INTERFACES CULTURAIS
NO ENSINO DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS

Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)

...quando eu defini o “brasileiro” como sendo amante do futebol, da música popular, do carnaval, da comida misturada, dos amigos e parentes, das santos e orixás etc., usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser humano realizar-se concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim. (Matta, 1986: 18)

A língua e a cultura de um país estão tão fortemente relacionadas que se evidenciam nas formas de ver e de dizer de seu povo. Assim é que, se fizermos uma breve retrospectiva histórica, encontraremos as lutas de nosso escritores românticos no século XIX, por uma libertação dos moldes portugueses, tanto no que se refere à língua, quanto ao estilo literário. Questão retomada, em outra situação histórica, pelo Modernismo que ainda enfatizava o uso e da Língua Portuguesa relacionado à cultura brasileira , insistindo na busca de nossa identidade.

Sabemos que a discussão das questões do ensino de língua portuguesa quer como língua materna, quer como língua estrangeira, deverá privilegiar sob uma perspectiva que enfatize a relação entre a língua e a cultura.

Entendemos que, no ensino /aprendizagem da língua, o ato de fala e o ato interpretativo pressupõem a competência do locutor/ouvinte de acordo com as expectativas sociais do diálogo, levando-se em conta que as formas lingüísticas são delimitadas pelas condições produção e de interpretação dos enunciados nos contextos de uso.

As estratégias para o ensino da língua portuguesa devem ser discutidas, portanto, com base na idéia de que uma cultura nacional congrega inúmeros significados no sistema de representação de uma dada identificação e que o homem se constitui na cultura.

Esta abordagem de ensino para brasileiros e para estrangeiros, implica a vinculação do estudo da língua portuguesa à cultura brasileira (aspectos sociológicos, antropológicos, históricos, artísticos etc.), privilegiando o espaço da sala de aula como o lugar da construção de um conhecimento compartilhado, enfatizando as atividades de leitura e interpretação de texto em que se associam palavra e imagem.

Para brasileiros, tal abordagem insistirá na necessidade de investimento no conhecimento de mundo partilhado como forma de inserção do aluno na cidadania, com um sentimento de pertença; para estrangeiros, o ensino/aprendizagem da língua promoverá uma nova forma de observar, descrever e perceber uma outra visão de mundo.

É bom trazer para abonação dessa perspectiva as idéias de Alencar (século XIX) e de Mário de Andrade (século XX) - dois discursos fundadores de nossa nacionalidade - , tentando fazer coincidir seu leitor (ouvinte) real com a virtualidade de uma identidade criada pela linguagem. O discurso da cultura nacional se caracteriza por construir identidades desde o passado (mesmo mítico) até o futuro, em processo contínuo. Staurt Hall (Hall, 2000) mostra que a narrativa de uma cultura nacional pode ser desenvolvida de várias maneiras: nas histórias e nas literaturas nacionais; na ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade; na invenção de uma tradição; no mito fundacional; na idéia de um povo original. A idéia de uma cultura nacional congrega inúmeros significados no sistema de representação de uma dada identificação.

O imaginário nacional não se nutre da natureza, mas da cultura. O homem também não se constitui na natureza, mas na cultura. A busca, portanto, da compreensão das formas de produção de sentido em dada sociedade, baseada na concepção da natureza interdiscursiva da palavra e, por extensão, da linguagem, nos impele a entender a constituição da significação como um processo cultural que se dá entre os indivíduos, isto é, no compartilhar de uma ideologia. Dessa forma, o seguinte trecho de Bakhtin (BAKHTIN, 1995: 38) será esclarecedor de nossa argumentação:

Nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade de consciência verbalmente constituída. A consciência tem o poder de abordá-lo verbalmente. Assim, ondas crescentes de ecos e ressonâncias verbais, como as ondulações concêntricas à superfície das águas, moldam, por assim dizer, cada um dos signos ideológicos. Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhado de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação.

