A SIMBOLOGIA DO OLHAR
NO CONTO DER SANDMANN DE E.T. A. HOFFMANN

Valburga Huber (UFRJ)

Entre os grandes românticos alemães como os irmãos Schlegel, Novalis, Thiek, Brentano, Achim von Arnim e Eichendorf, Hoffmann, é, sem dúvida, o representante mais genuíno de uma vertente diferente do movimento. Sua literatura fantástica tem ecos até a atualidade, no surrealismo e no realismo mágico sul americano, por exemplo, para nos limitarmos a apenas duas manifestações literárias de grande divulgação.

Hoffmann é, sobretudo, um mestre do conto, ao qual dá cores e significado inconfundíveis. No Romantismo alemão nos deparamos com diferentes concepções de “Märchen” (Contos de fada) tais como: Contos de fada (“Haus-und Kindermärchen”) dos Irmãos Grimm que se desenrolam no passado ou na esfera atemporal do mito; os Contos de fada artísticos (“Kunstmärchen”) de Tieck, Novalis, Fouqué, Brentano..., nos quais a tradição popular une-se a tradição intelectual e há uma ligação com o mundo mítico da unidade dos contrários (eu-mundo; finito-infinito) e os Contos da realidade (“Wirklichkeitsmärchen”) de Hoffmann que são as fábulas dos tempos modernos com a união da realidade e a fantasia, o maravilhoso e o inusitado. É o conto fantástico, onde domina o mundo mágico dos sonhos, dos contos de fada, mas ligado à realidade do seu tempo. Nele saltam aos olhos o suspense, a paradoxalidade, a dissonância.

A percepção da realidade de Hoffmann é irônica e ridicularizante, mas sempre em busca do sobre-humano, do maravilhoso - “a eterna saudade, que habita no espírito”. Sua obra é transpassada do sentimento de dualidade do mundo que condiciona o ser humano: mundo interno-externo; poesia - cotidiano burguês; essência - aparência; imaginação - realidade.

Nos seus contos, os contornos do mundo são vagos, é frequente o jogo do claro-escuro, excelente para construir a atmosfera do estranho, do insólito. A passagem para o sobrenatural é feita pelo enfeitiçamento, pelo sonho, pelo torpor, freqüentemente vistos como loucura (basta lembrar aqui as 12 “vigílias” nos seus vários sentidos - de “O Vaso de Ouro”).

Infere-se dos contos de Hoffmann que são três as formas possíveis de ser: - a do louco, no qual há total independência do espírito do mundo exterior; - a do filisteu (burguês), que não experimenta este dualismo, pois só vive o mundo exterior e - a do artista, que entende o dualismo como destino do ser humano ao qual tem que se submeter (são as freqüentes “forças estranhas” presentes em seus escritos) e tem consciência do perigo e ameaça existencial a que está exposto. O tema central de suas obras fantásticas é, pois, a situação de risco em que se encontra o ser humano, sujeito à desarmonia - homem-natureza. Inseguro, desorientado, ele está a mercê de forças sobre-humanas que nele despertam o medo, o terror tão bem exposto em diversas “peças noturnas”, como: “O Homem da Areia”, entre diversos outros.. Enquanto para os clássicos a luz mostra os contornos, a claridade, a ordem racional, para os românticos são as trevas, a noite que escondem os segredos do ser, o irracional. As “Peças noturnas” estão ligadas, por um lado, ao noturno, ao claro-escuro da pintura, do séc. XVI e pelo outro, aos fenômenos ocultos e psicopatológicos muito pesquisados na época de Hoffmann em estudos sobre o sobrenatural, o anormal, a hipnose, o magnetismo, o sonambulismo, o espiritismo e as doenças mentais.

Parece-nos sempre essencial enfatizar que os contos de Hoffmann têm consciência da ligação com o real, sendo sua ironia e peculiaridades estilísticas que fazem interpenetrar-se real e irreal. São, pois o maravilhoso e o fantástico que penetram na realidade, o que é feito, muitas vezes, pelo surgimento do grotesco. Em Hoffmann vemos formas de grotesco dos séculos anteriores, desde o inferno e seus habitantes até todo tipo de figuras sinistras. (como nos contos de E. Alan Poe “Tales of the Grotesque and Arabesque”).

No grotesco revelam-se subitamente como estranhas e sinistras coisas que nos eram conhecidas e familiares. Hoffmann não apenas introduz elementos imaginários, mas converte os objetos e acontecimentos de aparência objetiva da vida cotidiana, em objetod de outra ordem e o faz pela ambigüidade. O sobrenatural e seus contos são fundamentais nos estudos de Todorov sobre o tema. Ele estabelece (“Introduction à la Litterature Fantastique”) as condições do fantástico: - que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados; - hesitação deve ser sentida também por um personagem; - que o leitor, ante o texto, recuse uma interpretação alegórica ou poética. E “O Homem da Areia” tem, sem dúvida, todos estes requisitos, pois é ,ao mesmo tempo.um conto de fadas romântico e expressão da literatura fantástica.

