A LITERATURA HISPANO-AMERICANA
COMO VIA DE TRADUÇÃO CULTURAL

Rita de Cássia M. Diogo (UERJ)

O presente trabalho tem como objetivo analisar a narrativa hispano-americana como um espaço de tradução cultural. Tradução esta que surge a partir da constatação, por parte de seus escritores, da profunda assimetria cultural existente entre os países pós-coloniais e as que um dia foram as suas respectivas matrizes imperiais.

No que se refere à literatura, somente no século XIX, é que o nicaragüense Rubén Darío inverterá pela primeira vez a rota cultural dos países ocidentais, levando para a Europa o desejo de renovação e de liberação encarnado no Modernismo, um movimento literário que passaria a refletir através da palavra todo o potencial criativo da América Hispânica recém-independente. A partir de então, a literatura hispano-americana lutará por consolidar esta nova rota, num esforço que culminará em torno dos anos 60 com o conhecido fenômeno do “boom”, reunindo em torno da literatura fantástica autores de diferentes países, tais como o colombiano Gabriel García Márquez, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, e o mexicano Carlos Fuentes.

Por outro lado, o sucesso e o reconhecimento do valor desta literatura colocará em evidência um outro tipo de defasagem, qual seja, a distância entre a excelência de nossas produções culturais e a nossa já consabida debilidade política. Uma constatação que levará os escritores hispano-americanos a dar continuidade ao que já havia se transformado numa tradição: a estreita relação entre literatura e política. Estamos nos referindo aqui ao que Carlos Fuentes chama de “crítica da cultura” (FUENTES, 1992: 12), o que também poderíamos chamar de tradução cultural, ou seja, fazer da ficção um espaço de representação da diferença entre “o que se diz” e o que efetivamente “se quer dizer”, entre o discurso monológico da historiografia ocidental e o discurso dialógico e plural inerente a toda cultura.

Consciente da insuficiência da linguagem, podemos dizer que a literatura hispano-americana luta por aproximar-se do que Walter Benjamin chama de “linguagem da verdade” (BENJAMIN, 1994: 292), latente no esforço de tradução. Ou seja, por trás do jogo entre o original e o texto traduzido, existe o desejo inconsciente de alcançar a “língua pura”, e por meio desta, resgatar uma era de plenitude, na qual os homens se compreendiam mutuamente e viviam em completa harmonia. Um desejo que se reflete no texto fantástico através do movimento oscilatório entre o “eu” e o “outro”, ou ainda, entre um suposto original e a sua tradução, convertendo assim a temática do “duplo” no centro desta narrativa.

Neste sentido, a tradução cultural empreendida pelos escritores hispano-americanos situa-se entre a cultura ocidental, seus códigos e valores, e a cultura pré-hispânica e/ou a cultura oriental, preenchendo um espaço intersticial, que reflete algo maior: o desejo de completude. A prática tradutória se revela assim em sua dupla vertente: como a busca de uma linguagem pura, por meio da qual se alcançaria, então, uma cultura plena. Aludindo à imagem benjaminiana, a multiplicidade cultural da América Hispânica é como os fragmentos de um cântaro quebrado (Ibid, p. 293.), que apesar de diferentes entre si, se correspondem enquanto partes de um todo, cabendo ao escritor/tradutor resgatar a sua unidade através da tradução.

A tradução nos estudos de Benjamin está diretamente relacionada com o seu conceito messiânico de história: ao contrário da concepção linear e da idéia de progresso, o autor nos fala do “instante messiânico”, de um tempo saturado de “agoras” (BENJAMIN, 1985: 229-31), cuja tensão entre os fragmentos de diversos espaços-tempos faz explodir o continuum da história. Do mesmo modo, veremos que na narrativa fantástica, presente, passado e futuro se fundem na emergência do fato insólito, que interrompe o fluxo do tempo, fazendo com que o caos e a multiplicidade prevaleça sobre a ordem, revelando a falácia dos conceitos de pureza e de unidade da cultura ocidental.

