Lidando com o novo
produção de material didático
para a leitura em E/LE

Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque (UERJ)

Há alguns anos lido com a Prática de Ensino de Língua Espanhola como Língua Estrangeira na UERJ e o relato a seguir estará baseado nessa experiência.

Durante o segundo período de Prática, denominada Prática IV, os alunos recebem um conjunto de tarefas a serem realizadas durante a vigência da disciplina. Dentre essas tarefas, há o trabalho com textos e, mais especificamente, com a produção de material didático visando a compreensão leitora.

Antes, porém, de os alunos iniciarem suas tarefas, há um conjunto de aulas teóricas em que busco dar embasamento para que se compreenda o tipo de trabalho que deverá ser desenvolvido.

Além dessa parte teórica, discute-se sobre o material presente em livros didáticos, seja para alertar quanto aos problemas existentes, seja para mostrar trabalhos bem desenvolvidos nessa área e que deveriam servir como exemplos a serem seguidos, como é o caso do livro Síntesis da SGEL.

Essa pausa para a reflexão, no entanto, nem sempre alcança o seu objetivo, que é o de elaborar um bom material que possa ser utilizado em sala de aula. Na maioria das vezes, o que se vê é a busca pelo mais fácil:

a) perguntas que são absurdas.

b) perguntas com respostas óbvias;

c) perguntas puramente gramaticais (e para as quais o texto é desnecessário); ou

d) perguntas que escapam ao texto, ou seja, que buscam saber a opinião do leitor sobre o assunto.

O fato é que, para muitos dos alunos, o novo é uma barreira a ser vencida. E é novo porque não é o que se vê na maioria dos livros didáticos, ainda que o trabalho baseado na leitura interativa já exista há mais de 10 anos.

A justificativa para preparar um material com problemas, em geral, é coincidente entre os vários alunos: ”é o que há nos livros didáticos”; “só sei fazer desse jeito”; “acho difícil fazer diferente”; “todo mundo faz assim”, ou algo semelhante.

São argumentos interessantes, até porque se baseiam no que conhecem, no que já viram. Mas como tais argumentos não justificam os equívocos cometidos e devido ao fato de o trabalho a ser realizado corresponder a uma avaliação (nota), os alunos se predispõem a melhorar o que produziram.

Essa não é uma tarefa simples. Nem para eles que terão de reconstruir o que fizeram nem para mim, que terei de ler e reler o trabalho, apontar os problemas e indicar possíveis alterações, sem que isso se torne uma produção minha.

O meu papel é o de fazer crítica construtiva; é o de tentar tornar evidente porque determinadas perguntas propostas não condizem com a proposta de compreensão leitora. É fazer com que o aluno-mestre perceba a fragilidade da sua pergunta, que muitas vezes independe do texto para ser respondida. É lembrá-lo do fato de a leitura do título ou do resumo ou a presença de uma foto, aliada à inferência e ao uso de estratégias, ajudam o leitor a responder a certas questões mal elaboradas sem que tenha de se ater ao texto.

Ora, se o objetivo é avaliar a compreensão do texto, de que serve uma pergunta que não irá avaliar? Ou seja, vale a pena fazer uma pergunta apenas para constar?

Para que se entenda melhor o que estou dizendo, apresentarei alguns exemplos de tipos de questões elaboradas por alunos, antes de terem sido refeitas:

Questões absurdas ou
“Se fazem por aí, por que eu não posso fazer?”

1) Em um texto sobre o atentado contra as torres gêmeas (World Trade Center), o aluno-mestre perguntava, por exemplo, se uma das causas de a Torre de Controle não ter percebido o que estava acontecendo com um dos aviões não teria sido em função do piloto desconhecer o número do seu vôo.

