ESTRATÉGIAS DE INDETERMINAÇÂO
EM TEXTOS DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

Angela Marina Bravin dos Santos (UFRJ)

Em uma língua genuinamente pro-drop (ou de sujeito nulo) predominam os contextos de sujeito vazio independentemente da modalidade, oral ou escrita, em todas as pessoas gramaticais. Teoricamente, o português encaixa-se nesse figurino, característico das línguas românicas. Contrariando essa afirmação, no entanto, encontramos trabalhos sociolingüísticos associados ao modelo gerativista de Princípios e Parâmetros (Duarte, 1993 e 1995) que demonstram, no português brasileiro falado, o predomínio de sujeitos preenchidos em todos os contextos, o que indica uma mudança paramétrica em progresso, de língua de sujeito nulo para língua de sujeito pleno obrigatório.

Essa preferência, mais sentida na língua oral, já está atingindo também a representação dos sujeitos de referência arbitrária (os sujeitos indeterminados), que começam a aparecer preenchidos por diferentes formas pronominais como revelam estudos sobre a indeterminação do sujeito no português brasileiro falado ( Almeida, 1992; Duarte, 1995). Na escrita padrão (Cavalcante, 1999), os resultados ainda apontam preferência pelos sujeitos indeterminados nulos. A questão que se coloca diz respeito ao comportamento dos sujeitos de referência arbitrária em textos escritos por indivíduos que ainda se encontram sob a orientação de um professor. O Objetivo da pesquisa foi, pois, verificar se aparecem nas redações estratégias de indeterminação presentes na fala, uma vez que os alunos ainda monitoram pouco a escrita.

A constituição do corpus

Foi constituído um corpus com redações produzidas por estudantes da segunda série do Ensino Médio de uma escola pública localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A amostra constitui-se de textos narrativo, descritivo, argumentativo/dissertativo e epistolar que serviram como instrumento de avaliação bimestral dos alunos. Foram selecionadas três turmas com 30 alunos, aproximadamente, em cada uma. A solicitação dos textos foi feita por intermédio do próprio professor de Língua Portuguesa das turmas, que, seguindo as orientações da pesquisadora, propôs aos alunos comandos de questões semelhantes àquelas encontradas em concursos de vestibular e propostas de redações já apresentadas em diferentes instituições.

Estratégias analisadas

As estratégias de indeterminação examinadas são as mesmas encontradas por Duarte (1995):

a) Nós

(1) Eu espero que um dia tudo isso se resolva e que nós tenhamos um mundo melhor. (Dissertação)

b) Você

(2) Logo o dinheiro acaba e você não tem de volta sua felicidade. (Dissertação)

c) Eles

(3) Tantos programas que eles poderiam colocar no ar. (Dissertação)

d) Se

(4) Agora, só se vê na televisão filme violento. (Dissertação)

e) A gente

(5) Quando a gente passa fome, somos capazes de fazer qualquer coisa.(Dissertação)

f) Zero

(6) Para ser artista, ø precisa estudar durante anos. (Dissertação)

No tocante à estratégia com se, levamos em conta também as estruturas com transitivos diretos, em que, de acordo com a classificação tradicional, o se é considerado pronome apassivador. Entretanto, como não encontramos casos de concordância entre o verbo e o SN paciente, interpretamos tais construções como sujeito indeterminado (Cavalcante, 1999). Desse modo, são consideradas casos de indeterminação com verbos transitivos diretos ocorrências como :

(7) não se deve vender: a dignidade. (Dissertação)

O tratamento dos dados

A análise seguiu os passos da Sociolingüística Variacionista (Mollica, 1996; Tarallo, 1985). Assim, os dados coletados foram codificados e submetidos aos programas da série VARBRUL, por meio dos quais se quantificaram as ocorrências.

Os resultados

Das 153 ocorrências de sujeitos pronominais de referência arbitrária analisadas, 22% aparecem preenchidas, o que revela um comportamento diferente do verificado para a língua oral (Duarte, 1995). Vejamos como ficou a distribuição das estratégias:

Observando o gráfico, podemos notar que a estratégia de indeterminação preferida é o uso da 1a. pessoa do plural (59%), o que revela, por um lado, a utilização de uma forma em via de desaparecimento na língua falada (Duarte,1995) e, por outro, a escolha de uma estratégia que não apresenta a formalidade do uso do se (surpreendentemente atingindo apenas 8%), forma de indeterminação prescrita pela norma gramatical (Bechara, 1974; Lima, 1983; Cunha & Cintra, 1985), que nem sequer menciona o uso de nós, deixando, portanto, de apresentar uma estratégia bastante produtiva na língua escrita. É interessante notar que o percentual aqui obtido para a indeterminação com a forma pronominal nós é semelhante aos resultados verificados por Cavalcante (1999) em editoriais de jornais cariocas escritos na primeira metade do século XIX. Com 28%, aparece a 3a. pessoa do plural (aqui representada por ( eles). Finalmente, temos a 2a. pessoa (você) (4%) e a gente (1%), que apresentou apenas 2 ocorrências com referência arbitrária.

(8) Eu sei que nós não devemos viver a vida que a gente tem...(Descrição)

(9) Quando a gente passa fome, somos capazes de fazer qualquer coisa. (Dissertação)

O que mostra, tal como verificado para os sujeitos de referência definida (Santos, 2000) a rejeição a essa estratégia na escrita e o reconhecimento, por parte do aluno, da sua informalidade. De qualquer modo, embora os percentuais sejam muitíssimo reduzidos, já podemos verificar a lenta infiltração nos textos escritos de você e a gente como formas de indeterminação.

No tocante às construções sem o clítico se, registramos apenas 1 ocorrência, ilustrada em (10), construção com o auxiliar aspectual “precisar”, já muito freqüente na língua oral.