Lembramos a seguinte passagem do próprio Alencar, em que a idéia de interação e de pertencimento sociocultural do homem estão, de forma magnífica, postos na metáfora:

O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera? (ALENCAR, 1960: 498)

Observemos as duas representações: chupar - extrair com a boca, ir direto, de forma sensual, e sorver - haurir ou beber aspirando, lentamente, de modo mais distante.

Aquele que fala (re) produz, no discurso, uma dada realidade representada. Faz nascer o acontecimento e sua experiência do acontecimento. Pelo exercício da linguagem se faz a troca e o diálogo, estabelecendo para o discurso uma função dupla: para o locutor , a possível representação de uma dada realidade e, para o ouvinte ( leitor), a possível recriação dessa representação enunciada. Então, língua, sociedade e cultura são solidárias. Da língua participam a História e a cultura que a constituem e de que ela é ao mesmo tempo produtora. A seguinte passagem de Benveniste consolida o pensamento que vimos desenvolvendo:

De fato é dentro da, e pela língua que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente. O homem sentiu sempre - e os poetas freqüentemente cantaram.- o poder fundador da linguagem, que instaura uma realidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que ainda não existe traz de volta o que desapareceu. É por isso que tantas mitologias, tendo de explicar que no início dos tempos alguma coisa pôde nascer do nada, propusera como princípio criador do mundo essa essência imaterial e soberana , a Palavra. (BENVENISTE, 1976: 27)

A linguagem, instaurando o diálogo permanente entre o indivíduo e a sociedade, mobiliza sentidos já dados e os transforma, conforme a prevalência de determinadas injunções sócio-históricas.

A recuperação histórica permite-nos, agora, esclarecidos alguns fundamentos sobre a relação língua/cultura, pensar sobre o ensino de língua portuguesa como língua estrangeira. Entendemos, pois, que o ensino da língua não se realiza separadamente da cultura que ela representa, portanto, do modo e do jeito de fazer coisas, de ocupar os espaços físicos e sociais, das formas de socialização. Este ensino, ao mesmo tempo, deve considerar a visão de nossos alunos estrangeiros, provenientes de outras culturas, sobre a realidade brasileira que começam a vivenciar. Esta abordagem de ensino para brasileiros e para estrangeiros, implica a vinculação do estudo da língua portuguesa à cultura brasileira ( aspectos sociológicos, antropológicos, históricos, artísticos etc.), privilegiando o espaço da sala de aula como o lugar da construção de um conhecimento compartilhado, enfatizando as atividades de leitura e interpretação de texto em que se associam palavra e imagem.

Como num jogo de espelhos, as diversas culturas representadas na sala de aula entram em contato em busca de reconhecimento de identidades nacionais específicas e de uma compreensão mais profunda em nível humano, realizando uma troca de experiências de vida e modos de ser diferentes, conduzida pelo fio da língua - o código que perpassa toda a linguagem.

Entendemos que um professor de Língua Portuguesa (materna ou para estrangeiros) é alguém capaz de ler e de interpretar a realidade brasileira em suas várias instâncias de significação, pois a língua, efetivamente, como linguagem, medeia e configura a relação homem e mundo.

Os alunos sentem-se parte integrante deste processo, na medida em que refletem sobre si mesmos e sobre o “diferente” na prática de uma “nova língua” representativa de outra cultura. Vejamos, a seguir, um olhar observador e que, qual espelho, nos devolve nossa imagem em ‘zoom’, ao mesmo tempo que lança luz para que vejamos melhor este mesmo olhar que nos olha: propusemos aos alunos que fizessem observações sobre aspectos de nosso modo de ser mais relevantes para eles, naquele momento.