Ao elaborar esta questão, o aluno-mestre desconsiderou a importância do conhecimento de mundo. Para um piloto, desconhecer o número do vôo que pilota é o mesmo que dizer que ele desconhece a rota do seu vôo. É o mesmo que perguntar a um motorista de ônibus o itinerário e ele responder que não sabe por desconhecer o número da linha e, conseqüentemente, o percurso a ser feito.

2) Em outro texto, sobre doação de órgãos, uma das opções da múltipla escolha indagava se o transplante iria ocorrer pelo fato de a pessoa apresentar algum problema de saúde.

Nesse caso, para justificar a existência de opções absurdas se dava porque, segundo o aluno-mestre, elas também aparecem em provas de vestibular. Esse aluno-mestre não questionava o mérito de uma opção absurda e que, por ser eliminada prontamente, era inútil;

3) Em um texto que falava de um incêndio que havia atingido uma mata próxima a uma cidade espanhola, perguntava-se por que até aquele momento não se teria apagado os focos de incêndio. Uma das opções de resposta dava a seguinte justificativa: “Não há vento para ajudar a combater os focos”.

Trabalhar com essa opção significa desconsiderar o conhecimento de mundo de um aluno, já que o vento ajuda a propagar um incêndio. Segundo o aluno-mestre, ele “tinha de fazer mais uma opção e não sabia o que escrever”..

4) Num texto sobre a Tomatina de Buñol, o aluno-mestre apresentou as seguintes opções:

La primera batalla de tomates de Buñol fue promovida por:
a) los vecinos de Buñol b) General Franco c) Los concejales de Buñol d) Los hermanos Marx

Ainda que no texto ficasse claro que a festa da Tomatina foi proibida durante o período em que Franco esteve no poder, o fato é que essa questão parte da premissa que o aluno desconhece quem tenha sido o ditador. Se o ensino de língua espanhola vai além do ensino de gramática, é de se esperar que tal informação seja dada ao aluno, dentro da questão ou pelo menos em forma de rodapé, e não como uma possível pegadinha. O mesmo argumento serve para a opção (d), os “Irmãos Marx”.

5) Para finalizar essa primeira bateria de tipos de questões, eis o que foi elaborado por um aluno-mestre sobre o texto no qual se via uma foto de duas recém-nascidas enfaixadas, e que apresentava o seguinte título: “Las Mariítas ya están separadas”. Uma das propostas apresentadas dizia respeito ao título, partindo do pressuposto que o leitor se fixaria apenas e tão-somente no título:

El título nos informa que:
a) las hermanas cantantes “Las Mariítas” se pelearon y se separaron; b) las hermanas no estudian en la misma escuela; c) las hermanas son médicas y hicieron cirugías en hospitales distintos. d) las hermanas siamesas guatemaltecas hicieron la cirugía y ya están sepa radas;

Aqui há vários erros, mas talvez: o mais grave seja o fato de se desconsiderar a foto e o texto, como se para responder a questão se tivesse de esquecer o que se leu.

Esses 5 exemplos nos mostram o “descompromisso” que o futuro profissional tem com a leitura de um texto e o trabalho de compreensão leitora. Prefere por isso elaborar, a princípio, qualquer coisa para se ver livre da tarefa, ou não pensa no potencial de seu futuro aluno, ou prefere encontrar material pronto a elaborar o que quer que seja, ou se pauta no erro de outros. Tudo isso porque “dá trabalho elaborar pergunta”.

Questões inocentes ou “Há muito livro didático com esse tipo de pergunta”.

1) Em um texto cujo título era “Las jóvenes españolas, las más fumadoras”, havia a seguinte frase:

Los estudios más recientes, indican las mismas fuentes, revelan que en los últimos 20 años se ha multiplicado por tres el porcentaje de mujeres fumadoras”, Eis o que dizia a questão proposta:

Los estudios más recientes revelan:
a) Que en los últimos 40 años se ha multiplicado por tres el porcentaje de mujeres fumadoras. b) Los estudios más recientes revelan que el número de mujeres fumadoras va a más de un millón. c) Los estudios más recientes, indican las mismas fuentes, revelan que en los últimos 20 años se ha multiplicado por tres el porcentaje de mujeres fumadoras.