(10) Para ser artista, ø precisa estudar durante anos. (Dissertação)

É o momento de verificarmos a distribuição dos dados segundo a possibilidade de representação nula ou plena dos pronomes:

Tabela 1: Estratégias de indeterminação usadas segundo

a representação nula/plena da forma pronominal

  Nulos Plenos Total
Estratégias n. % n. % %
Nós 73 83 15 17 88 (100)
Eles 31 72 12 28 43 (100)
Se 13 100 - 13 (100)
Você 2 33 4 67 6 (100)
A gente 0 0 2 100 2 (100)
Zero 1 100 - 1 (100)
Total 120 78 33 22 153 (100)

Podemos notar, primeiramente, que o índice de preenchimento é baixo quando se trata da estratégia de indeterminação com os pronomes nós e eles. Assim, mais uma vez, além de verificarmos resultados opostos aos obtidos para a língua falada (Duarte,1995), confirma-se a importância da flexão distintiva no licenciamento de sujeitos nulos na escrita. Apesar do baixo índice de expressão plena desses pronomes, encontramos exemplos de preenchimento do sujeito em diferentes contextos:

(11) Nós tentamos deixar o nosso país ou, pelo menos, o nosso bairro limpo. Nós deixamos tudo bem limpo. (Dissertação)

(12) Certamente quando ø alcançamos a idade adulta, nós passamos a aprender que a vida não é brincadeira...(Dissertação

(13) Às vezes penso por que eles não aproveitaram os colégios tradicionais? (Carta/jornal)

(14) A outra rede de televisão é o SBT. Lá eles utilizam uma câmera escondida.(Dissertação)

Quanto à estratégia com se, vê-se que ocorrem poucos dados, o que revela a marginalidade nos textos dos alunos de uma estrutura de indeterminação preconizada pelas nossas gramáticas. De certa maneira, esse resultado confirma a hipótese de que a representação do sujeito pronominal de referência arbitrária esteja passando por um período de mudança e que outras formas de indeterminação apareçam com mais freqüência do que o uso do se (Cavalcante, 1999), tornando, assim, estruturas como as vistas em (15), (16) e (17) cada vez mais distantes dos textos escolares.

(15) ...por mais dinheiro que se ganhe, uma coisa não se deve vender: a dignidade. (Dissertação)

(16) ...quando se tinha o prazer de se sentar no sofá...(Dissertação)

Dos 13 dados de indeterminação com se, apenas em um caso o pronome articulou-se a verbos transitivos indiretos:

(17) ....visava-se na época a (à) situação do futuro esposo. (Dissertação)

Nos demais, o clítico se aparece em construções com verbos transitivos diretos, como em (15) e (16).

Tal como ocorre com os sujeitos de referência definida (Duarte,1995), o percentual de preenchimento com o uso da forma pronominal você (67%) para indicar indeterminação também é significativo, ainda que haja poucas ocorrências. Vejamos alguns exemplos:

(18) Dinheiro, você pode tê-lo facilmente...(Dissertação)

(19) .logo na 1a. página você lê notícias sobre a violência no Rio. (Dissertação)

Sobre a expressão a gente e a construção sem o clítico se, ilustradas em (8), (9) e (10), confirma-se o fato de serem típicas da língua oral e sua entrada na escrita parece encontrar resistência maior que a encontrada por você.

A tabela 2 apresenta a distribuição das estratégias por tipo de texto.

Tabela 2: Estratégias de indeterminação segundo o tipo de texto

  Cartas Dissertação Narração Descrição  
Estratégias t. t. t. t. Total
Nós 24 53 0 11 88
Eles 6 36 1 0 43
Se 1 12 0 0 13
Você 0 5 1 0 6
A gente 0 1 0 1 2
Zero 0 1 0 0 1

Nesta tabela, que exibe apenas a distribuição das ocorrências, nota-se que a dissertação, além de ser o tipo de texto com maior número de ocorrências de indeterminação, como já era esperado, apresenta todas as estratégias examinadas. Destaque-se, inicialmente, o fato de a quase totalidade de usos de se (12 em 13 casos) estar concentrada nos textos dissertativos. Os pronomes nós e eles, embora apareçam nos outros tipos de texto, igualmente predominam na dissertação.

Outro aspecto a observar na tabela é o fato de a narração, ao contrário do texto dissertativo, ser um contexto totalmente desfavorável à indeterminação, o que também é consistente com o tipo de texto.

Conclusão

Finalmente, o que se pode concluir da análise dos sujeitos pronominais de referência arbitrária é que existem evidências, ainda que sutis, não só da apropriação de formas de indeterminação não prescritas pelas gramáticas tradicionais, (destacando-se o uso de nós e a emergência das formas você e a gente) mas também do início de uma tendência ao preenchimento do sujeito no português brasileiro.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Maria Lúcia Leitão de. Sujeito indeterminado na fala. Tese de Doutorado em Lingüística. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 1992. (mimeo)

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 19a ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1974.

CAVALCANTE, Sílvia Regina de Oliveira. A indeterminação do sujeito na escrita padrão: a imprensa carioca dos séculos XIX e XX. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1999.

CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In ROBERTS, I., KATO, M. A. Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Unicamp, 1993.

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. A perda do princípio “evite pronome” no português brasileiro. Tese de Doutorado em Lingüística. Campinas: Unicamp, 1995.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

MOLLICA, Maria Cecília M. de. (org.) Introdução à Sociolingüística Variacionista. Cadernos didáticos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

SANTOS, Ângela Marina Bravin dos Santos. O sujeito pronominal em contexto de mudança paramétrica: a escrita de alunos do Ensino Médio. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2000.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 1985.