissional como pessoal.

Profissionalmente, sinto-me bastante capacitada para encarar o mercado de trabalho, embora tenha consciência de que ainda preciso aprender e crescer muito, é lógico.

Afirmo isso com base no que tenho vivenciado ultimamente. Citarei, nos parágrafos seguintes, três exemplos disso.

No minicurso “Lingüística Aplicada: da teoria à sala de aula”, do qual participei durante o VI Congresso de Filologia e Lingüística, fiquei espantada ao perceber que muitos professores ali presentes, os quais já tinham experiência de anos no magistério, não compreendiam o assunto que a professora estava tratando. A ponto de ela não conseguir prosseguir, porque eram feitas perguntas muito óbvias. Os professores não conheciam Lingüística Aplicada, matéria utilizada como suporte teórico para as pesquisas desenvolvidas pelo Projeto.

Cursando, neste semestre, minha primeira disciplina de Prática de ensino, no CAP da UERJ, percebi que tudo o que aprendi no ’Trocando Fios...’, como didática, metodologia de ensino de leitura e compromisso com o trabalho desenvolvido, era aplicado em sala de aula pelo meu professor orientador.

Ao ler, por iniciativa própria, o livro Como desenvolver competências em sala de aula (Antunes, 2001), foi extremamente gratificante notar que todas - todas - as recomendações de como desenvolver as competências nos alunos, e também nos professores, eram seguidas pelo projeto. Ou seja, tudo o que eu li no livro já havia aprendido no projeto.

Além disso, o projeto também me ensinou como realizar uma pesquisa, quais os procedimentos necessários para seu fluente desenvolvimento. Ainda mais: plantou em mim o desejo de querer aprender ainda mais sobre os assuntos estudados, isto é, de crescer junto com a pesquisa.

Pessoalmente, o projeto me proporcionou desenvolvimento de minha auto-estima, o que se reflete diretamente em meu trabalho, na medida em que me sinto com maior determinação para realizá-lo da melhor forma possível.

Diante disso, torna-se óbvio afirmar que o’Trocando Fios...’ foi um projeto completo para mim.

Muito se tem discutido, atualmente, sobre os reais objetivos da educação. Estudiosos do assunto declaram que educar não consiste apenas em estocar conhecimento, mas corresponde, na verdade, a estar apto a aplicar o saber recebido na escola à resolução eficaz de problemas cotidianos. Ou seja, a educação precisa ensinar o educando a ‘alçar vôo’, a transformar a si mesmo e seu sistema de compreensão de mundo.

Em cena do filme ‘Mr. Holland, adorável professor’, vemos o caso de uma menina ruiva que adorava música. Entretanto, embora treinasse tanto no clarinete, a ponto de ficar com os lábios inchados, não conseguia tocá-lo corretamente. Um dia, quando ela disse ao professor que iria abandonar o instrumento, ele perguntou a ela de que parte de seu corpo ela mais gostava. Ela respondeu que eram seus cabelos, pois seu pai sempre dizia que eles lembravam o pôr-do-sol. Então, o professor lhe disse:

- Toque o pôr-do-sol. Feche os olhos, você já tem na cabeça todas as notas da partitura. Toque o pôr-do-sol’.

E assim, com os olhos fechados, a menina conseguiu tocar perfeitamente o clarinete, pela primeira vez. Depois, integrou a banda do colégio. Posteriormente, aquela menina que era tão tímida e não acreditava em si mesma virou a governadora do Estado.

Foi exatamente isso que o’Projeto ‘Trocando Fios...’ fez comigo: me ensinou a tocar o pôr-do-sol. Aquela menina ruiva já conhecia todas as regras da composição, só não conseguia transformá-las em um bom som. O ‘Trocando Fios...’ me deu toda a bagagem necessária para que eu almejasse e conseguisse encontrar o pôr-do-sol, ou seja, me ensinou a amar o meu trabalho, a senti-lo e, por isso, querer realizá-lo bem, querer construir com ele, criar algo novo a partir dele, e não ficar acorrentada a teorias e normas. Além disso, o projeto me ensinou a ser profissional, isto é, a considerar o que seria necessário para realizar um bom trabalho - o que seria feito, por que, para quem, com.

Muitas são, ainda, as dificuldades encontradas no ensino de Lingüística na Graduação. Contudo, as articulações do ensino com a pesquisa e a extensão têm-se mostrado promissoras. Por meio delas, os alunos estão tendo possibilidades de estabelecerem uma troca de saberes que ultrapassa a sala de aula, compreendendo espaços dentro e fora da UERJ, que contribuem para sua formação integral.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Celso. Como desenvolver competências em sala de aula. Petrópolis: Vozes, 2001.

CORACINI, Maria José & BERTOLDO, Ernesto Sérgio. O desejo da teoria e a contingência da prática: discursos sobre e na sala de aula (língua materna e língua estrangeira). Campinas:: Mercado de Letras, 2003.

FIORIN, José Luiz. “Prolegômenos para um perfil da área de Letras e Lingüística”. Conferência inaugural do XVIII Encontro Nacional da ANPOLL. Maceió, 2003. (mimeo).

Marcos para a discussão da política de extensão na UERJ, Gestão 2000-2003. Sub-Reitoria de Extensão e Cultura. Rio de Janeiro, 2001 (mimeo).

MENDONÇA, Marina Célia. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina. (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2001, vol. 2, p. 233-64.

ROCHA, Décio. Reflexões sobre uma prática pedagógica: desafios e possibilidades do ensino-aprendizagem de lingüística. In: AZEREDO, José Carlos de. (Org.). Língua Portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 256-64.

Semana de Iniciação Científica, 11ª. Livro de resumos, setembro/2002. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Capacitação e Apoio à Formação de Recursos Humanos, 2002, p. 7-11.

SILVA, Gisele Batista. Relatório do projeto “O discurso pedagógico e suas crenças: aula de leitura no 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do ensino fundamental”. Rio de Janeiro: UERJ, Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, julho/2002.

SOARES, Andréa Ribeiro da C. de Jesus. Relatório do projeto “Trocando fios, tecendo caminhos na construção da leitura em múltiplas linguagens”. Rio de Janeiro: UERJ, DEPEXT, dezembro/2002.