A fim de ilustrá-lo, gostaríamos de fazer uma breve apresentação de três contos fantásticos hispano-americanos: “Las dos orillas” (FUENTES, 1993: 11-61), de Carlos Fuentes, “El perseguidor” (CORTÁZAR, 1991: 79-143), de Julio Cortázar e “La biblioteca de Babel” (FUENTES, 1993: 11-61), de Borges.

O conto “Las dos orillas” faz parte da coletânea intitulada El naranjo (A laranjeira), obra na qual o autor busca o sentido da história da América Hispânica ao traduzir os múltiplos ramos de sua árvore genealógica. De fato, as sementes da laranja, presentes em cada um dos cinco contos que compõem este livro, atravessam as fronteiras do tempo e do espaço, reunindo ao seu redor os fragmentos da herança cultural hispano-americana, inserindo assim os diferentes textos que participaram da sua formação em novos contextos.

Através do título do conto em estudo, (em português, “As duas margens”), Fuentes já nos adianta uma de suas características chave, a de desenvolver-se em meio a dois territórios específicos: o Velho e o Novo Mundo, a partir de agora unidos pela ponte da criação literária, o “entre-lugar” pelo qual transitará esta narrativa enquanto espaço de tradução cultural.

O protagonista e narrador da história, Jerónimo de Aguilar, soldado que efetivamente fez parte da expedição de Cortês na conquista do México, assumirá por um determinado tempo o papel de tradutor da língua maia para o espanhol, cabendo-lhe assim a responsabilidade de cruzar as margens que separam a cultura hispânica da pré-hispânica.

Ao perceber-se como elemento fundamental desta empresa, já que nada restava aos demais senão curvar-se às suas versões, o narrador experimenta uma certa sensação de poder e descobre a força transformadora das palavras.

Evidenciando o que Benjamin chama de o “parentesco dos idiomas” (BENJAMIN, 1994:. 289), suas traduções vão muito além “do entendido”, onde todas as línguas são idênticas, privilegiando a “forma de entender”, espaço de contradições e ambivalências, no qual os idiomas se excluem ao mesmo tempo que se complementam. Assim, quando Cortês convida Guatemuz, o último imperador dos astecas, a assumir o governo do México, a tradução literal do espanhol ao maia jamais se converteria em elemento de revelação. No entanto, nosso narrador-tradutor conhece profundamente a mentalidade do mundo espanhol, seu modo de entender as palavras, e acima de tudo, seu modo de jogar com elas. Aguilar traduz aquele convite da seguinte forma: “Serás meu prisioneiro, hoje mesmo te torturarei, queimando-te os pés, como a teus companheiros, até que confesses aonde está o resto do tesouro de teu tio Montezuma...” (EN, p. 18)

O fato é que entre a verdade e a mentira, entre a história e a ficção, sua tradução profetiza e adianta a realidade. Neste sentido, estamos também diante do poder revelador da palavra criadora, do empenho de Fuentes por realizar a crítica da cultura como forma de superar todos os espelhismos e desenganos da história ibero-americana. Autor e narrador se identificam então enquanto “tradutores-traidores”, construtores do discurso da “contra-conquista” que, se por um lado “trai” a versão oficial da história ocidental, por outro, a revela em suas ambigüidades e contradições, rompendo com a sua falsa unidade; mais adiante, o narrador confirma: “O jovem imperador foi o rei da zombaria, arrastado sem pés pela carruagem do vencedor (...) Aconteceu exatamente o que eu, mentirosamente, inventei.” (EN, p. 20) Como propõe Silviano Santiago, aqui a tradução realiza o que ele chama de “desvio da norma”, um movimento de reação da América Latina, que antropofagicamente deve assimilar e agridir as imposições do imperialismo cultural, marcando sua presença no mundo ocidental.

Transferindo as noção benjaminiana de linguagem adâmica para a esfera cultural, podemos dizer que Aguilar vislumbrou nos vazios e lacunas das culturas espanhola e indígena os possíveis fragmentos de um todo, de uma cultura superior, que longe de obedecer a esquemas rígidos de interpretação, está em contínua mudança, num perpétuo movimento de desconstrução e construção, abrindo espaço para novas histórias, convidando-nos a resgatar a experiência perdida e a prosseguir no caminho sempre fluido da narração.