Quem ler este conto, verá logo que a estrutura narrativa do mesmo nos mostra, nas diversas cartas que vão revelando sua trama como os olhos são o núcleo do conto. Em torno deles,dos olhos, gira já no início do conto a narração do terrível acontecimento” do encontro de Natanael com Coppola que o faz lembrar de “O Homem da Areia” de sua infância. A ambiguidade central do conto baseia-se nas duas versões da estória infantil : a) a da mãe (homem da areia bom), que faz as crianças dormir jogando-lhe areia nos olhos; b) a da babá (homem de areia mau) que arranca os olhos das crianças sem sono para levá-los aos seus rebentos na lua. A estas é acrescida a versão do narrador.na qual o homem de areia é o advogado Coppelius, terror das crianças, que fazia experiências alquímicas com o pai de Natanael que morre numa explosão.

As diversas perspectivas dadas pelo narrador encerram, pois, duas básicas: a de Natanael, que se crê a mercê de uma força estranha superior (encarnada em Coppelius/Coppola) e a de Clara e Lotar, vozes da razão, da serenidade, que acham que estas forças malignas só existem no interior da pessoa e que só representam perigo se transferidas por nós para o mundo exterior e se a elas nos entregarmos. Assim como Coppelius afastava Natanael do seu pai na infancia, o ótico Coppola, afasta-o de seu amor (Clara) e joga-o pelo binóculo nos braços de um autômato (Olímpia). Ele ainda é usado como cobaia para testar a veracidade deste autômato, assim como quase serviu de cobaia ao pai e ao advogado quando menino. Eles o conduzem em complô, a loucura e assistem ao seu fim trágico (suicídio).

Na sua divisão interior extrema.Natanael busca socorro nas figuras femininas: a mãe, a babá e mais tarde, em Clara. Espelha-se nelas para se reencontrar. São seu espelho vivo,onde busca sua identidade. Em Olímpia, um automato apenas, encontrará sua destruição, pois ela apenas simulacro de vida, morte, portanto.

Este conto de fadas comum torna-se conto fantástico pela imaginação do narrador e o poder de sua linguagem. Este começa com o uso de nomes que são simbólicos: Clara significa razão, iluminada; Siegmund: (munt: proteção); Natanael: nome de origem obscura já indica a estranheza do protagonista que (equivale a Teodoro - latim -: dado por Deus. Atrairia de forma especial as forças das trevas que querem destruí-lo?); advogado Coppelius e o vendedor de barômetros Coppola: o 1º pode enganar pela profissão e o 2º vende instrumentos para previsão do tempo, mas com valor científico duvidoso. E Coppelius/Coppola significam buracos dos olhos e cubas para experiências alquímicas, onde se separam os elementos. Isto pode ser associado a “poder obscuro” (força demoníaca) e sombrio, terrível destino; Olímpia: a que vem do Olimpo, linda, perfeita, para mencionar só os mais significativos.

É sem dúvida o olho, o olhar, com seu vasto campo semântico e metafórico - ligado a vida (ser humano) ou a morte (autômato) o campo mais fértil. Este vai desde os órgãos da visão, expressão de sentimentos, até retratos de estados de alma (crença popular: olhos como janelas da alma). As duas concepções são usadas pelo narrador em muitas metáforas e o medo da perda dos olhos se repete em várias cenas reais (no laboratório do pai, na infância, na compra do binóculo, na luta por Olímpia) e também em cenas imaginadas (nos seus poemas). São cenas em que os rostos aparecem sem olhos, e os olhos de Olímpia, nos quais ele refletia o seu eu, ao serem arrancados, o levam a loucura. A palavra “Auge” (olho) esta ainda ligada a processos alquímicos e metaforicamente os buracos negros dos olhos são a falta de alma, de vida. Os instrumentos óticos - óculos, binóculos, lornhões, são também, metaforicamente, como distorcedores da realidade. É pelo binóculo que se apaixona por Olímpia (começo de sua ruína) e é também através dele que tem a visão distorcida de Clara no final do conto, que lhe trazem lembranças terríveis do passado e o levam a loucura e a morte. Segundo estudo de Rudolf Drux - o qual utilizamos aqui para melhor elucidação da narrativa - até a palavra “Sköne Oke” (belos olhos) usada por Coppola em seu alemão pobre, já expressa, lingüisticamente, a deformação, a destruição de Natanael. Em relação ao riquíssimo campo metafórico dos olhos, e instrumentos a eles relacionados, vale destacar algumas passagens. A primeira é a experiência de alquimia que Natanael vê na sua infância. Nela, ao ser surpreendido, é ameaçado de cegueira, por Coppelius; a segunda é a visão de Natanael do seu proprio casamento e a terceira é a cena em que Natanael compra o binóculo de Coppola:

Que venham os olhos, que venham os olhos! Pequena besta.... Agora temos olhos - olhos - um lindo par de olhos infantis. (p.118)

... diante do altar, aparecia o terrível Coppelius que tocava os encantadores olhos de Clara, que saltavam no peito de Natanael, como faiscas sangrentas, chamuscando e ardendo.