Vejamos, como exemplo, pequenos trechos escritos por alunos estrangeiros do Curso do Instituto de Letras da UFF:

Os brasileiros são mais simpáticos. Quando eu pergunto algum coisa, eles respondem muitas coisas, mesmo que eles não soubessem sobre isso. N. (Japão)

As pessoas são muito calorosas, eles me ajudam sempre. M. (USA)

Na Europa, a prosperidade e a seguida independência matou a cordialidade, não está mais normal viver junto com a familia, ajudar os membros velhos da familia. Os brasileiros ainda sabem viver em grupo, os problemas estão solvendo junto. Solicitude verdadeira existe. M (Alemanha)

Na seqüência, ilustramos outro tipo de exercício proposto ao grupo após a leitura de um trecho do livro de Roberto DaMata O que faz o brasil, Brasil?

Lançamos a seguinte proposta: para você, o que faz o brasil, Brasil? Ao desenvolver seu texto, apresente aspectos específicos de nossa cultura observados por você e que caracterizem o Brasil. Observemos como os olhares diversos captam nossas características culturais:

TEXTO 1

A primeira coisa, eu acho que faz o brasil , Brasil é a mestiça dos povos índios, africanos e europeus. Portanto, a cara de um brasileiro pode ser de qualquer forma, ou a pele de qualquer cor. Também por causa dessa mestiça, a comida aqui é bem única de tal maneira que existe um tipo de comida que pode ser chamada comida brasileira. Para mim, a situação religiosa aqui é bem destacada também. Embora haja a presença forte do catolicismo, até mais forte são as crenças em coisas místicas que até influenciam as próprias religiões cristãs. Mas um aspecto que faz o brasil, Brasil é a questão de divertimento. Eu acho que os brasileiros gostam muito de se divertirem. (W. Caribe)

Em referência aos aspectos que nos constituem como uma identidade nacional, também podemos elaborar toda uma unidade sobre as frases de caminhão que marcam características fortes de dado tipo social - o motorista e sua marca registrada em nossa cultura.

Observemos algumas legendas de caminhão que podem ser importantes textos a cumprirem a função de desestrangeirizar a nossa língua, possibilitando ao aluno conhecer e interpretar um outro olhar constitutivo de uma outra realidade. A filosofia dessas legendas, de certa maneira, também explicam o que faz o brasil, Brasil. Estas frases permitem ainda o estudo sistemático de algumas questões gramaticais que devem ser explicitadas, tanto no nível da coesão frásica ( concordância verbal e nominal no nível dos sintagmas oracionais e suboracionais), quanto no da coesão interfrásica (processos de seqüencialização dos tipos de interdependência semântica através de dois processos: a paratax ou coordenação (“colocar ao lado de”) e a hipotax (“colocar sob”) ou subordinação (cf. DUARTE, 2003: 86-123.). Pela ironia, passamos a reconhecer o lado irreverente e bastante informal do povo brasileiro. Vejamos o seguinte recorte apenas como ilustração:

Quem gosta de velho é museu.

O homem nasce, cresce , fica bobo e casa.

Beijo de menina contém vitamina.

Não sou pipoca mas pulo um pouco.

Mulher é como índio, se pinta, quando quer guerra.

Entre a loura e a morena, prefiro as duas.

Casa onde mulher manda, até o galo bota ovo.

Batida só de limão.

Se você bebe para esquecer, pague antes de beber.

Pobre só come carne, quando morde a língua.

Adoro a sogra da minha mulher.

Não me dê palpite, sei errar sozinho.

Não buzine, levante mais cedo.

Quem ama a rosa, suporta o espinho.

O que tem de ser, será.

O coração sofre em silêncio.

Ninguém é de ninguém.

A esperança é o sonho do homem acordado.

A vida é curta, não a torne menor.

Deus me traz, Deus me leva.

Amor não conhece fronteira.

Seis pneus cheios e um coração vazio.

Saudade - sete letras que choram.

Coração é terra que ninguém pisa.

“Tudo passa sobre a terra.”