Como já observamos, acreditamos que a prática da tradução cultural na literatura fantástica está diretamente relacionada com uma de suas temáticas principais: a presença do “duplo”, que se em Carlos Fuentes se viabiliza através do jogo com a diferença entre história e ficção, em Cortázar se realiza por meio do movimento oscilatório entre a realidade cotidiana e a imaginação, como forma de criticar os automatismos da vida moderna ou aquilo que ele chama de “la Gran Costumbre”. Assim, em cada um dos cinco contos que compõem a coletânea intitulada Las armas secretas (CORTÁZAR, 1991? 114), percebemos a presença de elementos que de alguma forma interrompem o cotidiano de suas personagens, armas que fazem parte do mundo privado, guardadas em segredo, sobre as quais evita-se falar, pela própria impossibilidade de nomeá-las.

No conto “El perseguidor”, Julio Cortázar se inspira na biografia de Charles Parker para traçar o perfil de seu protagonista, Johnny Carter, de modo que aqui a arma secreta será representada pelo jazz. Este permiti-lhe transcender o “aqui” e o “agora”, aceder a um mundo outro, que o leva a intuir a verdadeira liberdade, a experimentar, ainda que só por alguns instantes, a simultaneidade de diferentes espaços e tempos, imerso numa total subjetividade. Oprimido em meio à uma identidade forjada pela mídia e a busca de um inalcançável original de si mesmo, o saxofonista se encontra ao mesmo tempo que se perde em sua música, tentando traduzir através de suas notas os signos de uma realidade que lhe parece sem sentido.

Nesta travessia entre o mundo referencial e o mundo de sua arte, entre o tempo cronológico e um tempo totalmente subjetivo, ou seja, entre a razão e a imaginação, Johnny segue numa perseguição sem fim, tentando decifrar os signos de uma realidade regida por códigos e normas sociais que nada dizem de si mesmo. Uma vida intervalar encarnada na temática do duplo, ou seja, no jogo entre o saxofonista e Bruno, narrador do conto em estudo. Assim, se por um lado, Johnny se volta para a linguagem do jazz a fim de encontrar uma saída para os comodismos da sociedade burguesa, o “outro”, crítico e biógrafo do artista, sente-se muito à vontade em meio ao discurso biográfico, cuja linguagem racional e linear, transmite-lhe uma aparente sensação de segurança, frente ao mundo caótico das sensações e impressões do jazzman. Por outro lado, ao mesmo tempo que a perseguição de Johnny implica a presença do mundo burguês de Bruno, também a ameaça constantemente, levando este último a questionar a sua própria vida, os seus valores e costumes, tal como podemos constatar nas palavras do narrador: “Cada vez parece mais difícil levá-lo (Johnny) a falar de jazz, de suas lembranças, de seus planos, trazê-lo à realidade. ( À realidade; só de escrevê-lo me da asco. Johnny tem razão, a realidade não pode ser isso, não é possível que ser crítico de jazz seja a realidade, porque então existe alguém que está brincando com a gente. Mas ao mesmo tempo, não podemos nos deixar levar totalmente por Johnny porque vamos terminar todos loucos.)”

Como vemos, neste esforço por traduzir-se, a si e ao “outro”, Johnny segue buscando entre as limitações da linguagem verbal e a linguagem sem fronteiras da música, a linguagem adâmica. Em sua prática de tradução intuía que deveria existir algo maior, outra língua, quem sabe uma terceira cultura, que pudesse complementar as imperfeições tão sentidas e sofridas pelo caráter profundamente crítico do jazzman. Por outro lado, esta prática se faz de forma eminentemente agressiva, levando tanto o protagonista, quanto a narrativa às margens do suicídio, em meio a um labirinto de imagens e palavras, de perguntas sem respostas, num sem-sentido que equivale à auto-aniquilação; analisando o estilo de Johnny, o narrador afirma: "Vejo aí o grande paradoxo do seu estilo, sua agressiva eficácia. Incapaz de se satisfazer, equivale a um alicate contínuo, uma construção infinita, cujo prazer não está no arremate, mas na reiteração exploradora...” (Ibidem, p. 105). Estamos pois, diante do traço antropofágico da prática tradutória hispano-americana, que assimila para desconstruir, a fim de dar forma a algo novo, cuja imperfeição levará mais uma vez à uma nova desconstrução, encontrando na busca o sentido da eternidade. Uma prática que nasce de culturas pós-coloniais, que se desenvolveram à margem da modernidade, e que entre o futuro e o passado, o que é e o que poderia ser, optam pelo “entre-lugar” da civilização ocidental.