A pergunta que se faz é “por que razão se perdeu tempo para elaborar as outras opções (que também apresentam problemas), já que se deu de presente a resposta, com uma frase idêntica à que se encontra no texto?”

A justificativa dada para a elaboração desse tipo de questão é que elas estão presentes nos livros didáticos.

Realmente, em vários livros didáticos encontramos situações semelhantes. É possível, por exemplo, se deparar com um texto em que figure a seguinte frase: “Juan trabaja en una oficina”. É possível também, ao final do texto, encontrar uma série de perguntas, e dentre elas, muito provavelmente, a pergunta: “¿Dónde trabaja Juan?”

O fato é que tal questão não avalia a compreensão leitora,. É uma pergunta de cunho meramente estrutural. O aluno é capaz de responder “Juan trabaja en una oficina”, porque está escrito no texto, ainda que ele não tenha a mínima idéia do significado da palavra “oficina”.

É bom que se entenda que eu não estou aqui afirmando ser necessário entender todas as palavras presentes num texto para que ele se torne compreensível. O que estou dizendo é que a tarefa do aluno deixará de ser voltada para a compreensão leitora e corresponderá a um mero reconhecimento estrutural. E no caso do Espanhol, por ser uma língua transparente ao falante de português, esse tipo de questão perde o sentido até mesmo para se trabalhar estrutura.

Questões de achismo ou
“É importante saber a opinião do aluno”

Para um texto que discutia a PAZ SOCIAL, um aluno-mestre elaborou a seguinte questão: “¿El editorial cobra una reacción de cuáles segmentos de la sociedad? ¿Estás de acuerdo con él? Justifica tu opinión”.

Esse tipo de questão é bastante freqüente e o aluno-mestre, em geral, se surpreende quando, pela primeira vez, eu digo que essa pergunta não mede a compreensão leitora. Isso se dá porque é o que ele mais encontra nos livros didáticos. E é de se esperar que a maioria esteja correta e não uma professora de Prática de Ensino.

Tento explicar, no entanto, que esse tipo de pergunta é interessante e merece ser feita, mas o professor tem de ter claro que a resposta para essa pergunta não se encontra no texto, nem nas entrelinhas, logo não mede a compreensão leitora. A opinião do leitor sobre o texto extrapola o próprio texto; o texto passa a ser o pretexto para uma discussão, um debate, o que sempre é bem-vindo. Mas... não se trata mais de compreensão leitora.

Perguntas gramaticais ou “Por que não pode?”

a) O texto trabalhado pelo aluno-mestre era sobre um gol anulado num jogo da Copa de 2002. Eis a questão proposta:

La palabra escándalo está acentuada porque: a) Es una palabra aguda, todas las agudas son acentuadas b) Es una palabra esdrújula y todas son acentuadas c) Es una palabra sobresdrújula y todas las sobresdrújulas son acentuadas d) Es una palabra grave y todas las graves son acentuadas

Sem entrar no mérito de a questão estar avaliando ou não o conhecimento das regras de acentuação, afirmar que esse tipo de questão não é válido para o trabalho com compreensão leitora é receber, quase sempre, do aluno-mestre a clássica pergunta: “Por que não pode?” E essa pergunta permanece durante um longo período, mesmo quando se mostra que se trata de uma pergunta meramente gramatical e que o texto só está servindo de pretexto. E o que é pior: nem é preciso ler o texto para responder a pergunta.