Milhares de olhos olhavam e piscavam convulsivamente, dardejando Natanael; e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos, e cada vez com mais voracidade olhares inflamados saltavam uns sobre os outros, atirando no peito de Natanael seus raios vermelhos de sangue. (p. 134)

No final do conto, destaca-se a cena de quando Natanael vê Clara distorcida pelo binóculo e quer matá-la, num derradeiro acesso de loucura:

Clara estava diante das lentes! Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso... De repente, os olhos dela, girando em suas órbitas, expeliram raios de fogo; ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado... (p. 145)

A relação de Natanael com o mundo se dá através do olhar e, no conto, de forma distorcida através de binóculo. Ironicamente, uma lente de aumento que deveria ajudá-lo a ver melhor o mundo, distorce este mundo e lhe dá conseqüentemente uma falsa imagem do mesmo. Com as lentes vê vida onde há fria mecânica (em Olímpia) e morte onde há vida (em Clara). Tomado por forças demoníacas, torna-se autômato, (como Olímpia) marionete de forças estanhas. A consciência dessa manipulação leva-o à loucura.

Como conto fantástico, a interpretação mais famosa de “O Homem da Areia” é a feita por Freud, em 1919, ensaio: “Das Unheimliche” (O Insólito). Segundo ele, o efeito “insólito” da narrativa se deve a dois fatores: a) o medo da perda dos olhos, que no seu vasto estudo acaba sendo associado ao medo da castração, como em Édipo. b) o paralelo boneca/ser humano; a sensação infantil comum de poder transformar uma boneca em ser vivo, humano, dando-lhe vida pelo olhar.

Mas toda a análise freudiana - que aqui apenas queremos mencionar - esta relacionada ao complexo de castração que torna o menino fixado ao pai e incapaz para o amor pela mulher.

De um modo geral, vê-se, pois, que o “Eu” em Hoffmann: não é único, inconfundível, bem delimitado. Ele é um estado de consciência fraco, sujeito a vários perigos. O sujeito, centro da experiência do mundo (Fichte), não têm certeza de si mesmo (posição de zombaria e sarcasmo), e pode ter uma dupla personalidade (daí os autômatos). O limite entre o mundo real e a fantasia é uma construção do filisteu, do burguês. Em Natanael, no final do conto, apaga-se este limite. A percepção do maravilhoso já não é possível depois do pecado, da perda da harmonia entre o homem e a natureza (e Deus). Só surge nos que tem um sexto sentido para isso: poetas, escritores, mas até isso é posto em dúvida pelo autor. A maioria vive absorvida pela roda viva do cotidiano. Entrada no mundo do maravilhoso é perigosa e pode despertar os poderes demoníacos. Mundo interno e externo se confundem, a consciência fica abalada, a realidade é ambígua e escorregadia. Do mundo maravilhoso do mistério apenas o sonho e a fantasia nos dão dele apenas uma vaga idéia. Natanael é daqueles que (como Theodor de “Das öde Haus”) penetram nesses mistérios e sofre os revezes (distorção da lente), e sucumbe à loucura. O mistério deve continuar mistério; intocável como tal.

O interesse e a atualidade do conto é comprovado pelo fato de que praticamente todas as escolas de teoria literária ocuparam-se de alguma forma com ele. As questões comuns estudadas são: a duplicidade do protagonista Coppelius/Coppola; o caráter de Clara, a variação de perspectivas narrativas, o tema dos olhos, da boneca, ou seja, a automação e a loucura nos diversos contextos entrelaçados no conto.

São contos como este de Hoffmann que foram precursores da Literatura do Realismo mágico sul-americano - que seguiu uma vertente própria, sob a idéia da utopia do novo mundo e mitos do continente. Mas de V. Llosa, Cortazar, Garcia Marques a Borges e outros grandes nomes do contexto latino-americano fica difícil até imaginá-los sem ter passado pelo “clássico” Hoffmann. Ele é também tema de inúmeros estudos teóricos como os de Todorov e G. Deleuze. O realismo mágico sul-americano foi além e pode-se dizer que mesmo os escritores latino-americanos que exploram toda a riqueza mítica e mágica da América, criam um tipo de Literatura fantástica diferente da literatura fantástica européia, mas todos beberam na fonte do clássico Hoffmann. Estes autores situam-se no nível do “sentido” de Deleuze (“A teoria do sentido”), pois nestes contos há um contínuo jogo sentido/sem sentido; caos/cosmos, numa série de paradoxos que se encaixam, porém no sentido de uma estória maior. Mas Hoffmann, com seus temas fantásticos e recursos estilísticos marcantes já era precursor claro dos mesmos.

Por todos esses motivos, Poe, Baudelaire, Gogol, Kafka e os surrealistas franceses chamaram Hoffmann “o primeiro artista moderno”.

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