O profundo cepticismo de Jorge Luis Borges se expressa, entre outras formas, por uma intensa crítica a todo tipo de essencialismo e absolutismo, desconstruindo noções que estão na base da sociedade moderna, tal como a idéia de originalidade, e por extensão, a existência de um “eu” único e individual.

Em El aleph, ao movimentar sua narrativa entre a cultura ocidental e a oriental, o escritor argentino tenta traduzir o mundo, apresentando-o em seu absurdo e irrealidade. No conto homônimo, el aleph é descrito como uma esfera de dois ou três centímetros de diâmetro, um ponto a partir do qual se podia ver todo o universo. Através deste objeto, o narrador consegue alcançar a simultaneidade, o infinito, que nos está vedado pela finitude e limitação, não só de nossos sentidos, mas também de nossa linguagem verbal, eminentemente sucessiva. Unindo espaço e tempo, el aleph é um ponto e também um instante, que reflete ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro, contrariando o mundo linear e cronológico, no qual nos foi dado viver. Tentando decifrar o que via, Borges se volta para o mundo oriental e afirma: “Os místicos, em análogo transe, prodigam os emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que de algum modo é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro caras que ao mesmo tempo se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul.” (BORGES, 1997: 191)

Em “La biblioteca de Babel”, este objeto chamado “aleph”, por meio do qual os distintos fragmentos do cosmos resgatam a unidade, encontra agora a sua representação na figura da Biblioteca. Este conto tem como pano de fundo a identificação, proveniente da cultura oriental, entre o Universo e o Livro, onde todos os mistérios do mundo, todas as perguntas do homem encontrariam a sua resposta. No entanto, esta Biblioteca é também um labirinto, cujas vias e desvios o homem é incapaz de percorrer, revelando-se como indigno da sabedoria do universo. Impossibilitada de encontrar o sentido da existência, a humanidade está, pois, destinada a viver como um errante, a seguir sem destino. Além disso, se existe um Livro, no qual tudo já foi escrito, inclusive nossas vidas, nós, homens, não passamos de seus personagens, cumprindo a cada dia, as linhas de uma trama pré-estabelecida.

Assim, entre as infinitas possibilidades da Biblioteca e as limitações do homem, entre a morte e a eternidade, os contos de Borges seguem numa busca incansável por decifrar o Livro, por traduzir o mundo, intuindo na palavra criadora o Verbo divino, a linguagem adâmica, da qual nos fala Benjamin.

Ainda que de formas diferentes, tanto Fuentes, como Cortázar e Borges, encontram no fantástico uma forma de traduzir a cultura ocidental, revelando por detrás dos monumentos culturais, as ruínas, os despojos, nos quais segue latente o desejo utópico e revolucionário, ou como espera Benjamin, o instante messiânico que redimirá o homem dos automatismos e opressões da sociedade moderna.

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. La tarea del traductor. In: ÁNGEL VEGA, Miguel (ed.) Textos clásicos de teoría de la traducción. Trad. H. P. Murena. Madrid: Cátedra, 1994. p. 285-97.

------. Magia e técnica. Arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BORGES, Jorge Luis. El aleph. Madrid: Alianza,1997.

CORTÁZAR, Julio. Las armas secretas. Buenos Aires: Sudamericana, 1991.

FUENTES, Carlos. El naranjo. Madrid: Alfaguara, 1993.

------. Valiente Mundo Nuevo: épica, utopía y mito en la novela hispanoamericana. México: Fondo de Cultura, 1992.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.