Fazer com que o aluno-mestre entenda a diferença entre esse tipo de questão e uma questão que trabalhe a gramática textual já são outros quinhentos.

b) Para que fique mais clara tal diferença, eis um outro texto cujo assunto era sobre Gardel:

En: “ Para un fanático puede quedar cierto gusto a poco, pero como primera aproximación a Gardel no está nada mal.” La frase se refiere a:
a) al documental b) la opinión de José Razzano c) la cantidad de testigos d) su nacionalidad

Nesse caso o que se busca é verificar se o leitor é capaz de lidar com elos coesivos. Para respondê-la, é necessário voltar ao texto E com isso, ela já se diferencia de uma questão meramente gramatical., Esse tipo de questão costuma ser feita em espanhol, até porque está voltada para reconhecimentos.

c) Outro exemplo de como se pode trabalhar a gramática textual, encontra-se a seguir, num texto que falava sobre a Amenaza Nuclear:

El primer párrafo está dividido en dos frases. La relación existente entre ellas es:
a) la segunda niega la primera b) las dos se oponen c) la segunda es una consecuencia de la primera d) las ideas de las dos son contradictorias e) las dos se completan

d) Ainda, no mesmo texto, o aluno-mestre elaborou a seguinte questão:

En la frase “...es demasiado pronto para celebrarlo” (2º párrafo), el pronombre subrayado se refiere a:
a) fin de la guerra fría b) caída del muro de Berlín c) la suspensión del peligro nuclear d) enflaquecimiento del comunismo e) la tregua entre las superpotencias

Nesses 3 últimos exemplos (b-d), houve a preocupação de elaborar questões que remetessem o leitor ao texto para poder respondê-las e no caso do exemplo (d), saber reconhecer a qual das opções (todas presentes e anteriores à frase destacada na questão) se referia o pronome.

Essa preocupação também deve existir em questões que visam trabalhar o vocabulário. Há diferença entre dar a sinonímia e entender o significado de um vocábulo num determinado contexto, sem que para isso seja necessário traduzi-lo. É o que se pode observar no próximo exemplo.

e) Este exemplo foi retirado de um texto que falava sobre as crianças que vivem nas ruas.

“La mayoría son adictos a inhalantes <http://www.casa-alianza.org/ES/street-children/glue/>, tales como el pegamento de zapatero o los solventes industriales, que les ofrecen un escape de la realidad y se lleva lejos su hambre - a cambio de dar hospedaje a problemas físicos y psicológicos...” La locución “a cambio de” puede ser interpretada como:
a) en cuanto tiene oportunidad. b) sustitución de una cosa por otra. c) por el contrario. d) en vez de ello. e) tener como contrapartida.

A busca do sinônimo pretende testar o grau de conhecimento de língua, enquanto o entendimento do significado do vocábulo se direciona para o que entendemos por inferência. Nesse caso, dentre os vários significados possíveis de “cambio”, o aluno teria de escolher aquele que melhor se adequasse ao texto.

Ainda que de modo impreciso, é possível ter idéia do significado de um vocábulo e se conseguir apreender a idéia geral de um texto, sem que haja maiores danos.

É mais importante verificar se o aluno sabe lidar com as estratégias de leitura do que cobrar o significado preciso de uma palavra.

Conclusão

A cada um dos problemas aqui relatados, foi feito um trabalho de reelaboração do material apresentado. E eu acredito que dar a oportunidade ao aluno de ele refazer o seu trabalho, não apenas lhe garante uma melhor nota, mas lhe dá a oportunidade de aprender a se auto-questionar sobre a qualidade do que elabora

Se, por um lado, há uma certa resistência inicial em refazer o trabalho, por outro, à medida em que o ato de refazer acontece, percebe-se uma nítida melhora não só no material mas na consciência do que significa trabalhar a compreensão leitora.

Ver nos alunos-mestres esse crescimento é que me deu a certeza de eu estar no caminho correto. Importante também foi perceber que mais do que teorias sobre o assunto, o que valeu foi a parte prática: a elaboração das perguntas, as discussões sobre as falhas existentes e a reelaboração contínua até chegar a um produto final de boa qualidade.

Com esse trabalho, espero ter contribuído para trazer um pouco de reflexão sobre o assunto.