Dentre os textos que propiciam o trabalho com a identidade cultural brasileira, destacam-se também os provérbios com seu valor de estabelecer um contraponto com a cultura portuguesa, ao retomar certas idéias sob novo viés ideológico, criando verdadeiros clichês culturais brasileiros. Em aguda pesquisa, Regina Célia P. da Silveira (SILVEIRA,1998) destaca a constituição da diversidade cultural brasileira em face de uma unidade fundadora portuguesa. Este, processo segundo a autora, tem início com a chegada dos portugueses ao Novo Mundo pela decorrência da constituição de novas percepções e representações do real. O inusitado da vivência, em contexto tão diverso do europeu, acaba por produzir novos sentidos, enunciados por novos clichês. Assim, diferentes práticas sociais vão sendo lingüisticamente formuladas em discursos que dialogam historicamente com a matriz portuguesa. A partir desse pressuposto, a pesquisadora sugere uma oposição entre

“unidade fundadora “diversidade modificadora”:
(Paciência) Devagar se vai ao longe (Rapidez) Cobra que não anda não engole sapo
(Moderação) Quem tudo quer, tudo perde (Ambição) Querer é poder
(Paz) Quem semeia vento colhe tempestade (Embate) Sem luta não há êxito Lutar com unhas e dentes
(Aceitação) Quem espera sempre alcança (Expediente) Se não batalha não tem
(Prudência) Quem vai ao vento perde (Temeridade) Quem não arrisca não petisca

Com criatividade, através dos provérbios, de frases feitas, das frases de pára-choque de caminhão, os brasileiros vão exteriorizando uma auto-imagem irreverente, contribuindo para confirmar alguns estereótipos de nossa maneira de ser.

As representações do mundo vão sendo continuamente ressignificadas em função das visões, por vezes tão diferenciadas, próprias a uma sociedade multicultural como a brasileira; tomem-se como referência as letras de nossas canções populares que freqüentemente desfazem ou ratificam significados, retomando os clichês. Exemplo flagrante é a letra de “Bom conselho” de Chico Buarque de Holanda:

Ouça um bom conselho

Eu lhe dou de graça

Inútil dormir

Que a dor não passa.

Espere sentado e você se cansa:

Quem espera nunca alcança

Vim não sei de onde

Devagar é que não se vai longe.

Eu semeio o vento, na minha cidade

Vou pra chuva e bebo a tempestade

Como sabemos, a contextualização no ensino de língua portuguesa, abarcando textos de diferentes linguagens ( cartuns, charges, quadros, provérbios, publicidade etc etc), ressaltando aspectos diversos de nossa cultura, tem sido, ao longo do tempo, reiterada pela lingüística aplicada e na prática da sala de aula de professores atentos à própria abordagem e à plausibilidade do método por que pautam seu trabalho.

Os aspectos destacados nessa reflexão sobre as interfaces culturais no ensino de língua portuguesa demonstram a importância e a riqueza de possibilidades para o tratamento da identidade brasileira, através de práticas discursivas reativadas de geração a geração. Dessa forma, com o olhar crítico sobre nós mesmos, poderemos entender um pouco melhor o olhar que nos olha. E trazendo para as salas de aula a vivacidade desses textos, estaremos, sob uma perspectiva interculturalista, discutindo aspectos de unidade e diversidade não da língua portuguesa, como também da cultura brasileira tão rica de aspectos contrastantes.

Realmente, os modos de ver e os modos de dizer de uma comunidade estão entrelaçados e constituídos pela cultura, de tal modo que no Brasil pode-se produzir uma legenda de caminhão como esta: Mulher é como índio, se pinta, quando quer guerra.

BIBLIOGRAFIA

ALENCAR, José de. Bênção paterna, prefácio a Sonhos douro. Obra completa. Vol. I. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.

BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1995.

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral São Paulo: Cia. Ed. Nacional; Edusp, 1976.

DUARTE, Maria Inês. Aspectos lingüísticos da organização textual. In: MIRA MATEUS, Maria Helena et al. Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

GOMES, Abeylard Pereira. Legendas de caminhão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

Matta, Roberto da. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

SILVEIRA, Regina Célia P. da (org.) Português língua estrangeira. Perspectivas. São Paulo: Cortês, 1998.